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quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Teonomia x Política Segundo a Bíblia- Grudem

 


O primeiro ponto de vista equivocado (em minha opinião) é a visão de que o governo civil deve obrigar as pessoas a apoiar ou seguir determinada religião. É calamitoso que essa visão de impor a religião tenha sido adotada por tantos cristãos em séculos passados. E la teve um papel importante na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), que começou como um conflito entre protestantes e católicos desejosos de controlar vários territórios, principalmente na Alemanha. Nos séculos 16 e 17, houve muitas outras “guerras religiosas” na Europa, especialmente entre católicos e protestantes. Também no século 16, protestantes reformados e luteranos perseguiram e mataram milhares de membros de  grupos anabatistas na Suíça e na Alemanha, que desejavam ter igrejas “só para os crentes” e que batizavam por imersão aqueles que faziam um a profissão pessoal de fé. Com o passar do tempo, cada vez mais cristãos perceberam que a visão de impor a religião é incompatível com os ensinamentos de Cristo e com a própria natureza da fé (cf. a discussão adiante). Hoje, não conheço nenhum grupo cristão importante que continue a defender a visão de que o governo deve tentar obrigar as pessoas a seguir a fé cristã.1' O reconstrucionismo cristão [teonomia] é um pequeno movimento marginal que defende a imposição pelo governo, hoje, das leis do Antigo Testamento (cf. discussão nas páginas 92-93), mas quase todos ou todos os líderes reconhecidos do movimento evangélico nos Estados Unidos se distanciaram claramente desse posicionamento quanto às leis civis. 

O utras religiões, porém, ainda promovem a imposição de suas crenças pelo governo. Pode-se observar isso em países como a Arábia Saudita, onde há leis que obrigam o povo a seguir o islamismo e onde aqueles que não obedecem a essas leis estão sujeitos a penas severas aplicadas pela polícia religiosa. A lei proíbe a expressão pública de qualquer outra religião além do islamismo e não perm ite que os sauditas se convertam a outras religiões...
A visão de impor a religião também é usada ao redor do mundo por grupos violentos para justificar a perseguição aos cristãos, como no caso em que muçulmanos queimaram um vilarejo cristão inteiro no Paquistão, resultando na morte de seis cristãos, no início de agosto de 2009.3 Outro exemplo é a guerra travada por grupos militantes islâmicos contra cristãos na Nigéria, no Sudão e em outros países da África subsaariana. ...
  Nos primeiros anos da história dos Estados Unidos, o apoio à liberdade religiosa nas colônias norte-americanas se desenvolveu tanto pela necessidade de formar um país coeso, com pessoas originárias de diversos contextos religiosos (congregacionais, episcopais, presbiterianos, quacres, batistas, católicos e judeus, entre outros), como pelo fato de muitos habitantes das colônias terem fugido de perseguição religiosa em seus países de origem. Os primeiros colonos que se estabeleceram na Nova Inglaterra, por exemplo, fugiram da Inglaterra, onde haviam pago multas e sido presos por não freqüentarem os cultos da Igreja Anglicana e por realizarem seus próprios cultos. Em 1779, apenas três anos depois da Declaração da Independência, Thomas Jefferson redigiu a Declaração de Virgínia para a Instituição da Liberdade Religiosa, que refletia o apoio crescente à liberdade de expressão religiosa nos Estados Unidos. Seguem as palavras de Jefferson: Seja decretado pela Assembleia Geral que nenhum homem poderá ser obrigado a freqüentar ou apoiar qualquer culto, local ou ministério religioso, nem será forçado, impedido, prejudicado ou afligido, em seu corpo ou em seus bens, nem sofrerá de qualquer outro modo em razão de suas opiniões ou crenças religiosas. Antes, todos os homens terão liberdade de professar e, por argumentos, defender suas opiniões em questões religiosas, o que não diminuirá, nem aumentará, nem afetará de qualquer outro modo sua capacidade civil.6
  6A “Declaração de Virgínia para a Instituição da Liberdade Religiosa”, redigida por Thomas JefFerson em 1779, foi aprovada pela Assembleia Geral de Virgínia em 1786. 
Vários ensinamentos da Bíblia mostram que a visão de que o governo deve impor a religião é equivocada e contrária ao próprio ensino bíblico.
 1. Jesus fez distinção entre o reino de Deus e o de César O primeiro argumento bíblico contra a visão de impor a religião vem do ensinamento de Jesus em M ateus 22. Seus oponentes judeus tentaram apanhá-lo por meio da pergunta: “E correto pagar tributo a César, ou não?” (M t 22.17). Caso Jesus se mostrasse favorável aos impostos romanos, arriscaria dar a impressão de que apoiava o odiado governo de Roma. Caso se mostrasse contrário aos impostos romanos, daria a impressão de que era um revolucionário perigoso, hostil ao poder de Rom a. Jesus surpreendeu seus oponentes ao dizer: “Mostrai-m e a moeda do tributo”, e eles “trouxeram-lhe um denário” (v. 19). Em seguida, apresentou seu ensinamento da seguinte forma: “Ele lhes perguntou: De quem são esta imagem e inscrição? Eles responderam: De César. Então lhes disse: D ai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (M t 22.20,21). Trata-se de um a declaração notável, pois Jesus mostra que devem existir dois âmbitos distintos de influência, um para o governo, outro para a vida religiosa do povo de Deus. Algumas coisas, como impostos, dizem respeito ao governo civil (“o que é de César”), logo, a igreja não deve tentar controlá-las. Em contrapartida, outras coisas dizem respeito à vida religiosa das pessoas (“o que é de Deus”), logo, o governo civil não deve tentar controlá-las. Jesus não especificou um a lista de itens para cada categoria, mas a simples distinção das duas categorias é de enorme relevância para a história do mundo, pois indica a aprovação de um sistema diferente daquele que fora dado à nação de Israel, que era constituído pelas leis dadas no Antigo Testamento. No Antigo Testamento, a nação de Israel como um todo era um a “teocracia”, ou seja, Deus era o governante do povo, as leis foram dadas a Israel diretamente por Deus (e não decididas pelo povo ou por um rei humano) e a nação inteira era considerada “povo de Deus”. Esperava-se, portanto, que todos os que faziam parte dela adorassem a Deus, e as leis de Israel abrangiam não apenas aquilo que hoje consideraríamos “questões seculares”, como homicídio e roubo, mas também “questões religiosas”, como o sacrifício de animais e penalidades no caso de adoração a outros deuses (cf. Lv 21— 23; D t 13.6-11). Na declaração de Jesus a respeito de Deus e de César, ele definiu os contornos mais amplos de um a nova ordem na qual “o que é de Deus” não deve estar sob o controle do governo civil (“o que é de César”). Esse sistema é muito diferente da teocracia que governava o povo de Israel no Antigo Testamento. O novo ensinamento de Jesus sugere que todos os governos civis, inclusive os de hoje, devem dar liberdade no tocante à fé religiosa que as pessoas escolhem seguir ou não, às doutrinas religiosas que adotam e ao modo como adoram a Deus. “César” não deve controlar essas coisas, pois elas são “de Deus”.


2. Jesus não tentou obrigar as pessoas a crer nele. Outro episódio na vida de Jesus também mostra como ele se opunha à visão de im por a religião, pois ele repreendeu seus discípulos quando quiseram castigar de im ediato aqueles que o rejeitaram : E enviou mensageiros à sua frente; estes foram e entraram num povoado de samaritanos para lhe preparar pousada. Mas os samaritanos não o receberam, pois viajava para Jerusalém. Quando viram isso, os discípulos Tiago e João disseram: Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu para os consumir? (Lc 9.52-54). Ao que parece, os discípulos im aginaram que seria uma excelente forma de convencer as pessoas a ouvir Jesus no povoado seguinte. Se 30 POLÍTICA SEGUNDO A BÍBLIA descesse fogo do céu e acabasse com o vilarejo sam aritano que havia rejeitado Jesus, a notícia se espalharia e toda a população do povoado seguinte compareceria para ouvi-los. Que método mais persuasivo de im por a religião! Jesus, porém, rejeitou categoricam ente essa sugestão. O versículo seguinte diz: “Ele, porém, voltando-se, repreendeu-os” (Lc 9.55). Jesus recusou de modo claro qualquer tentativa de obrigar as pessoas a segui-lo ou crer nele.
3. Não há como impor a fé autêntica H á coerência entre a natureza da fé autêntica e a condenação por Jesus do uso de “fogo do céu” para obrigar as pessoas a segui-lo. Por trás dessa condenação está o fato de que a verdadeira f é em Deus deve ser voluntária. Para que a fé seja autêntica, não pode ser imposta à força. Encontramos aqui outra razão pela qual os governos não devem, ja ­ m ais, tentar obrigar o povo a aderir a determinada religião. Ao longo de todo o m inistério de Jesus e dos apóstolos, fica evidente seu respeito pela vontade individual e pelas decisões voluntárias das pessoas. Eles as ensinavam ,procuravam convencê-las e fa z ia m apelos para que tomassem a decisão pessoal de seguir Jesus como o verdadeiro M essias (cf. M t 11.28-30; At 28.23; Rm 10.9,10; Ap 22.17). A verdadeira crença religiosa não pode ser imposta à força, seja por meio de fogo do céu, seja pelo poder do governo civil, e os cristãos não devem participar de tentativas do governo de usar seu poder para obrigar as pessoas a apoiar ou seguir o cristianismo ou qualquer outra religião. M as e quanto às leis que Deus deu a Israel no Antigo Testamento, especialmente em Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio? Elas exigiam que o povo entregasse o dízimo para sustentar o sacerdócio judaico e o culto no templo e que oferecessem ao Senhor anualmente os sacrifícios especificados (cf. Lv 23). Ordenavam até mesmo castigos severos para quem tentasse ensinar outra religião (cf. D t 13.6-11). Contudo, aplicavam-se apenas à nação de Israel naquela época específica. Jam ais foram impostas às nações vizinhas. Faziam parte do sistema do Antigo Testamento, que chegou ao fim quando Jesus firmou uma “nova aliança” para o povo de Deus no Novo Testamento. O antigo sistema se encerrou com o ensinam ento de Jesus de que algumas áreas da vida eram “de C ésar” e outras, “de D eus”. N unca se pretendeu que as leis do A ntigo Testamento com essas imposições religiosas fossem aplicadas depois de Jesus ter firmado sua “nova aliança” ou em qualquer outro momento subsequente.

4. Um reino que não é deste mundo Em outro episódio, logo depois que foi preso pelos soldados romanos, perto de sua morte, Jesus disse ao governador romano Pôncio Pilatos: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus servos lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus. Entretanto, agora, o meu reino não é daqui” (Jo 18.36). Jesus não permitiu que seus discípulos lutassem com espadas nem usassem poder m militar, pois seu objetivo não era estabelecer um reino terreno, como o Império Romano ou várias outras nações na história do mundo. Enquanto os reinos terrenos são estabelecidos por exércitos e por poder militar, o reino de Jesus seria estabelecido pelo poder do evangelho que transforma o coração das pessoas e as leva a crer nele e lhe obedecer. Isso não significa que o reino de Deus não exerce influência alguma sobre o mundo. Na verdade, ele transforma e vence o mundo (lJo 3.8; 5.4,5), mas o faz ao mudar o coração das pessoas e suas convicções mais profundas, e não por meio do poder militar. O poder do governo jam ais deve ser usado para impor determinada crença religiosa ou a adesão a uma religião específica, seja a fé cristã, seja qualquer outra fé. Em resumo, a visão de impor a religião é contrária à Bíblia e equivocada.

5. Implicações práticas de rejeitar a visão de impor a religião Quais são as implicações práticas de rejeitar a visão de impor a religião? Uma das implicações é que o governo não deve, em momento algum , tentar obrigar as pessoas a crer num a religião específica ou é um caso de imposição da religião? Nos Estados Unidos, por exemplo, as igrejas não pagam impostos sobre seus terrenos e construções, e  segui-la; antes, deve garantir a liberdade religiosa para os seguidores de todas as religiões dentro da nação. Outra implicação é que os cristãos de todas as nações devem apoiar a liberdade religiosa e se opor a qualquer tentativa do governo de impor determinada religião. Aliás,plena liberdade religiosa deve ser o primeiro princípio apoiado e defendido pelos cristãos que almejam pessoas físicas não pagam impostos sobre a parte de sua renda doada a igrejas ou a outras instituições beneficentes. Não tenho objeção a essas políticas, pois, a meu ver, não impõem. a religião de maneira relevante. Nenhuma denominação ou religião recebe tratamento preferencial. Tanto igrejas batistas como templos budistas, sinagogas judaicas, igrejas católicas e mesquitas muçulmanas desfrutam esses benefícios. Essas isenções fiscais oferecidas a igrejas e instituições beneficentes se baseiam na decisão da sociedade de que organizações desse tipo contribuem de modo considerável para o bem da sociedade como um todo. Nas palavras clássicas do prefácio da Constituição dos Estados Unidos da América, elas “promovem o bem- -estar geral”. Logo, é inteiram ente aceitável que a sociedade resolva oferecer certos benefícios fiscais de modo igual a todas as religiões. Não se trata de apoio compulsório a um a religião, nem de entregar recursos do governo diretamente a determinados grupos religiosos e, sem dúvida, não contraria o significado e a intenção da Prim eira Emenda. Oferecer benefícios fiscais não é o mesmo que impor um a religião.

7. A influência espiritual por trás da visão de impor a religião Por trás dessa visão de impor a religião, há um poder espiritual invisível com um objetivo oculto, que se manifesta em seus resultados. Ao impor a crença religiosa, cria-se a tendência de destruir a verdadeira fé cristã de duas maneiras. O brigar as pessoas a seguir uma f é não cristã (como o hinduísmo na índia ou o islamismo em muitos outros países), resulta, com frequência, na opressão dos cristãos e na tentativa de expulsar o cristianismo do país. Em contrapartida, procurar obrigar as pessoas a tornarem-se cristãs também tem a tendência de expulsar o verdadeiro cristianismo, pois remove da vida das pessoas a oportunidade de escolher voluntariam ente seguir a fé cristã. Alguns terão fé autêntica, mas a maioria não. Como resultado, sociedades inteiras tornam -se “cristãs”, mas apenas de nome. A igreja é governada, então, por “cristãos” que na verdade não o são, pois carecem de fé autêntica. E uma igreja governada principalmente por não cristãos não demora a se tornar espiritualmente morta e ineficaz. Logo, os cristãos que acreditam nos ensinamentos da Bíblia não terão dificuldade em discernir a influência espiritual por trás da visão de impor a religião. E um a influência inteiram ente contrária ao ensino bíblico e à fé cristã autêntica. É um a influência que procura destruir o cristianismo Política Segundo a Bíblia,,São Paulo :Vida Nova, 2016.p. 25-35
Existe entre alguns cristãos norte-americanos de hoje um conceito chamado “teonomia”, também conhecido como “reconstrucionismo cristão” ou “teologia do domínio”. Seus críticos chamam-na de dominionismo (com tons de “jihadismo”). Usarei aqui a designação “teonomia”, termo geral empregado nas análises teológicas desse movimento Os teonomistas argumentam que as leis dadas por Deus a Israel na aliança mosaica devem servir de modelo para as leis civis dos países hoje em dia. Se colocado em prática, esse modelo incluiria a aplicação da pena de morte para casos de blasfêmia, adultério e conduta homossexual, entre outros!
O erro dos teonomistas consiste numa interpretação equivocada do lugar singular que essas leis dadas a Israel ocuparam na história da Bíblia como um todo. Também consiste numa interpretação equivocada do ensino neotestamentário acerca da distinção entre o âmbito da Igreja e o âmbito do Estado, instituída por Jesus quando ele disse: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (M t 22.21). (Para um a discussão mais detalhada do lugar singular ocupado pela lei mosaica, cf. cap. 3, p. 117-121) Os mais destacados defensores da teonomia foram Rousas John Rushdoony (1916-2001)7 e Greg Bahnsen (1948-1995);8 Vern Poythress9 e John Frame,10 por sua vez, ofereceram análises críticas desse conceito. Alguns críticos seculares da influência cristã sobre a política e o governo afirmam infundadam ente que os evangélicos em geral procuram seguir a teonomia ou “teologia do domínio” e os acusam de querer impor essas ideias teonomistas extremadas nos Estados Unidos: cf. Michelle Goldberg, Kingdom Corning: the Rise o f Christian Nationalism [Reino vindouro: a ascensão do nacionalism o cristão].11 Essas acusações se baseiam , porém, em estudos acadêmicos pouco rigorosos e na culpa por associação. Não sei de cristão algum com influência expressiva no mundo evangélico ou no mundo político de hoje, nos Estados Unidos, que defenda os conceitos da pequena minoria de teonomistas ou reconstrucionistas cristãos no tocante à imposição, pelo governo civil atual, dessas leis do Antigo Testamento. Política Segundo a Bíblia,,São Paulo :Vida Nova, 2016p. 92-93


Se os governos são responsáveis diante de Deus por punir o mal e incentivar o bem, não é apropriado que usemos as leis abrangentes dadas por Deus à nação de Israel no Antigo Testamento para entender melhor como os governos devem atuar? Não há como fazer isso de modo direto e sem grande dificuldade, pois as leis para Israel ocupam um lugar especial na Bíblia como um todo. Eis um resumo dos motivos pelos quais essa ideia cria problemas para os intérpretes atuais. Os livros veterotestamentários de Exodo, Levítico, Números e Deuteronômio registram diversas leis dadas por Deus especificamente à nação de Israel. Elas fazem parte da “aliança mosaica”, pois Deus as entregou a Moisés, que as transmitiu ao povo. (Na Bíblia, “aliança” é a relação legalmente estabelecida entre Deus e seu povo, e as leis da aliança mosaica passaram a definir essa relação a partir do tempo de Moisés.) Entender de que maneira exatamente as leis de Israel poderiam ser relevantes para os governos civis seculares de hoje é um a das questões mais complexas da interpretação bíblica por vários motivos:

1) O lugar de Israel'.
 A interpretação correta das leis de Israel requer um a compreensão m adura tanto do lugar que a nação de Israel ocupa na história da Bíblia como dos propósitos de Deus para Israel na história do mundo.
2) Israel como teocracia'.
A interpretação correta das leis de Israel também requer compreensão do caráter singular de Israel, que devia ser “reino de sacerdotes e nação santa” para Deus (Ex 19.6). Essa nação era um a teocracia governada pelo próprio Deus e, portanto, as leis de Israel regulamentavam a vida religiosa do povo de Deus (como os sacrifícios, as festas e o culto ao único Deus verdadeiro), bem como as questões que, em todas as eras da história, costumam ser associadas ao governo civil.
3) O juízo final de Deus intervém na história presente.
A interpretação correta das leis de Israel requer, ainda, a compreensão de alguns exemplos incomuns nos quais o juízo divino “irrompe” subitamente na história humana. Na verdade, mesmo antes do estabelecimento de Israel como nação, há alguns casos de intervenções repentinas do juízo de Deus na história para punir de imediato a pecaminosidade humana. O relato do Dilúvio e da arca de Noé (Gn 6— 9) é um exemplo desse tipo de juízo. O relato de Sodoma e Gomorra (cf. Gn 19.24-28), no qual Deus destruiu essas cidades com logo e enxofre do céu, é outro. E a narrativa da destruição das cidades de Canaã pelo povo de Israel é ainda outro exemplo, um acontecimento singular sob a direção de Deus (cf. D t 20.16-18; contrastar com os v. 10-15, em que esse tipo de guerra é proibido em outros casos). A guerra de conquista e destruição de Canaã foi realizada por ordem específica de Deus e fazia parte do plano para estabelecer seu povo na terra que ele havia lhes prometido. Também prefigurou o juízo divino final e absoluto sobre toda a terra. Não deve, contudo, servir de modelo para os governos civis de hoje. É historicamente singular.

4) Aplicação extensa da pena de morte. A interpretação correta das leis de Israel requer a compreensão de outro aspecto singular dessas leis, a saber, a imposição da pena de morte não apenas para crimes de homicídio (como em Gn 9.5,6), mas em casos de promoção de uma falsa religião (cf. Êx 22.18,20; Lv 20.22; D t 13.6-17), rebelião contra a autoridade fam iliar (cf. Éx 21.15,17; D t 21.18-21) e pecados sexuais (Lv 20.10-14). Esses e outros exemplos da pena de morte faziam parte da identidade de Israel como “nação santa” (Ex 19.6) diante de Deus, mas isso não significa que as nações de hoje, que não são teocracias nem “nações santas” diante de Deus, devam procurar seguir esses exemplos. Na verdade, a narrativa histórica do Antigo Testamento mostra que essas leis e penas severas não foram capazes de formar um povo verdadeiramente santo, pois não mudavam o coração das pessoas (cf. Jr 31— 33; Rm 8.3,4; G1 3.21-24). As penas severas para infrações  religiosas, rebelião contra a família e pecados sexuais não devem servir de norma para os governos de hoje.
5) Conclusão. Caso se mantenha em vista essas distinções, as leis que Deus deu a Israel podem fornecer informações úteis para a compreensão dos propósitos do governo e da natureza dos bons e dos maus governos. Em trechos adiante, procurei usar esse material de modo pensado, atentando para o contexto histórico singular em que ele ocorre. Devemos lembrar ainda que, em comparação com as leis e os costumes das nações vizinhas no Antigo O riente Próximo, as leis que Deus deu a Israel eram um modelo extraordinário de justiça, imparcialidade, compaixão pelos pobres e oprimidos e de como a verdadeira santidade de vida pode ser praticada no quotidiano. De fato, Moisés disse ao povo de Israel: “E que grande nação há que tenha estatutos e preceitos tão justos quanto toda esta lei que hoje ponho diante de vós?” (D t 4 .8 ).1 Embora as prescrições específicas da lei mosaica em Exodo- Deuteronômio visassem à aplicação direta sobre Israel naquela época, alguns outros trechos do Antigo Testamento não são dirigidos especificamente ao povo judeu, mas falam de reis e governos em termos gerais. Só em Provérbios, por exemplo, o termo “rei” ocorre em 32 versículos e há outras referências em Salmos e Eclesiastes. Esses versículos trazem palavras adicionais de sabedoria sobre o governo civil aplicáveis a casos específicos.
Mas e quanto à ordem para guardar o sábado? Quando falo a respeito da influência cristã sobre o governo, por vezes alguém pergunta se os governos de hoje devem impor a ordem para não trabalhar aos sábados que encontramos nos Dez Mandamentos, em Êxodo: “Lem - bra-te do dia de sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás e farás o teu trabalho; mas o sétimo dia é o sábado do S e n h o r  teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum ” (Êx 20.8-10). 'Para uma discussão mais detalhada, cf. Christopher W right, OLd Testament Ethics for  the People of God, Downers Grovc: InterVarsitv Press, 2004; W alter C. Kaiser, T o w a r d O/d Testament Ethics, Grand Rapids: Zondervan, 1991; Gordon Wenham, Story as Torah : Reading Old Testament Narrative Ethically, Grand Rapids: Baker, 2000. H á vários séculos, existem diferenças sinceras de opinião entre os cristãos acerca da aplicação desse mandamento. Para alguns, é um requisito que os cristãos ainda devem cumprir hoje e, a seu ver, é pecado contra Deus trabalhar no domingo. A meu ver, porém, o mandamento do sábado é diferente dos outros nove mandamentos no sentido de que é um resumo de todas as leis cerimoniais dadas por Deus a Israel e abrange o ano sabático, o ano do jubileu e todos os sacrifícios e ofertas que o povo de Israel devia apresentar a Deus. Considere estes ensinamentos de Paulo: “Assim , ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa de dias de festa, ou de lua nova, ou de sábados, os quais são sombras das coisas que haveriam de vir; mas a realidade é C risto” (C l 2.16,17); “Guardais dias, meses, tempos e anos. Temo que eu talvez tenha trabalhado inutilmente para convosco” (G1 4.10,11). Concluo, portanto, que a exigência de não trabalhar no sábado era um a “lei cerimonial”, como as leis sobre os sacrifícios às quais não precisamos mais obedecer. Logo, não sou a favor de que o governo crie leis que proíbam empresas de funcionar aos domingos. Quer dizer que sou a favor de que as pessoas trabalhem sete dias por semana? Não. No tempo do Antigo Testamento, a sabedoria e o amor de Deus por seu povo se refletiam em sua dádiva generosa de um dia entre sete em que o povo de Israel não precisava trabalhar. Diante disso, parece uma prática prudente os cristãos da presente era do Novo Testamento darem o exemplo, separando um dia da semana para não trabalhar. (Talvez seja o domingo, mas para pastores e outros que trabalham no domingo talvez seja outro dia da semana.) Também é prudente os empregadores darem aos funcionários dias de folga do trabalho, pelo menos uma vez por semana (e, com frequência, duas, pois os “afazeres” pessoais muitas vezes também tomam um dia inteiro). Trata-se, contudo, de uma questão de sabedoria humana norteada pela Bíblia, e não de pecado ou de regra absoluta que jam ais pode ser quebrada. Outros cristãos discordam de meu ponto de vista sobre esse assunto e afirmam que Deus ainda exige que nunca trabalhem aos domingos. Respeito sua coragem e fé e sei que essas convicções levam alguns deles a manter suas empresas fechadas aos domingos. (Nos PRINCÍPIOS BÍBLICOS A RESPEITO DO GOVERNO 121 Estados Unidos, Chick -Fil-A e Hobby Lobby são dois exemplos de empresas grandes de comércio varejista que fecham aos domingos.) Não creio, porém, que todos os cristãos sejam obrigados a adotar essa postura e também não apoiaria leis que exigissem que todo o comércio varejista fechasse aos domingos (como costumava acontecer em várias regiões dos Estados Unidos). Paulo escreve em sua Epístola aos Romanos, provavelmente com respeito a uma questão sem elhante: “U m a pessoa considera um dia mais importante do que outro, mas outra ju lga iguais todos os dias. Cada um esteja inteiram ente convicto em sua m ente” (Rm 14.5). Política Segundo a Bíblia,,São Paulo :Vida Nova, 2016pp. 117-121