Teonomia x Política Segundo a Bíblia- Grudem
O primeiro ponto de vista equivocado (em minha opinião) é a visão
de que o governo civil deve obrigar as pessoas a apoiar ou seguir determinada religião. É calamitoso que essa visão de impor a religião tenha sido
adotada por tantos cristãos em séculos passados. E la teve um papel
importante na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), que começou
como um conflito entre protestantes e católicos desejosos de controlar vários territórios, principalmente na Alemanha. Nos séculos 16 e
17, houve muitas outras “guerras religiosas” na Europa, especialmente
entre católicos e protestantes. Também no século 16, protestantes reformados e luteranos perseguiram e mataram milhares de membros de grupos anabatistas na Suíça e na Alemanha, que desejavam ter igrejas
“só para os crentes” e que batizavam por imersão aqueles que faziam
um a profissão pessoal de fé.
Com o passar do tempo, cada vez mais cristãos perceberam que
a visão de impor a religião é incompatível com os ensinamentos de
Cristo e com a própria natureza da fé (cf. a discussão adiante). Hoje,
não conheço nenhum grupo cristão importante que continue a defender a visão de que o governo deve tentar obrigar as pessoas a seguir
a fé cristã.1' O reconstrucionismo cristão [teonomia] é um pequeno movimento marginal que defende a imposição pelo governo, hoje, das leis do Antigo Testamento (cf. discussão nas páginas 92-93), mas quase todos ou todos os líderes reconhecidos do movimento evangélico nos Estados Unidos se distanciaram claramente desse posicionamento quanto às leis civis.
O utras religiões, porém, ainda promovem a imposição de suas
crenças pelo governo. Pode-se observar isso em países como a Arábia
Saudita, onde há leis que obrigam o povo a seguir o islamismo e onde
aqueles que não obedecem a essas leis estão sujeitos a penas severas
aplicadas pela polícia religiosa. A lei proíbe a expressão pública de
qualquer outra religião além do islamismo e não perm ite que os sauditas se convertam a outras religiões...
A visão de impor a religião também é usada ao redor do mundo
por grupos violentos para justificar a perseguição aos cristãos, como
no caso em que muçulmanos queimaram um vilarejo cristão inteiro
no Paquistão, resultando na morte de seis cristãos, no início de agosto
de 2009.3 Outro exemplo é a guerra travada por grupos militantes
islâmicos contra cristãos na Nigéria, no Sudão e em outros países da
África subsaariana. ...
Nos primeiros anos da história dos Estados Unidos, o apoio à
liberdade religiosa nas colônias norte-americanas se desenvolveu tanto pela necessidade de formar um país coeso, com pessoas originárias
de diversos contextos religiosos (congregacionais, episcopais, presbiterianos, quacres, batistas, católicos e judeus, entre outros), como pelo
fato de muitos habitantes das colônias terem fugido de perseguição
religiosa em seus países de origem. Os primeiros colonos que se estabeleceram na Nova Inglaterra, por exemplo, fugiram da Inglaterra,
onde haviam pago multas e sido presos por não freqüentarem os cultos
da Igreja Anglicana e por realizarem seus próprios cultos.
Em 1779, apenas três anos depois da Declaração da Independência, Thomas Jefferson redigiu a Declaração de Virgínia para a
Instituição da Liberdade Religiosa, que refletia o apoio crescente à
liberdade de expressão religiosa nos Estados Unidos. Seguem as palavras de Jefferson:
Seja decretado pela Assembleia Geral que nenhum homem poderá
ser obrigado a freqüentar ou apoiar qualquer culto, local ou ministério
religioso, nem será forçado, impedido, prejudicado ou afligido, em seu corpo ou em seus bens, nem sofrerá de qualquer outro modo em razão
de suas opiniões ou crenças religiosas. Antes, todos os homens terão
liberdade de professar e, por argumentos, defender suas opiniões em
questões religiosas, o que não diminuirá, nem aumentará, nem afetará
de qualquer outro modo sua capacidade civil.6
6A “Declaração de Virgínia para a Instituição da Liberdade Religiosa”, redigida por Thomas JefFerson em 1779, foi aprovada pela Assembleia Geral de Virgínia em 1786.
Vários ensinamentos da Bíblia mostram que a visão de que o governo
deve impor a religião é equivocada e contrária ao próprio ensino bíblico.
1. Jesus fez distinção entre o reino de Deus e o de César
O primeiro argumento bíblico contra a visão de impor a religião vem
do ensinamento de Jesus em M ateus 22. Seus oponentes judeus tentaram apanhá-lo por meio da pergunta: “E correto pagar tributo a César,
ou não?” (M t 22.17). Caso Jesus se mostrasse favorável aos impostos
romanos, arriscaria dar a impressão de que apoiava o odiado governo
de Roma. Caso se mostrasse contrário aos impostos romanos, daria
a impressão de que era um revolucionário perigoso, hostil ao poder
de Rom a. Jesus surpreendeu seus oponentes ao dizer: “Mostrai-m e
a moeda do tributo”, e eles “trouxeram-lhe um denário” (v. 19). Em
seguida, apresentou seu ensinamento da seguinte forma: “Ele lhes perguntou: De quem são esta imagem e inscrição? Eles responderam: De
César. Então lhes disse: D ai a César o que é de César, e a Deus o que
é de Deus” (M t 22.20,21).
Trata-se de um a declaração notável, pois Jesus mostra que devem
existir dois âmbitos distintos de influência, um para o governo, outro para
a vida religiosa do povo de Deus. Algumas coisas, como impostos,
dizem respeito ao governo civil (“o que é de César”), logo, a igreja não
deve tentar controlá-las. Em contrapartida, outras coisas dizem respeito à vida religiosa das pessoas (“o que é de Deus”), logo, o governo
civil não deve tentar controlá-las.
Jesus não especificou um a lista de itens para cada categoria, mas
a simples distinção das duas categorias é de enorme relevância para a história do mundo, pois indica a aprovação de um sistema diferente
daquele que fora dado à nação de Israel, que era constituído pelas
leis dadas no Antigo Testamento. No Antigo Testamento, a nação
de Israel como um todo era um a “teocracia”, ou seja, Deus era o governante do povo, as leis foram dadas a Israel diretamente por Deus
(e não decididas pelo povo ou por um rei humano) e a nação inteira era
considerada “povo de Deus”. Esperava-se, portanto, que todos os que
faziam parte dela adorassem a Deus, e as leis de Israel abrangiam não
apenas aquilo que hoje consideraríamos “questões seculares”, como
homicídio e roubo, mas também “questões religiosas”, como o sacrifício de animais e penalidades no caso de adoração a outros deuses
(cf. Lv 21— 23; D t 13.6-11).
Na declaração de Jesus a respeito de Deus e de César, ele definiu
os contornos mais amplos de um a nova ordem na qual “o que é de
Deus” não deve estar sob o controle do governo civil (“o que é de
César”). Esse sistema é muito diferente da teocracia que governava o
povo de Israel no Antigo Testamento. O novo ensinamento de Jesus
sugere que todos os governos civis, inclusive os de hoje, devem dar
liberdade no tocante à fé religiosa que as pessoas escolhem seguir ou
não, às doutrinas religiosas que adotam e ao modo como adoram a
Deus. “César” não deve controlar essas coisas, pois elas são “de Deus”.
2. Jesus não tentou obrigar as pessoas a crer nele. Outro episódio na vida de Jesus também mostra como ele se opunha
à visão de im por a religião, pois ele repreendeu seus discípulos quando
quiseram castigar de im ediato aqueles que o rejeitaram :
E enviou mensageiros à sua frente; estes foram e entraram num
povoado de samaritanos para lhe preparar pousada. Mas os samaritanos não o receberam, pois viajava para Jerusalém. Quando viram isso,
os discípulos Tiago e João disseram: Senhor, queres que mandemos
descer fogo do céu para os consumir? (Lc 9.52-54).
Ao que parece, os discípulos im aginaram que seria uma excelente
forma de convencer as pessoas a ouvir Jesus no povoado seguinte. Se
30 POLÍTICA SEGUNDO A BÍBLIA
descesse fogo do céu e acabasse com o vilarejo sam aritano que havia
rejeitado Jesus, a notícia se espalharia e toda a população do povoado
seguinte compareceria para ouvi-los. Que método mais persuasivo de
im por a religião!
Jesus, porém, rejeitou categoricam ente essa sugestão. O versículo
seguinte diz: “Ele, porém, voltando-se, repreendeu-os” (Lc 9.55).
Jesus recusou de modo claro qualquer tentativa de obrigar as pessoas
a segui-lo ou crer nele.
3. Não há como impor a fé autêntica
H á coerência entre a natureza da fé autêntica e a condenação por Jesus
do uso de “fogo do céu” para obrigar as pessoas a segui-lo. Por trás
dessa condenação está o fato de que a verdadeira f é em Deus deve ser
voluntária. Para que a fé seja autêntica, não pode ser imposta à força.
Encontramos aqui outra razão pela qual os governos não devem, ja
m ais, tentar obrigar o povo a aderir a determinada religião.
Ao longo de todo o m inistério de Jesus e dos apóstolos, fica evidente seu respeito pela vontade individual e pelas decisões voluntárias
das pessoas. Eles as ensinavam ,procuravam convencê-las e fa z ia m apelos
para que tomassem a decisão pessoal de seguir Jesus como o verdadeiro M essias (cf. M t 11.28-30; At 28.23; Rm 10.9,10; Ap 22.17).
A verdadeira crença religiosa não pode ser imposta à força, seja
por meio de fogo do céu, seja pelo poder do governo civil, e os cristãos não devem participar de tentativas do governo de usar seu poder
para obrigar as pessoas a apoiar ou seguir o cristianismo ou qualquer
outra religião.
M as e quanto às leis que Deus deu a Israel no Antigo Testamento,
especialmente em Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio? Elas
exigiam que o povo entregasse o dízimo para sustentar o sacerdócio
judaico e o culto no templo e que oferecessem ao Senhor anualmente
os sacrifícios especificados (cf. Lv 23). Ordenavam até mesmo castigos severos para quem tentasse ensinar outra religião (cf. D t 13.6-11).
Contudo, aplicavam-se apenas à nação de Israel naquela época específica.
Jam ais foram impostas às nações vizinhas. Faziam parte do sistema do Antigo Testamento, que chegou ao fim quando Jesus firmou uma
“nova aliança” para o povo de Deus no Novo Testamento. O antigo sistema se encerrou com o ensinam ento de Jesus de que algumas
áreas da vida eram “de C ésar” e outras, “de D eus”. N unca se pretendeu que as leis do A ntigo Testamento com essas imposições religiosas fossem aplicadas depois de Jesus ter firmado sua “nova aliança”
ou em qualquer outro momento subsequente.
4. Um reino que não é deste mundo
Em outro episódio, logo depois que foi preso pelos soldados romanos,
perto de sua morte, Jesus disse ao governador romano Pôncio Pilatos:
“O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo,
os meus servos lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus.
Entretanto, agora, o meu reino não é daqui” (Jo 18.36).
Jesus não permitiu que seus discípulos lutassem com espadas
nem usassem poder m militar, pois seu objetivo não era estabelecer um reino
terreno, como o Império Romano ou várias outras nações na história do
mundo. Enquanto os reinos terrenos são estabelecidos por exércitos
e por poder militar, o reino de Jesus seria estabelecido pelo poder do
evangelho que transforma o coração das pessoas e as leva a crer nele
e lhe obedecer.
Isso não significa que o reino de Deus não exerce influência alguma
sobre o mundo. Na verdade, ele transforma e vence o mundo (lJo 3.8;
5.4,5), mas o faz ao mudar o coração das pessoas e suas convicções mais
profundas, e não por meio do poder militar. O poder do governo jam ais
deve ser usado para impor determinada crença religiosa ou a adesão a
uma religião específica, seja a fé cristã, seja qualquer outra fé.
Em resumo, a visão de impor a religião é contrária à Bíblia e equivocada.
5. Implicações práticas de rejeitar a
visão de impor a religião
Quais são as implicações práticas de rejeitar a visão de impor a religião? Uma das implicações é que o governo não deve, em momento
algum , tentar obrigar as pessoas a crer num a religião específica ou
é um caso de imposição da religião? Nos Estados Unidos, por exemplo, as igrejas não pagam impostos sobre seus terrenos e construções, e
segui-la; antes, deve garantir a liberdade religiosa para os seguidores
de todas as religiões dentro da nação.
Outra implicação é que os cristãos de todas as nações devem
apoiar a liberdade religiosa e se opor a qualquer tentativa do governo
de impor determinada religião. Aliás,plena liberdade religiosa deve ser
o primeiro princípio apoiado e defendido pelos cristãos que almejam pessoas físicas não pagam impostos sobre a parte de sua renda doada
a igrejas ou a outras instituições beneficentes.
Não tenho objeção a essas políticas, pois, a meu ver, não impõem.
a religião de maneira relevante. Nenhuma denominação ou religião
recebe tratamento preferencial. Tanto igrejas batistas como templos
budistas, sinagogas judaicas, igrejas católicas e mesquitas muçulmanas
desfrutam esses benefícios. Essas isenções fiscais oferecidas a igrejas
e instituições beneficentes se baseiam na decisão da sociedade de que
organizações desse tipo contribuem de modo considerável para o bem
da sociedade como um todo. Nas palavras clássicas do prefácio da
Constituição dos Estados Unidos da América, elas “promovem o bem-
-estar geral”. Logo, é inteiram ente aceitável que a sociedade resolva
oferecer certos benefícios fiscais de modo igual a todas as religiões. Não
se trata de apoio compulsório a um a religião, nem de entregar recursos do governo diretamente a determinados grupos religiosos e, sem
dúvida, não contraria o significado e a intenção da Prim eira Emenda.
Oferecer benefícios fiscais não é o mesmo que impor um a religião.
7. A influência espiritual por trás da
visão de impor a religião
Por trás dessa visão de impor a religião, há um poder espiritual invisível com um objetivo oculto, que se manifesta em seus resultados. Ao
impor a crença religiosa, cria-se a tendência de destruir a verdadeira
fé cristã de duas maneiras. O brigar as pessoas a seguir uma f é não cristã
(como o hinduísmo na índia ou o islamismo em muitos outros países),
resulta, com frequência, na opressão dos cristãos e na tentativa de
expulsar o cristianismo do país. Em contrapartida, procurar obrigar
as pessoas a tornarem-se cristãs também tem a tendência de expulsar
o verdadeiro cristianismo, pois remove da vida das pessoas a oportunidade de escolher voluntariam ente seguir a fé cristã. Alguns terão
fé autêntica, mas a maioria não. Como resultado, sociedades inteiras
tornam -se “cristãs”, mas apenas de nome. A igreja é governada, então,
por “cristãos” que na verdade não o são, pois carecem de fé autêntica. E uma igreja governada principalmente por não cristãos não demora
a se tornar espiritualmente morta e ineficaz.
Logo, os cristãos que acreditam nos ensinamentos da Bíblia não
terão dificuldade em discernir a influência espiritual por trás da visão
de impor a religião. E um a influência inteiram ente contrária ao ensino
bíblico e à fé cristã autêntica. É um a influência que procura destruir
o cristianismo Política Segundo a Bíblia,,São Paulo :Vida Nova, 2016.p. 25-35
Existe entre alguns cristãos norte-americanos de hoje um conceito
chamado “teonomia”, também conhecido como “reconstrucionismo
cristão” ou “teologia do domínio”. Seus críticos chamam-na de dominionismo (com tons de “jihadismo”). Usarei aqui a designação “teonomia”, termo geral empregado nas análises teológicas desse movimento
Os teonomistas argumentam que as leis dadas por Deus a Israel
na aliança mosaica devem servir de modelo para as leis civis dos países
hoje em dia. Se colocado em prática, esse modelo incluiria a aplicação
da pena de morte para casos de blasfêmia, adultério e conduta homossexual, entre outros!
O erro dos teonomistas consiste numa interpretação equivocada do lugar singular que essas leis dadas a Israel ocuparam na história da Bíblia como um todo. Também consiste numa interpretação equivocada do ensino neotestamentário acerca da distinção entre o
âmbito da Igreja e o âmbito do Estado, instituída por Jesus quando
ele disse: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”
(M t 22.21). (Para um a discussão mais detalhada do lugar singular
ocupado pela lei mosaica, cf. cap. 3, p. 117-121)
Os mais destacados defensores da teonomia foram Rousas John
Rushdoony (1916-2001)7 e Greg Bahnsen (1948-1995);8 Vern Poythress9
e John Frame,10 por sua vez, ofereceram análises críticas desse conceito.
Alguns críticos seculares da influência cristã sobre a política e o
governo afirmam infundadam ente que os evangélicos em geral procuram seguir a teonomia ou “teologia do domínio” e os acusam de querer
impor essas ideias teonomistas extremadas nos Estados Unidos: cf.
Michelle Goldberg, Kingdom Corning: the Rise o f Christian Nationalism
[Reino vindouro: a ascensão do nacionalism o cristão].11 Essas acusações se baseiam , porém, em estudos acadêmicos pouco rigorosos e na
culpa por associação. Não sei de cristão algum com influência expressiva no mundo evangélico ou no mundo político de hoje, nos Estados
Unidos, que defenda os conceitos da pequena minoria de teonomistas
ou reconstrucionistas cristãos no tocante à imposição, pelo governo
civil atual, dessas leis do Antigo Testamento. Política Segundo a Bíblia,,São Paulo :Vida Nova, 2016p. 92-93
Se os governos são responsáveis diante de Deus por punir o mal e
incentivar o bem, não é apropriado que usemos as leis abrangentes
dadas por Deus à nação de Israel no Antigo Testamento para entender
melhor como os governos devem atuar?
Não há como fazer isso de modo direto e sem grande dificuldade,
pois as leis para Israel ocupam um lugar especial na Bíblia como um
todo. Eis um resumo dos motivos pelos quais essa ideia cria problemas
para os intérpretes atuais.
Os livros veterotestamentários de Exodo, Levítico, Números e
Deuteronômio registram diversas leis dadas por Deus especificamente
à nação de Israel. Elas fazem parte da “aliança mosaica”, pois Deus as
entregou a Moisés, que as transmitiu ao povo. (Na Bíblia, “aliança” é
a relação legalmente estabelecida entre Deus e seu povo, e as leis da
aliança mosaica passaram a definir essa relação a partir do tempo de
Moisés.) Entender de que maneira exatamente as leis de Israel poderiam ser relevantes para os governos civis seculares de hoje é um a das
questões mais complexas da interpretação bíblica por vários motivos:
1) O lugar de Israel'.
A interpretação correta das leis de Israel
requer um a compreensão m adura tanto do lugar que a nação de Israel
ocupa na história da Bíblia como dos propósitos de Deus para Israel na
história do mundo.
2) Israel como teocracia'.
A interpretação correta das leis de Israel
também requer compreensão do caráter singular de Israel, que devia ser “reino de sacerdotes e nação santa” para Deus (Ex 19.6). Essa
nação era um a teocracia governada pelo próprio Deus e, portanto, as
leis de Israel regulamentavam a vida religiosa do povo de Deus (como os
sacrifícios, as festas e o culto ao único Deus verdadeiro), bem como as questões que, em todas as eras da história, costumam ser associadas ao
governo civil.
3) O juízo final de Deus intervém na história presente.
A interpretação correta das leis de Israel requer, ainda, a compreensão de alguns
exemplos incomuns nos quais o juízo divino “irrompe” subitamente
na história humana. Na verdade, mesmo antes do estabelecimento de
Israel como nação, há alguns casos de intervenções repentinas do juízo
de Deus na história para punir de imediato a pecaminosidade humana.
O relato do Dilúvio e da arca de Noé (Gn 6— 9) é um exemplo desse
tipo de juízo. O relato de Sodoma e Gomorra (cf. Gn 19.24-28), no
qual Deus destruiu essas cidades com logo e enxofre do céu, é outro.
E a narrativa da destruição das cidades de Canaã pelo povo de Israel
é ainda outro exemplo, um acontecimento singular sob a direção de
Deus (cf. D t 20.16-18; contrastar com os v. 10-15, em que esse tipo de
guerra é proibido em outros casos). A guerra de conquista e destruição
de Canaã foi realizada por ordem específica de Deus e fazia parte do
plano para estabelecer seu povo na terra que ele havia lhes prometido.
Também prefigurou o juízo divino final e absoluto sobre toda a terra.
Não deve, contudo, servir de modelo para os governos civis de hoje. É
historicamente singular.
4) Aplicação extensa da pena de morte. A interpretação correta das
leis de Israel requer a compreensão de outro aspecto singular dessas
leis, a saber, a imposição da pena de morte não apenas para crimes de
homicídio (como em Gn 9.5,6), mas em casos de promoção de uma
falsa religião (cf. Êx 22.18,20; Lv 20.22; D t 13.6-17), rebelião contra
a autoridade fam iliar (cf. Éx 21.15,17; D t 21.18-21) e pecados sexuais
(Lv 20.10-14). Esses e outros exemplos da pena de morte faziam parte
da identidade de Israel como “nação santa” (Ex 19.6) diante de Deus,
mas isso não significa que as nações de hoje, que não são teocracias
nem “nações santas” diante de Deus, devam procurar seguir esses
exemplos. Na verdade, a narrativa histórica do Antigo Testamento
mostra que essas leis e penas severas não foram capazes de formar um
povo verdadeiramente santo, pois não mudavam o coração das pessoas
(cf. Jr 31— 33; Rm 8.3,4; G1 3.21-24). As penas severas para infrações religiosas, rebelião contra a família e pecados sexuais não devem servir
de norma para os governos de hoje.
5) Conclusão. Caso se mantenha em vista essas distinções, as leis
que Deus deu a Israel podem fornecer informações úteis para a compreensão dos propósitos do governo e da natureza dos bons e dos
maus governos. Em trechos adiante, procurei usar esse material de
modo pensado, atentando para o contexto histórico singular em que
ele ocorre. Devemos lembrar ainda que, em comparação com as leis
e os costumes das nações vizinhas no Antigo O riente Próximo, as
leis que Deus deu a Israel eram um modelo extraordinário de justiça,
imparcialidade, compaixão pelos pobres e oprimidos e de como a verdadeira santidade de vida pode ser praticada no quotidiano. De fato,
Moisés disse ao povo de Israel: “E que grande nação há que tenha
estatutos e preceitos tão justos quanto toda esta lei que hoje ponho
diante de vós?” (D t 4 .8 ).1
Embora as prescrições específicas da lei mosaica em Exodo- Deuteronômio visassem à aplicação direta sobre Israel naquela época,
alguns outros trechos do Antigo Testamento não são dirigidos especificamente ao povo judeu, mas falam de reis e governos em termos
gerais. Só em Provérbios, por exemplo, o termo “rei” ocorre em 32
versículos e há outras referências em Salmos e Eclesiastes. Esses versículos trazem palavras adicionais de sabedoria sobre o governo civil
aplicáveis a casos específicos.
Mas e quanto à ordem para guardar o sábado? Quando falo a respeito da influência cristã sobre o governo, por vezes alguém pergunta
se os governos de hoje devem impor a ordem para não trabalhar aos
sábados que encontramos nos Dez Mandamentos, em Êxodo: “Lem -
bra-te do dia de sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás e farás o
teu trabalho; mas o sétimo dia é o sábado do S e n h o r teu Deus. Nesse
dia não farás trabalho algum ” (Êx 20.8-10).
'Para uma discussão mais detalhada, cf. Christopher W right, OLd Testament Ethics for the People of God, Downers Grovc: InterVarsitv Press, 2004; W alter C. Kaiser,
T o w a r d O/d Testament Ethics, Grand Rapids: Zondervan, 1991; Gordon Wenham,
Story as Torah : Reading Old Testament Narrative Ethically, Grand Rapids: Baker, 2000. H á vários séculos, existem diferenças sinceras de opinião entre
os cristãos acerca da aplicação desse mandamento. Para alguns, é um
requisito que os cristãos ainda devem cumprir hoje e, a seu ver, é pecado
contra Deus trabalhar no domingo. A meu ver, porém, o mandamento
do sábado é diferente dos outros nove mandamentos no sentido de
que é um resumo de todas as leis cerimoniais dadas por Deus a Israel
e abrange o ano sabático, o ano do jubileu e todos os sacrifícios e
ofertas que o povo de Israel devia apresentar a Deus. Considere estes
ensinamentos de Paulo: “Assim , ninguém vos julgue pelo comer, ou
pelo beber, ou por causa de dias de festa, ou de lua nova, ou de sábados,
os quais são sombras das coisas que haveriam de vir; mas a realidade é
C risto” (C l 2.16,17); “Guardais dias, meses, tempos e anos. Temo que
eu talvez tenha trabalhado inutilmente para convosco” (G1 4.10,11).
Concluo, portanto, que a exigência de não trabalhar no sábado
era um a “lei cerimonial”, como as leis sobre os sacrifícios às quais não
precisamos mais obedecer. Logo, não sou a favor de que o governo crie
leis que proíbam empresas de funcionar aos domingos.
Quer dizer que sou a favor de que as pessoas trabalhem sete dias
por semana? Não. No tempo do Antigo Testamento, a sabedoria e o
amor de Deus por seu povo se refletiam em sua dádiva generosa de
um dia entre sete em que o povo de Israel não precisava trabalhar.
Diante disso, parece uma prática prudente os cristãos da presente
era do Novo Testamento darem o exemplo, separando um dia da semana para não trabalhar. (Talvez seja o domingo, mas para pastores e
outros que trabalham no domingo talvez seja outro dia da semana.)
Também é prudente os empregadores darem aos funcionários dias de
folga do trabalho, pelo menos uma vez por semana (e, com frequência, duas, pois os “afazeres” pessoais muitas vezes também tomam um
dia inteiro). Trata-se, contudo, de uma questão de sabedoria humana
norteada pela Bíblia, e não de pecado ou de regra absoluta que jam ais
pode ser quebrada.
Outros cristãos discordam de meu ponto de vista sobre esse
assunto e afirmam que Deus ainda exige que nunca trabalhem aos
domingos. Respeito sua coragem e fé e sei que essas convicções levam
alguns deles a manter suas empresas fechadas aos domingos. (Nos
PRINCÍPIOS BÍBLICOS A RESPEITO DO GOVERNO 121
Estados Unidos, Chick -Fil-A e Hobby Lobby são dois exemplos de
empresas grandes de comércio varejista que fecham aos domingos.)
Não creio, porém, que todos os cristãos sejam obrigados a adotar essa
postura e também não apoiaria leis que exigissem que todo o comércio
varejista fechasse aos domingos (como costumava acontecer em várias
regiões dos Estados Unidos).
Paulo escreve em sua Epístola aos Romanos, provavelmente com
respeito a uma questão sem elhante: “U m a pessoa considera um dia
mais importante do que outro, mas outra ju lga iguais todos os dias.
Cada um esteja inteiram ente convicto em sua m ente” (Rm 14.5). Política Segundo a Bíblia,,São Paulo :Vida Nova, 2016pp. 117-121
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