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domingo, 28 de março de 2021

Negação ou Minimização na pandemia. A responsabilidade do governo Federal.




Conteúdo do artigo:

Este artigo contém documentos que mostram e esclarecem:


1-A responsabilidade pela saúde  cabe a quem?

2- Qual a responsabilidade do governo federal?

3- O STF tirou poderes ao presidente ou defendeu o presidente da ação do PDT

4- Negacionismo da segunda onda e suas consequências

5- Minimização da pandemia

6- A recusa inicial de comprar a Coronavac mesmo com a aprovação da Anvisa

7- Mourão admite a politização da vacina por parte do governo numa entrevista à revista Veja:

Conceitos preliminares -Introdução


"Minimização= Ato ou efeito de minimizar, de reduzir ao mínimo" 

"Negação= ato ou efeito de nega; o que se nega, o que não se admite como verdade; negativa"  (Dicionário Eletrônico Houaiss)


Podemos observar recorrendo aos fatos que a pandemia do corona vírus tem sido acompanhada frequentemente de negação ou minimização da mesma ou de  seus aspectos,  o que tem levado a um número grande de mortos.



1-A responsabilidade pela saúde


A responsabilidade pela saúde é de competência do governo federal, estadual e municipal.  A Fundamentação Constitucional se encontra nos artigos 23 , 198, e lei 8080 - se desejar leia em azul


Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência; (Vide ADPF 672)

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;      (Vide ADPF 672)




Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: (Vide ADPF 672)

I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III - participação da comunidade.


Lei 8080- Lei Orgânica da Saúde

CAPÍTULO II

Dos Princípios e Diretrizes

Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:

I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;

II - integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema;

III - preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral;

IV - igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie;

V - direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde;

VI - divulgação de informações quanto ao potencial dos serviços de saúde e a sua utilização pelo usuário;

VII - utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática;

VIII - participação da comunidade;

IX - descentralização político-administrativa, com direção única em cada esfera de governo:

a) ênfase na descentralização dos serviços para os municípios;

b) regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde;

X - integração em nível executivo das ações de saúde, meio ambiente e saneamento básico;

XI - conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na prestação de serviços de assistência à saúde da população;

XII - capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de assistência; e

XIII - organização dos serviços públicos de modo a evitar duplicidade de meios para fins idênticos.

XIV – organização de atendimento público específico e especializado para mulheres e vítimas de violência doméstica em geral, que garanta, entre outros, atendimento, acompanhamento psicológico e cirurgias plásticas reparadoras, em conformidade com a Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013(Redação dada pela Lei nº 13.427, de 2017)


2- Qual a responsabilidade do governo federal?

  • definir e organizar vigilância epidemiológica e sanitária
  • definir e coordenar redes integradas de assistência de alta complexidade;
  • estabelecer normas em aeroportos, portos e fronteiras
  • formular, avaliar, elaborar normas e participar na execução da política nacional e produção de insumos e equipamentos para a saúde,
  • cooperação técnica
  • cooperação financeira aos estados e municípios
  • acompanhar. controlar e avaliar ações dos serviços de saúde
  • elaborar plano estratégico nacional




CAPÍTULO III

Da Organização, da Direção e da Gestão

Art. 8º As ações e serviços de saúde, executados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), seja diretamente ou mediante participação complementar da iniciativa privada, serão organizados de forma regionalizada e hierarquizada em níveis de complexidade crescente.


Art. 16. A direção nacional do Sistema Único da Saúde (SUS) compete:

I - formular, avaliar e apoiar políticas de alimentação e nutrição;

II - participar na formulação e na implementação das políticas:

a) de controle das agressões ao meio ambiente;

b) de saneamento básico; e

c) relativas às condições e aos ambientes de trabalho;

III - definir e coordenar os sistemas:

a) de redes integradas de assistência de alta complexidade;

b) de rede de laboratórios de saúde pública;

c) de vigilância epidemiológica; e

d) vigilância sanitária;

IV - participar da definição de normas e mecanismos de controle, com órgão afins, de agravo sobre o meio ambiente ou dele decorrentes, que tenham repercussão na saúde humana;

V - participar da definição de normas, critérios e padrões para o controle das condições e dos ambientes de trabalho e coordenar a política de saúde do trabalhador;

VI - coordenar e participar na execução das ações de vigilância epidemiológica;

VII - estabelecer normas e executar a vigilância sanitária de portos, aeroportos e fronteiras, podendo a execução ser complementada pelos Estados, Distrito Federal e Municípios;

VIII - estabelecer critérios, parâmetros e métodos para o controle da qualidade sanitária de produtos, substâncias e serviços de consumo e uso humano;

IX - promover articulação com os órgãos educacionais e de fiscalização do exercício profissional, bem como com entidades representativas de formação de recursos humanos na área de saúde;

X - formular, avaliar, elaborar normas e participar na execução da política nacional e produção de insumos e equipamentos para a saúde, em articulação com os demais órgãos governamentais;

XI - identificar os serviços estaduais e municipais de referência nacional para o estabelecimento de padrões técnicos de assistência à saúde;

XII - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde;

XIII - prestar cooperação técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o aperfeiçoamento da sua atuação institucional;

XIV - elaborar normas para regular as relações entre o Sistema Único de Saúde (SUS) e os serviços privados contratados de assistência à saúde;

XV - promover a descentralização para as Unidades Federadas e para os Municípios, dos serviços e ações de saúde, respectivamente, de abrangência estadual e municipal;

XVI - normatizar e coordenar nacionalmente o Sistema Nacional de Sangue, Componentes e Derivados;

XVII - acompanhar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde, respeitadas as competências estaduais e municipais;

XVIII - elaborar o Planejamento Estratégico Nacional no âmbito do SUS, em cooperação técnica com os Estados, Municípios e Distrito Federal;

XIX - estabelecer o Sistema Nacional de Auditoria e coordenar a avaliação técnica e financeira do SUS em todo o Território Nacional em cooperação técnica com os Estados, Municípios e Distrito Federal. (Vide Decreto nº 1.651, de 1995)

Parágrafo único. A União poderá executar ações de vigilância epidemiológica e sanitária em circunstâncias especiais, como na ocorrência de agravos inusitados à saúde, que possam escapar do controle da direção estadual do Sistema Único de Saúde (SUS) ou que representem risco de disseminação nacional.

3- O STF tirou poderes do presidente?
Bolsonaro mentiu numa entrevista a Datena:
"Fui impedido pelo STF de fazer qualquer ação em combate ao coronavirus  em estados e municípios Canal do Datena. 31'13-32  https://www.youtube.com/watch?v=lPvKinvRO8s


"Lembro à Nação que, por decisão do STF, as ações de combate à pandemia (fechamento do comércio e quarentena, p.ex.) ficaram sob total responsabilidade dos Governadores e dos Prefeitos."  twitter 8 de junho de 2020   https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1269942255298777095?s=20



 Na verdade o STF deu de ganho de causa ao Governo Federal numa ação do PDT que questionava a medida provisória 926/2020. Esta medida falava de isolamento, quarentena, e outras restrições. Se desejar ler a decisão na íntegra acesse    http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI6341.pdf 



Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas:

 I – isolamento; II – quarentena […] VI - restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de: a) entrada e saída do País; b) locomoção interestadual e intermunicipal; […]  Medida Provisória 926/2020

 

Também não vinga o articulado quanto à reserva de lei complementar. Descabe a óptica no sentido de o tema somente poder ser objeto de abordagem e disciplina mediante lei de envergadura maior. Presentes urgência e necessidade de ter-se disciplina geral de abrangência nacional, há de concluir-se que, a tempo e modo, atuou o Presidente da República – Jair Bolsonaro – ao editar a Medida Provisória. O que nela se contém – repita-se à exaustão – não afasta a competência concorrente, em termos de saúde, dos Estados e Municípios. Surge acolhível o que pretendido, sob o ângulo acautelador, no item a.2 da peça inicial, assentando-se, no campo, há de ser reconhecido, simplesmente formal, que a disciplina decorrente da Medida Provisória nº 926/2020, no que imprimiu nova redação ao artigo 3º da Lei federal nº 9.868/1999, não afasta a tomada de providências normativas e administrativas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios. http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI6341.pdf 



A Secretaria de Comunicação Social do Supremo Tribunal Federal (STF) esclarece que não é verdadeira a afirmação que circula em redes sociais de que a Corte proibiu o governo federal de agir no enfrentamento da pandemia da Covid-19.

Na verdade, o Plenário decidiu, no início da pandemia, em 2020, que União, estados, Distrito Federal e municípios têm competência concorrente na área da saúde pública para realizar ações de mitigação dos impactos do novo coronavírus. Esse entendimento foi reafirmado pelos ministros do STF em diversas ocasiões. acesso em 28/03/2021

Ou seja, conforme as decisões, é responsabilidade de todos os entes da federação adotarem medidas em benefício da população brasileira no que se refere à pandemia. https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=458810&ori=1  


"O Partido Democrático Trabalhista (PDT), autor da ação, argumentava que a redistribuição de poderes de polícia sanitária introduzida pela MP 926/2020​ na Lei Federal 13.979/2020 interferiu no regime de cooperação entre os entes federativos, pois confiou à União as prerrogativas de isolamento, quarentena, interdição de locomoção, de serviços públicos e atividades essenciais e de circulação.

Em seu voto, o ministro Marco Aurélio reafirmou seu entendimento de que não há na norma transgressão a preceito da Constituição Federal. Para o ministro, a MP não afasta os atos a serem praticados pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios, que têm competência concorrente para legislar sobre saúde pública (artigo 23, inciso II, da Constituição). A seu ver, a norma apenas trata das atribuições das autoridades em relação às medidas a serem implementadas em razão da pandemia."
O relator ressaltou ainda que a medida provisória, diante da urgência e da necessidade de disciplina, foi editada com a finalidade de mitigar os efeitos da chegada da pandemia ao Brasil e que o Governo Federal, ao editá-la, atuou a tempo e modo, diante da urgência e da necessidade de uma disciplina de abrangência nacional sobre a matéria.  
https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=441447&ori=1 acesso em 28/03/2021




O ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal (STF), deferiu em parte pedido de liminar do Partido Democrático Trabalhista (PDT) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6341 para explicitar que as medidas adotadas pelo Governo Federal na Medida Provisória (MP) 926/2020 para o enfrentamento do novo coronavírus não afastam a competência concorrente nem a tomada de providências normativas e administrativas pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios.

Na ação, o PDT pedia a suspensão da eficácia de diversos dispositivos da MP 926/202. No entanto, para o ministro, a norma, diante do quadro de urgência e da necessidade de disciplina, foi editada a fim de mitigar a crise internacional que chegou ao Brasil. Essa parte do pedido foi indeferida.

Para o relator, a distribuição de atribuições prevista na MP não contraria a Constituição Federal, pois as providências não afastaram atos a serem praticados pelos demais entes federativos no âmbito da competência comum para legislar sobre saúde pública (artigo 23, inciso II). “Presentes urgência e necessidade de ter-se disciplina geral de abrangência nacional, há de concluir-se que, a tempo e modo, atuou o presidente da República ao editar a Medida Provisória”, https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=441447&ori=1  acesso em 28/03/2021

 




4- Segunda Onda

 4.1- Negacionismo


A maioria dos governantes, incluindo o presidente negaram de maneira direta, dizendo que não haveria segunda onda, ou de maneira prática não aumentando o numero de leitos.



Governo Federal

"Agora tem essa conversinha de segunda onda. Se tiver, tem que enfrentar. Se quebrar de vez, seremos um país de miseráveis" , disse Bolsonaro a apoiadores. 13/11/2020  https://www.terra.com.br/noticias/brasil/bolsonaro-reclama-de-conversinha-sobre-possivel-segunda-onda-da-covid-19,fcca6500160a587f0dfb2523986f959e6viu766m.html


 A pandemia realmente tá chegando ao fim. Os números têm mostrado isso aí. Estamos com uma pequena ascensão agora, o que chama de pequeno repique, pode acontecer. Mas a pressa da vacina não se justifica https://www.youtube.com/watch?v=NjWRPVu-QsU
De zero a 10, qual nota o senhor dá para o Brasil no combate à Covid-19? Oito. O Brasil é um país desigual: não é a França, não é Alemanha, não é a Espanha. Não tivemos segunda onda aqui. Nós estamos na primeira onda e a doença vai morrer nessa onda. Nosso sistema de saúde suportou a crise. Diziam que as pessoas iriam morrer na rua.   https://veja.abril.com.br/paginas-amarelas/mourao-aposta-que-governo-comprara-vacina-chinesa-logico-que-vai/

Além do governo federal alguns governadores e prefeitos negaram a segunda onda como por exemplo o estado e a cidade de São Paulo: 

Governo Estadual

"Primeiro, não existe segunda onda no estado. Nós temos aqui uma situação onde temos em cerca de 10 casos a cada 100 mil habitantes e os países que estão nessa segunda ou até terceira onda estão registrando mais de 50 casos a cada 100 mil habitantes. O que está acontecendo na Europa e nos Estados Unidos é muito assustador. Então, de fato, a gente acaba vendo aquilo e fica esperando isso acontecer aqui, mas estamos muito longe disso. Para que nós tivéssemos uma situação parecida, o número de internações teria que crescer cinco vezes. Se isso acontecer, é óbvio que vamos ter que ter medidas muito muito restritivas e não é o caso nesse momento." https://www.ovale.com.br/_conteudo/nossa_regiao/2020/11/117444--nao-existe-segunda-onda-em-sp---garante-secretaria-patricia-ellen.html

Proifes - Federação de Sindicatos de Professores e Professoras de Instituições
Federais de Ensino Superior e de Ensino Básico Técnico e Tecnológico. acesso em 28/03/2021 https://www.proifes.org.br/artigos/covid-19-situacao-nos-27-estados-brasileiros-em-06-de-dezembro-de-2020


O governo de São Paulo, assim como os outros Estados não se preparou para a segunda onda, pelo contrário a negouhttps://theintercept.com/2020/11/27/doria-segunda-onda-covid-19-chegou-a-sp-antes-do-primeiro-turno/

Depois o governador de São Paulo admitiu a segunda onda:
Tenho que fazer um alerta e um apelo. Alerta é a circunstância de segunda onda da Covid-19, que chegou ao Brasil e mundo. Não tínhamos essa expectativa até outubro, mas São Paulo, Brasil e 215 países lamentavelmente estão vivendo a segunda onda deste vírus"
, afirmou. Fonte: Saúde - iG @ https://saude.ig.com.br/2021-01-06/doria-diz-que-sao-paulo-esta-vivendo-2-onda-de-covid-19-teremos-ano-dificil.html


Governo Municipal

O prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB), que disputa a reeleição, afirmou há pouco que não há uma segunda onda de covid-19 na cidade e que os indicadores da pandemia estão estáveis. A declaração do prefeito acontece no momento em que a Fundação Seade mostra um aumento de 29% nos casos na capital paulista....“Vamos mostrar que não há segunda onda na cidade e que há estabilidade da pandemia.”


 "...não há indício de segunda onda na cidade de São Paulo" Assista o vídeo da entrevista :





4.2 Consequência do negacionismo da segunda onda.

  • Falta de leitos, 
  •  oxigênio 
  • medicamentos para intubação
O presidente do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde), Carlos Lula, disse hoje, em entrevista à CNN Brasil, que teme pela falta de oxigênio e kit intubação com o avanço da pandemia do novo coronavírus no Brasil. De acordo com Lula, é preciso planejamento do Ministério da Saúde para minimizar o risco de desabastecimento de itens básicos para o atendimento de pacientes com covid-19, principalmente em cidades afastadas dos grandes centros urbanos.... -
Veja mais em https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/03/22/conass-teme-por-falta-de-oxigenio-e-kit-intubacao-e-cobra-resposta-da-saude.htm?cmpid=copiaecola


4.3 -O CNS (Conselho Nacional de Saúde) que mostra que o Governo foi negligente



“Estamos vivendo uma piora com o crescimento da doença em quase todos os estados, em especial nas regiões mais populosas. O país está flexibilizando o distanciamento social na contra-mão do que deveria ser feito”, disse o conselheiro Artur Custódio

O Brasil está perto de atingir a triste marca de 180 mil mortos por Covid-19. Boa parte poderia ter sido evitada se o Estado tivesse um plano real de enfrentamento à pandemia, o que não houve até agora. Nos últimos meses, a curva de novas infecções indicou tendência de queda, porém, mais recentemente há uma piora nos indicadores em quase todos os estados. Durante live do Conselho Nacional de Saúde (CNS), ocorrida nesta quarta (9/12), especialistas concluíram que podemos estar vivendo uma 2ª onda sem que a primeira tenha terminado.
CNS



5- Minimização da pandemia

a- "O poder destruidor do vírus foi superdimensionado" 
tem a questão do corona vírus, que no meu entender esta sendo superdimensionado, o poder destruidor desse desse vírustá certo, então, talvez esteja sendo potencializado e até por questões econômicas.Mas acredito que obrasil não é que vai dar certo, já deu certo não deu certo. Em evento nos Estados Unidos- 9 de março de 2020    https://www.youtube.com/watch?v=BqcuI9XKMbI
b- "Epidemia é muito mais fantasia, não é tudo isso.."

"Durante o ano que se passou, obviamente, tivemos momentos de crise. Muito do que tem ali é muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propaga. pelo mundo todo " 10 de março em 2020 em Miami   https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/03/em-evento-esvaziado-nos-eua-bolsonaro-nega-crise-e-diz-que-problemas-na-bolsa-acontecem.shtml  https://www.youtube.com/watch?v=Ai742dM_tNA


c- só vão morrer 800 pessoas, não se pode comparar o Brasil com a Itália


" Você não pode comparar o Brasil com a Itália, eu pergunto a você: você sabe quantos habitantes temos  por km quadrado na Itália? são 200 habitantes por km quadrado, na Alemanha são 230 habitantes, no Brasil 24. Há uma diferença enorme entre esses países; mais importante que economia é a nossa vida,  não podemos extrapolar na dose, porque com os emprego aí ele acontecendo a catástrofe será maior, e mais ainda o número de pessoas que morreram de H1M1no ano passado foram aqui 800 pessoas a previsão é não chegar a essa quantidade de vítimas no tocante ao corona vírus"  22 de mar. de 2020  https://www.youtube.com/watch?v=NKUY8ez5yXQ&t=216s

 c- "brasileiro não pega nada"

"e até porque o brasileiro tem que ser estudado, ele não pega nada, vê um cara  pulando em esgoto ali sai mergulha;  Tá certo ! e não acontece nada com ele" 26 de março 2020 https://www.youtube.com/watch?v=lJTIb3vIR90

d- parece que a pandemia está começando a ir embora
" parece que está começando a ir embora a questão do corona vírus, mas tá chegando e batendo forte o desemprego..." 12 de abril
https://www.youtube.com/watch?v=T_kl-EMGkOw&t=117s


"estamos vivendo o finalzinho de pandemia" 10 de dezembro de 2020  https://www.youtube.com/watch?v=qSjW59MYIPA

e- "A pandemia foi superdimensionada"

"e entramos em 2020, tivemos o problema da pandemia que no meu entendimento foi  superdimensionado"  14 de outubro de 2020 
 https://www.youtube.com/watch?v=29HmNHBpbIM  https://www.cnnbrasil.com.br/business/2020/10/14/bolsonaro-diz-que-pandemia-foi-superdimensionada-e-que-economia-se-recupera

 “A pandemia foi superdimensionada. A manchete amanhã: ‘Não tem carinho, não tem sentimento’. Tenho sentimento com todos que morreram. Mas foi superdimensionado. Tudo o que eu falei sobre o vírus lá atrás, e eu apanhava como um cão sarnento em porta de igreja, se comprova que é verdade agora 10 de novembro de 2020    https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2020/11/10/a-pandemia-foi-superdimensionada-diz-bolsonaro

6- A recusa inicial de comprar a Coronavac mesmo com a aprovação da Anvisa

a- Pazuello registra intenção de compra.20/09

b- Bolsonaro  ordena o cancelamento 21/09

c-  secretário-executivo da pasta, Élcio Franco disse que houve erro na fala de Pazuello, que teria dado a entender que já havia a compra  21/9  https://www.youtube.com/watch?v=dQVuUpHJ6Ak

d- Bolsonaro confirma que mesmo com a aprovação da Anvisa não vai comprar a vacina  21/09  

e- O ministério da saúde mantém o acordoe compra a vacina em dezembro


O ministro Eduardo Pazuello anunciou na terça-feira 20/10/2020 a intensão de compra de 46 milhões de doses da Coronavac. A medida foi elogiada pelos governadores. Mas, na quarta-feira (21) cedo, em uma rede social, o presidente disse: 
"A vacina chinesa de João Doria, qualquer vacina antes de ser disponibilizada à população, deve ser comprovada cientificamente pelo Ministério da Saúde e certificada pela Anvisa. O povo brasileiro não será cobaia de ninguém. 
Não se justifica um bilionário aporte financeiro num medicamento que sequer ultrapassou sua fase de testagem.
- Diante do exposto, minha decisão é a de não adquirir a referida vacina."
 https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1318909799505985537?lang=en

 O grande problema é que o governo já havia investido 2 bilhoes de vacinas também em testes:

Apesar de a vacina ainda estar em fase de testes e não ter sido aprovada para uso em massa, o governo elaborou uma medida provisória solicitando ao Congresso a liberação de R$ 2 bilhões a serem gastos na luta contra a Covid-19. R$ 1,3 bilhão do montante era destinado a vacina de Oxford. https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/10/21/governo-tcu-vacina-oxford
"Caso a Anvisa aprove essa Vacina, se houver o registro, governo pode comprar essa vacina no futuro presidente?[pergunta o repórter ] A da China nós não compraremos, é decisão minha. Eu não acredito que ela transmita segurança suficiente para a população pela sua origem...

Quais são quais são os motivos que levaram a senhor a decidir não comprar a vacina da China? [pergunta outro repórter]
Credibilidade...A da China, lamentavelmente, já existe um descrédito muito grande por parte da população, até porque, como muitos dizem, esse vírus teria nascido lá." https://www.youtube.com/watch?v=1LWjRGijDyY

Contrariando nota enviada pelo próprio Ministério da Saúde na terça-feira, o secretário-executivo da pasta, Élcio Franco, afirmou nesta quarta, 21, que "houve interpretação equivocada da fala do ministro da Saúde (Eduardo Pazuello)" sobre a compra de doses da Coronavac e ressaltou que a pasta não firmou "qualquer compromisso com o governo do Estado de São Paulo ou com o seu governador no sentido de aquisições de vacinas contra a covid". A vacina é desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantã, vinculado ao governo paulista.

Em rápido pronunciamento feito na TV Brasil, sem a presença de Pazuello, que está em isolamento por suspeita de covid-19, Franco destacou ainda que "não há intenção da compra de vacinas chinesas", conforme o presidente Jair Bolsonaro já havia declarado em suas redes sociais nesta manhã....


Na terça, Pazuello havia anunciado, em reunião virtual com 27 governadores, a assinatura de protocolo de intenções para a compra de 46 milhões de doses da Coronavac ainda neste ano. A decisão foi comunicada oficialmente por meio de nota enviada pela assessoria de imprensa do órgão e publicada no site do ministério. No texto, a pasta deixou claro que a compra estava condicionada à aprovação do imunizante pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Mesmo assim, Franco usou o fato de a vacina ainda estar em testes para justificar o recuo da pasta na decisão de compra. "Em momento algum a vacina foi aprovada pela pasta, pois qualquer vacina depende de análise técnica e aprovação pela Anvisa, pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) e pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec)", declarou.

Apesar de ter negado acordo para compra de Coronavac, o secretário-executivo afirmou que houve um protocolo de intenções com o Butantã. “Tratou-se de um protocolo de intenção entre o ministério e o Instituto Butantan, sem caráter vinculante, por se tratar de um grande parceiro do ministério na produção de vacinas para o Programa Nacional de Imunizações. Mais uma iniciativa para tentar propor uma vacina segura e eficaz para a população, neste caso uma vacina brasileira caso fique disponível antes”, disse Franco.
 https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,houve-interpretacao-equivocada-da-fala-do-ministro-diz-secretario-do-ministerio-sobre-coronavac,70003483263



Bolsonaro disse ter  cancelado protocolo de intensão de compra  de 46 milhoes de doses da Coronavac, 
porque  não tinha liberação da ANVISA, porém havia comprado  doses de duas outras vacinas sem liberação da ANVISA,as vacinas AstraZeneca, de Oxford, e do consórcio Covax Facility receberam do governo R$ 4,4 bilhões.   https://www.youtube.com/watch?v=DhwT8Jh2sNI

" em julho de dois mil e vinte assinamos um acordo com a universidade Oxford para a produção na Fiocruz de 100 milhões de doses da vacina Astra zeneca, ...Em setembro de 2020 assinamos outro acordo com o consórcio Covax Facility para a produção de 42 milhões de doses...em dezembro liberamos mais 20 bilhões de reais o que possibilitou a aquisição da Coronavac  https://www.youtube.com/watch?v=PuV1HmkrCOw


7-  Mourão admite a politização da vacina por parte do governo numa entrevista à revista Veja:

Essa polêmica em relação à vacina produzida na China tem razão de ser? Essa questão da vacina é briga política com o Doria. O governo vai comprar a vacina, lógico que vai. Já colocamos os recursos no Butantan para produzir essa vacina. O governo não vai fugir disso aí. 

 

https://www.google.com/amp/s/veja.abril.com.br/paginas-amarelas/mourao-aposta-que-governo-comprara-vacina-chinesa-logico-que-vai/amp/



Conclusão:
Tanto o governo federal, quanto os estados e a maioria dos municípios não imprimiram uma politica efetiva de combate ao covid-19, nem se preparam para a segunda onda, pelo contrário predominou o minimalismo.

Qaunto ao governo federal durante todo o anos de 2020 o governo fez  a minimização da pandemia como mostra todas as fontes acima.






domingo, 14 de março de 2021

Teologia da Libertação- História, análise, influências, críticas, tendências atuais e documentos do vaticano.







Esse artigo inclui:

1- Introdução
2- Influencia da Teologia da Libertação no PT, CUT, JUC, JOC, MST
3- Simbiose do catolicismo com o marxismo
4-Contexto Histórico
5- Germe da Teologia da Libertação começa no Brasil
6- Teologia da libertação no Brasil
7- Declínio da Teologia da Libertação
8- Renovação e novos horizontes- negro, indigena,mulher, ecologia, economia
9-Crítica católica oficial - libertati nuntius
10-Conferência de Puebla
11- Carta do Papa João Paulo II- 1986
12-  Texto de Ratzinger antes da publicação de Libertatis Nuntius
13-Discurso João Paulo II sobre invasão de terras

1- INTRODUÇÃO


"Teologia da libertação , movimento religioso surgido no catolicismo romano do final do século 20 e centrado na América Latina . Procurou aplicar a religiosa ajudando os pobres e oprimidos por meio do envolvimento em assuntos políticos e cívicos. Enfatizou tanto o aumento da consciência das estruturas socioeconômicas “pecaminosas” que causam desigualdades sociais, quanto a participação ativa na mudança dessas estruturas.
 

Os teólogos da libertação acreditavam que Deus fala particularmente por meio dos pobres e que a Bíblia só pode ser entendida quando vista da perspectiva dos pobres. Eles perceberam que a Igreja Católica Romana na América Latina era fundamentalmente diferente da Igreja na Europa - isto é, que a Igreja na América Latina deveria estar ativamente engajada na melhoria da vida dos pobres. Para construir esta igreja, eles estabeleceram communidades de base, (“ comunidades de base ”), que eram grupos cristãos locais, compostos de 10 a 30 membros cada, que estudavam a Bíblia e tentavam atender às necessidades imediatas de seus paroquianos de comida, água, esgoto e eletricidade. Um grande número de comunidades de base, lideradas principalmente por leigos, surgiram em toda a América Latina.

O nascimento do movimento de teologia da libertação costuma ser datado da segunda Conferência Episcopal Latino-Americana, realizada em Medellín , Colômbia , em 1968. Nessa conferência, os bispos presentes publicaram um documento afirmando os direitos dos pobres e afirmando que as nações industrializadas enriqueceram às custas dos países em desenvolvimento. O texto seminal do movimento , Teología de la liberación (1971;A Teologia da Libertação ), foi escrito por Gustavo Gutiérrez , sacerdote e teólogo peruano. Outros líderes do movimento incluíram o padre brasileiro nascido na Bélgica José Comblin, Arcebispo Óscar Romero de El Salvador , teólogo brasileiroLeonardo Boff, estudioso jesuíta Jon Sobrino e arcebispoHelder Câmara do Brasil .

O movimento da teologia da libertação ganhou força na América Latina durante os anos 1970. Por causa de sua insistência de que o ministério deve incluir o envolvimento na luta política dos pobres contra as elites ricas, os teólogos da libertação foram frequentemente criticados - tanto formalmente, de dentro da Igreja Católica Romana, quanto informalmente - como fornecedores ingênuos do marxismo e defensores do ativismo social de esquerda . Na década de 1990, o Vaticano , sob o papa João Paulo II começou a refrear a influência do movimento com a nomeação de prelados conservadores no Brasil e em outras partes da América Latina.


https://www.britannica.com/topic/liberation-theology


2- Influencia da Teologia da Libertação no PT, CUT, JUC, JOC, MST



"A teologia da libertação é um conjunto de escritos publicados a partir de 1970 por uma série de autores, tais como Leonardo e Clodovis Boff, Hugo Assmann, Carlos Mesters, frei Betto, Jung Mo Sung e muitos outros.

Mas esse corpo de textos — parte de um movimento teológi­co latino-americano, representado por pensadores como Gustavo Gutierrez, Enrique Dussel, Jon Sobrino, Jorge Pixley, Ignacio Ellacuría, Pablo Richards — é apenas a ponta visível do iceberg, a ex­pressão cultural de um vasto movimento social que aparece no Brasil desde o começo dos anos 60 — bem antes da aparição dos primeiros livros da nova teologia. Esse movimento inclui setores significativos do clero — padres, freiras, ordens religiosas, bispos —, dos movi­ mentos religiosos leigos, como a Ação Católica, a Juventude Uni­ versitária Católica (JUC) e a Juventude Operária Católica (JOC), das comissões pastorais, como a Justiça e Paz, a Pastoral da Terra e a Pastoral Operária, e das comunidades eclesiais de base (CEBs).

Trata-se de uma ampla e complexa rede que ultrapassa os limites da Igreja como instituição e reúne, a partir dos anos 70, milhões de cristãos que partilham a “opção prioritária pelos pobres”. Sem a existência desse movimento social, que poderíamos designar pelo termo “cristianismo da libertação” — o que inclui ao mesmo tempo um  prática  social  emancipadora,  novas  formas  de  prática  religiosa e  uma  reflexão  espiritual  (mais  tarde  teológica)  que  corresponde  a essa experiência —, é impossível entender o conflito entre a Igre­ja e o regime militar ao longo dos anos 70, assim como, a partir de
1978, o espetacular surgimento de um novo movimento das classes subalternas,  dos trabalhadores da cidade e do  campo: o  Partido dos Trabalhadores (PT),  a Central Ünica dos Trabalhadores (CUT) e o  Movimento  dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).  Com efeito, grande parte dos militantes e quadros dirigentes dessas novas organizações vem das CEBs e pastorais populares, e é no cristianis­mo da libertação que se encontra a motivação primeira de seu com­ promisso social e de sua “mística” política. História do marxismo no Brasil – volume 6 Marcelo Ridenti e Daniel Aarão Reis (orgs.). São Paulo: Editora da Unicamp, 2007, p.p. 411-412

3- Simbiose do catolicismo com o marxismo

"Uma das principais “novidades” do cristianismo da libertação — objeto de críticas incessantes por parte do Vaticano e das correntes conservadoras da Igreja no Brasil — é a integração, em maior ou menor grau, de elementos fundamentais do marxismo. Obviamen­te, existe grande diversidade nesse terreno, que vai desde a des­confiança ou a hostilidade de alguns até a explícita autodefmição de grupos ou indivíduos como “cristãos marxistas” — passando por várias formas de prudente e implícita utilização de alguns aspectos. ’ A grande maioria dos militantes de base do cristianismo da liber­tação provavelmente nunca ouviu falar em Marx, mas isso não impede que em sua cultura político-religiosa se encontrem, mais ou menos diluídos, temas e conceitos do marxismo.

Evidentemente se trata de uma integração seletiva: são rejeitados elementos como  o  ateísmo  materialista e assimilados outros como a crítica ao capitalismo — em particular em sua forma dependente, no Brasil e na América Latina — e ao poder das classes dominantes, a inevitabilidade do  conflito  social e a perspectiva da auto-eman­cipação  dos explorados.  Como  veremos,  alguns teólogos tratarão de distinguir entre a “ciência” marxista, que pode ser utilizada como instrumento cognitivo, e a “filosofia” marxista, que deve ser rejeitada pelo  pensamento  cristão.  Entretanto,  essa  distinção  não  consegue dar conta do processo real de assimilação crítica do marxismo pelo cristianismo  da  libertação,  que  seleciona  positivamente  temas  fi­losóficos, como a filosofia da práxis ou o “princípio esperança” da utopia  social,  e  recusa  análises  supostamente  “científicas”  do  ma­terialismo histórico, como o desaparecimento inevitável da religião.

A descoberta do marxismo pela esquerda cristã não foi um pro­cesso puramente intelectual ou universitário. Seu ponto de partida foi um fato social evidente, uma realidade maciça e brutal no Brasil: a pobreza. O marxismo foi escolhido porque parecia oferecer a explicação mais sistemática, coerente e global das causas dessa po­breza e, ao mesmo tempo, uma proposta radical para sua supres­são. Para lutar de forma eficaz contra a pobreza e superar os limites da visão caritativa tradicional da Igreja, era necessário compreender suas causas. Como resumiu com ironia e humor dom Hélder Câ­mara: “Enquanto eu pedia às pessoas que ajudassem aos pobres, di­ziam que eu era um santo. Mas, quando fiz a pergunta: ‘Por que existe tanta pobreza?’, me chamaram de comunista”.

De maneira mais geral, não se pode deixar de constatar a exis­tência, entre a doutrina cristã e o marxismo, de certas “homologias estruturais”  —  uso  um  termo  da  sociologia  da  cultura  de  Lucien Goldmann  —  que  facilitaram  a  convergência.  Pode-se  dizer  que houve entre ambos uma relação de “afinidade eletiva” — no sen­tido que Weber deu a esse conceito para estudar a relação recíproca entre formas religiosas (a ética protestante) e econômicas (o espírito do capitalismo).1

Isto é, a partir de certas analogias ou correspondên­cias,  duas  estruturas  culturais  podem  —  em  certas  circunstâncias históricas favoráveis — entrar em uma relação ativa de atração mú­tua.  Não  se  trata  de  um  processo  unilateral  de  influência,  mas  de uma interação dinâmica, “dialética”, que pode levar em certos casos a uma simbiose ou mesmo fusão. Algumas das afinidades culturais entre marxismo e cristianismo são, por exemplo: 
1) a adesão a valores transindividuais   e   comunitários,   em   oposição   ao   individualismo liberal; 
2) uma doutrina de tipo  humanista/universalista (ecume­nismo, intemacionalismo); 
3) a crítica ao capitalismo e ao liberalismo econômico, em nome de valores ético-sociais; 
4) a simpatia ou soli­dariedade com o pobre e o oprimido; 
5) uma utopia do futuro como “reino” de justiça e paz, liberdade e fraternidade humana.

É  claro  que  esses  e  outros  elementos  comuns  têm  um  signifi­cado bastante diferente nos dois sistemas culturais e que as analogias estruturais  são  insuficientes,  em  si  mesmas,  para  que  se  dê  uma convergência  efetiva.  Por  exemplo,  nada  mais  distinto  do  “pobre” tal  como  o  define  a  doutrina  social  da  Igreja  tradicional  —  como objeto  de  caridade  e  paternal  proteção  —  que  o  proletariado,  tal como o entende o marxismo, isto é, como agente da transformação social.  As  “correspondências”  que  mencionamos  não  impediram  a Igreja de considerar o socialismo, o comunismo ou o marxismo ad­versários “intrinsecamente perversos” (para citar a famosa bula an­ ticomunista de Pio XII) da fé cristã." História do marxismo no Brasil – volume 6 Marcelo Ridenti e Daniel Aarão Reis (orgs.). São Paulo: Editora da Unicamp, 2007, p.412-414


4-Contexto Histórico
É  somente  graças  a  uma  conjuntura  histórica  particular  que  se vai dar, na América Latina e no Brasil, a partir do começo dos anos 60,  um  processo  de  aproximação  entre  marxismo  e  cristianismo, no qual as “analogias” formais se transformarão num processo ativo de  simbiose  por  “afinidade  eletiva”.  

Em  que consiste essa conjuntura? No ano de 1960 vão-se cruzar dois processos históricos inde­ndentes, mas cujos efeitos serão convergentes: 
1) a transformação interna da Igreja católica, com a eleição do papa João XXIII em 1958 e os primeiros passos em direção ao 11 Concílio do Vaticano, que modificará   substancialmente   a   cultura   católica;   2)   o   triunfo   da Revolução  Cubana  (1959)  —  com  um  programa  antiimperialista e,  logo  em  seguida,  socialista  —,  que  inaugura  um  ciclo  de  lutas sociais,  guerrilhas  e  insurreições  que  vai  durar  na  América  Latina até os anos 90 do século XX. A conjunção entre esses dois movi­ mentos históricos vai criar, a partir do começo dos anos 60, a “tem­peratura”  necessária  à  fusão  dos  dois  componentes  e  à  formação do cristianismo da libertação. História do marxismo no Brasil – volume 6 Marcelo Ridenti e Daniel Aarão Reis (orgs.). São Paulo: Editora da Unicamp, 2007, p.414


5- Germe da Teologia da Libertação começa no Brasil
Resta saber por que o Brasil é o país latino-americano em que surge, pela primeira vez — concretamente, no seio da JUC (Juventude Universitária Católica)—, essa nova corrente sócio-religiosa, e o país no qual ela terá maior influên­cia dentro da Igreja e na massa do “povo cristão” — o que está longe de ser o caso em outros países, como a Colômbia ou a Argentina. 

Não  é fácil explicar essa notável diferença,  mas podem-se apontar algumas hipóteses:
 1) o  Brasil é,  dos países do  continente,  aquele no qual o papel dos leigos e de suas organizações — Ação Cató­lica,  JUC etc.  —  era o  mais importante,  e os movimentos leigos são os primeiros a se interessar pelo marxismo e a buscar novas for­ mas de ação social; 

2) o catolicismo brasileiro sempre teve relações estreitas,  do  ponto  de vista cultural,  com o  catolicismo  francês — e não com o espanhol, como no resto do continente —, no seio do qual aparecem,  no  pós-guerra,  correntes de esquerda com grande influência intelectual e social: o  movimento  Economia e Huma­nismo,  do  padre Lebret,  o  personalismo  de Emmanuel Mounier, o  movimento  dos padres operários e a corrente socialista do  sindicato  Confederação  Francesa dos Trabalhadores Cristãos (Cftc), entre outros;

 3) o Brasil conhece, no começo dos anos 60, a crise do modelo populista, o desenvolvimento de lutas sociais no campo e na cidade e a influência crescente das idéias de esquerda no seio da juventude,  num contexto  de industrialização  dependente que agrava e intensifica as contradições sociais.
E nos documentos da JUC de 1960 que encontramos os primei­ros germes do  cristianismo  da libertação,  um discurso  que se refere à doutrina social da Igreja,  mas integra elementos essenciais do  marxismo.  A apropriação  do  marxismo  pelos jovens brasileiros se inspira, em certa medida, nos autores franceses já referidos, que contribuíram para legitimar o interesse cristão pelas idéias de Marx. Por exemplo,  numa conferência que proferiu  na Escola Livre de Sociologia e Política, em São Paulo (1947), o padre Lebret declarou: “A maioria das críticas que são feitas ao marxismo não pro cede”.2 E  no  capítulo  intitulado  “O marxismo  como  crítica do capitalismo”,  de seu  livro  Suicídio  ou  sobrevivência do Ocidente?, publicado  no  Brasil pela editora Duas Cidades em 1960,  ele res­ gata elementos fundamentais da teoria marxista.  Muitos cristãos brasileiros descobriram Marx lendo o livro do jesuíta francês Jean- Yves Calvez O pensamento  de Karl Marx, traduzido  em Portugal (Porto: Livraria Tavares Martins) em 1959, que manifesta simpatia pela crítica marxiana à alienação e à exploração capitalista. Essa obra se apresenta como uma exposição e uma crítica de Marx, mas, entre os dominicanos que a leram na época, a tendência era estudar apenas a primeira parte e passar por cima da segunda...3
O primeiro documento da “esquerda cristã”, que pode ser consi­derado o texto fundador do cristianismo da libertação no Brasil e em toda América Latina, foi “Algumas diretrizes para um ideal histórico para o povo brasileiro”, proposto pela Regional Centro-Oeste para a conferência dos dez anos da JUC, em 1960. Entre os redatores do documento — que se inspira em um texto anterior do padre Almeri Bezerra, mas vai muito além —, encontravam-se Herbert J. de Sousa, o Betinho, Vinícius Caldeira Brandt e outros dirigentes da JUC em Belo Horizonte. Embora o documento se refira a Emmanuel Mounier e a Tomás de Aquino, sua terminologia e suas análises são em grande parte de corte marxista: a partir de uma colocação “essencialmente anticapitalista e antiimperialista”, ele exige um “verdadeiro compromisso com as classes exploradas, em uma verdadeira negação da estrutura capitalista”.'1 

Como observa Márcio Moreira Alves em seu livro sobre a Igreja no Brasil, era o “esboço de um programa revolucionário”, que provocou “uma sur­presa gigantesca”.5
O marxismo da JUC, tal como aparece nesse texto e em outros semelhantes dos anos 1960-1962, distingue-se do então predomi­nante, o do Partido Comunista Brasileiro, não só pela referência ao cristianismo, mas também pela radicalidade de seu anticapitalismo, com forte conotação ético-religiosa: o capitalismo é rejeitado como sistema perverso, como “estrutura monstruosa, baseada em todos os tipos de abusos,  explorações e crimes contra a dignidade humana”.

Quando  os bispos condenam,  em nome da ortodoxia católica,  as opções da JUC boa parte de seus quadros forma,  em 1962,  a Ação  Popular (AP),  movimento  político  não-confessional dedicado  à luta pelo  socialismo  que terá bastante sucesso,  mas, depois de várias crises, dez anos mais tarde, boa parte de seus mili­tantes acabará por aderir ao  Partido  Comunista do  Brasil (então maoísta).7
O golpe militar de 1964 e a brutal repressão que se abate sobre toda a oposição, incluindo a esquerda cristã, provoca uma radica­lização, que se exprime na participação de muitos cristãos, até mesmo membros do clero, na resistência à ditadura. O exemplo mais conhecido é naturalmente o apoio que grande parte dos dominicanos de São Paulo forneceu à guerrilha dirigida pelo comunista dissidente Carlos Marighella, da Ação Libertadora Nacional (ALN). Mas são muitos os cristãos que, de uma forma ou outra, se vão engajar no com­ bate ao regime e sofrerão prisão, tortura ou exílio.

E nesse contexto de ditadura, resistência e repressão que apare­ cem  os  primeiros  livros  da  teologia  da  libertação  brasileira,  utilizando,  de  uma  maneira  ou  de  outra,  conceitos  marxistas.  Obvia­ mente, não se trata do mesmo marxismo em todos: alguns se referem a  Althusser,  outros  à  Escola  de  Frankfurt  ou  a  Ernst  Bloch  —  os cristãos não escapam dos debates que atravessam o marxismo moderno. Mas, além das fontes e das opções metodológicas, vai-se con­stituir  um  estilo  próprio  de  interpretação  do  marxismo,  específico ao cristianismo da libertação. História do marxismo no Brasil – volume 6 Marcelo Ridenti e Daniel Aarão Reis (orgs.). São Paulo: Editora da Unicamp, 2007, p.415-417


6- Teologia da libertação no Brasil

"O pioneiro da teologia da libertação brasileira é um padre gaúcho,  Hugo  Assmann,  que estudou  em Frankfurt com Adorno  e Horkheimer no  começo  dos anos 60.  O que o  levou  a aprofundar o  estudo  do  marxismo  —  “Talvez não  me satisfazia mais” —  foi a crise da liderança da esquerda cristã e da Ação Popular. “Por sorte”, observa,  “isto  se deu  antes da onda althusseriana.  Senão  teríamos recitado o catecismo.” Assmann trabalhou de 1965 a 1969 no Ins­tituto de Teologia de São Paulo, onde colaborava estreitamente com os dominicanos. Procurado pelo DOPS, foi obrigado a se exilar em 1969.8

" Seu livro, Opresión-liberación, desafio a los cristianos^ é um marco  fundador na história da teologia da libertação.  Inspirando- se na filosofia marxista da práxis, na teoria da dependência — versão latino-americana atualizada do  marxismo  —  e,  sobretudo,  nas ex­periências de luta no Brasil e na América Latina, Assmann propõe a ruptura radical com o  “desenvolvimentismo” e o  compromisso dos cristãos com a práxis libertadora das classes oprimidas: “o as­pecto fundamental da fé é a práxis histórica”.9 

"A teologia da libertação  se distingue da teologia progressista européia pelo  ponto  de partida de sua reflexão: “a situação da América Latina dominada”.10 Num ensaio  redigido  em 1972,  Assmann  explicita a relação  tanto teórica como  política da nova teologia latino-americana com o marxismo: Para a maioria dos que adotaram a linguagem de libertação em forma conseqüente, isto implica o uso de um instrumental socioanalítico  derivado  do  marxismo,  e uma estratégia de luta que conduza a um tipo  de sociedade socialista.11 

Em 1974-1975,  em colaboração com seu amigo espanhol Reyes Mate, ele publica dois volumes com uma seleção  de textos marxistas sobre religião,  o primeiro  dedicado  a Marx  e Engels e o  segundo  incluindo  Jaurès, Lênin,  Gramsci etc.12 Paradoxalmente,  seu  livro  pioneiro  de 1971 nunca foi publicado no Brasil. De maneira geral, sua obra só começará a ser conhecida aqui depois de seu regresso ao país, em 1981.

"Em 1972 aparece o livro de Leonardo Boff Jesus Cristo libertador (Petrópolis: Vozes).  Personagem carismático,  de enorme cultura e criatividade,  ao  mesmo  tempo  místico  franciscano  e lutador social, Boff se transformará no principal representante brasileiro da teologia da libertação  e um dos principais formadores da cultura político- religiosa do  cristianismo  da libertação  no  Brasil.  Nesse primeiro livro  há poucas referências ao  marxismo,  a mais importante sendo uma homenagem ao  “princípio  esperança” de Emst Bloch  —  um dos escritos marxistas favoritos dos teólogos da libertação. É pouco a pouco, no curso dos anos 70, que os conceitos e temas marxistas vão surgindo na obra de Boff, até se tomarem um componente fun­damental de sua reflexão sobre as causas da pobreza e sobre a luta pela libertação dos pobres.

"Em 1980, em seu livro O caminhar da Igreja com os oprimi­dos  (Rio  de  Janeiro:  Codecri),  já  encontramos  uma  discussão precisa  e  argumentada  acerca  da  relação  entre  teologia  da  liber­tação  e  marxismo.  Para  Boff,  como  para  Assmann,  o  marxismo é antes de tudo uma práxis emancipadora: Se quisermos entender alguma coisa útil do  marxismo, há que entrar por esta embocadura: não  é uma escola acadêmica ao  lado  de outras mais (Kant, Hegel ou  Aristóteles), pelo  menos não  em primeiro  plano, nem tem a ver, inicialmente, com um corpo  fechado  de doutrinas, mas com um tipo  de prática histórica libertária que exige, em função  de sua eficácia, um momento teórico, segundo  Marx, cambiável consonante as novas exigências da prá­tica. O militante se interroga: qual é o  quadro  teórico  adequado  para me propiciar uma captação  mais pertinente do  real social em seus mecanismos, contradições, estrangulamentos e saídas viáveis; a fim de atuar transformadoramente sobre ela? Aqui está o  cerne e também a grande força per­ suasiva do marxismo que devem ser enfrentados e não evitados.13
Sua assimilação do marxismo é crítica: rejeita a metafísica materialista (o  “materialismo  dialético” de Engels),  mas reconhece o valor científico  e político  do  materialismo  histórico,  como  método que permite denunciar as falsificações ideológicas do  capitalismo e dar conta da verdadeira causa que gera o  empobrecimento: “a acumulação da riqueza em poucas mãos, com a exclusão das grandes maiorias”.  Quando  os agentes da Igreja mergulham no  mundo cultural do pobre, não deixam de encontrar o marxismo, “não como filosofia materialista e negadora de Deus, mas como o único ins­trumento  a seu  alcance para entender sua condição  de explorados e como  um caminho  de organização,  de formação  de consciência crítica e de mobilização dos setores populares”.14   História do marxismo no Brasil – volume 6 Marcelo Ridenti e Daniel Aarão Reis (orgs.). São Paulo: Editora da Unicamp, 2007, p.417-419

"Rejeitando o argumento conservador que pretende julgar o marxismo pelas práticas históricas do assim chamado “socialis­mo real”, Boff observa: da mesma maneira que o cristianismo não
se identifica com os mecanismos da Santa Inquisição, o marxismo não pode ser assimilado aos “socialismos” vigentes, que “não representam nenhuma alternativa desejável por sua tirania burocrática e pelo afogamento das liberdades individuais”. O ideário socialista pode e deve se historizar de outras formas.15
Num balanço escrito em 1989, Boff insiste que o teólogo tem tudo a ganhar em uma confrontação com o marxismo, em suas várias correntes. O marxismo lhe transmite um olhar agudo, um espírito crítico e um compromisso solidário com a causa dos po­ bres; ele lhe oferece conceitos para a análise da história e da estru tura social, assim como uma visão orgânica e sistemática, em con­ traposição à fragmentação da perspectiva liberal-burguesa.16 
História do marxismo no Brasil – volume 6 Marcelo Ridenti e Daniel Aarão Reis (orgs.). São Paulo: Editora da Unicamp, 2007, p.P. 420


"Clodovis Boff comparte com o irmão Leonardo o interesse pelo marxismo, que ele descobre em 1972, ao ouvir uma aula sobre a política econômica da ditadura ministrada pelo economista marxista Paul Singer. Durante uma estada de quatro anos em Lovaina, ele vai redigir uma tese de doutorado, que será publicada em 1978 com o título Teologia do político e suas mediações — obra de grande rigor teórico, mas que padecia, segundo reconhecerá o autor, de excessivo racionalismo.17 Influenciado por Althusser, ele insiste na distinção, no pensamento de Marx, entre filosofia e ciência, materialismo dialético e materialismo histórico. Do ponto de vista de uma teologia do político — a expressão “teologia da libertação” só aparece na introdução do livro —, o marxismo só interessa como mediação socioanalítica, como teoria científica. Ele reconhece que o sucesso histórico do marxismo depende menos de suas virtudes teóricas do que de outros fatores, “tais como ideológicos, éticos ou utópicos, vinculados à pratica mais que à teoria”, mas não apon­ta conseqüências dessa constatação para o relacionamento com o cristianismo. O que distingue a argumentação de Clodovis Boff o  positivismo  de Althusser é a afirmação  de que a escolha,  pela teologia do  político,  de uma teoria científica se decide em função de um “elemento  extrateórico,  vinculado  à Fé”,  uma opção  ética prévia: a opção pela libertação dos pobres.18


"Sem ter a erudição teológica dos irmãos Boff, frei Betto é, sem dúvida,  um  dos  mais  importantes  pensadores  do  cristianismo  da libertação  brasileiro  e  latino-americano  e  um  dos  principais  for­madores das CEBs. Ele é possivelmente o teólogo que levou mais longe o compromisso político e a “afinidade eletiva” com o mar­xismo.  Dirigente  nacional  da  Juventude  Estudantil  Católica  (JEC) no começo dos anos 60, Carlos Alberto Libânio Christo (seu nome de batismo) começa sua educação espiritual e política com Maritain, Mounier, Lebret e Alceu Amoroso Lima, mas no curso de sua mi litância  no  movimento  estudantil  —  UPES  e  depois  UNE —  logo vai descobrir o Manifesto comunista e A ideologia alemã. Ao entrar como  noviço  na  ordem  dos  dominicanos,  em  1965,  já  tem  a  firme resolução de dedicar-se à luta pela revolução brasileira.19  Como outros  dominicanos,  Betto  apoiou  a  resistência  contra  a  ditadura,  ajudando  militantes  revolucionários  a  se  esconderem  ou  atravessarem  clandestinamente  a  fronteira  para  o  Uruguai  e  a  Argen­ tina.20  Por essa atividade “subversiva”, foi preso pelo regime militar e encarcerado de 1969 a 1973. Suas cartas da prisão revelam co­nhecimento  preciso  do  pensamento  de  Marx,  que  ele  designa,  para burlar a censura policial, “o filósofo alemão”. Como Assmann e Boff, ele é atraído pela filosofia da práxis marxista:
A filosofia contemporânea procura ensinar-nos que o  homem se define essencialmente como  um ser prático  [...]. A história do  homem é a histó­ria de uma praxis [...]. “A história não faz nada: ela é a atividade dos homens que perseguem seus objetivos”, dizia um filósofo  alemão. Os homens trans­formam e se transformam a si mesmos e essa história de suas transforma­ções é propriamente sua verdadeira história.História do marxismo no Brasil – volume 6 Marcelo Ridenti e Daniel Aarão Reis (orgs.). São Paulo: Editora da Unicamp, 2007, p.p. 420-421 


Em outra carta,  dirigida em outubro  de 1971  a uma abadessa beneditina,  ele analisa a formação  do  proletariado  —  uma classe que se propõe, como condição de sua libertação, o estabelecimen­ to “da propriedade social dos meios de produção” — e as contradições do novo modo de produção introduzido pela burguesia, concluindo: “Não  haveria a teoria econômico-social do filósofo alemão sem as contradições sociais gritantes provocadas pelo  liberalismo  econô­ mico, e que levaram-no a percebê-las, analisá-las e estabelecer prin­cípios capazes de superá-las”.21

Depois de sua libertação, frei Betto se tomou um dos principais articuladores das assembléias nacionais de comunidades de base. Por meio de sua participação na pastoral operária de São Bernardo do Campo, ele entra em contato com vários dirigentes sindicais, em particular Lula, e participa — embora não formalmente afiliado — do processo de criação do Partido dos Trabalhadores. Sempre interessado pela convergência com o marxismo, realiza em 1985 uma entrevista com Fidel Castro sobre a religião, que terá enorme sucesso e será traduzida para 17 línguas.

Enquanto certos teólogos tratam de reduzir o marxismo a uma “mediação socioanalítica”, utilizando a distinção althusseriana entre “ciência” e “ideologia”, Betto defende, em ensaio de 1986, Cristia­nismo e marxismo, uma interpretação muito mais ampla da teoria marxista, que inclui a ética e a utopia:
O marxismo  é, sobretudo, uma teoria áapraxis revolucionária. [...] A prática revolucionária extrapola o  conceito  e não  se esgota em análises es­tritamente científicas, pois encerra necessariamente dimensões éticas, místicas e utópicas. [...] Aliás, que contradição  haveria entre o  papel determinante da subjetividade humana e o  materialismo  histórico? [...] Ao  contrário, negar a importância da subjetividade e da intencionalidade humanas é pretender reduzir o  marxismo  a uma teoria puramente científica [...]. A riqueza e a originalidade da teoria marxista reside justamente em estar vinculada à prática revolucionária que, em sua dinâmica, confere e contesta a teoria que a inspira e orienta. Sem esta relação  dialética teoria-Amxw, o  marxismo p. 422 se  esclerosa  numa  ortodoxia  acadêmica  perigosamente  manipulável  por  quem controla os mecanismos de poder.
A última frase é sem dúvida uma referência crítica à União Soviética e aos países do “socialismo real”, uma experiência defor­mada por sua “ótica objetivista”,  sua “tendência economicista” e, sobretudo, sua “metafísica do Estado”.22

Procurando dar conta das “afinidades”, ou, em sua terminologia, dos   “arquétipos   comuns”   entre   cristianismo   e   marxismo,   Betto observa  que  ambos  foram  fundados  por  profetas  judeus,  ambos acreditam   na   libertação/redenção   através   da   história,   ambos   se referem a um paraíso perdido (o comunismo primitivo em Marx) e proclamam  sua  esperança  num  paraíso  futuro:  afinal,  o  que  é  o marxismo  senão  uma  heresia  judeu-cristã?23   Os  termos  são  dife­rentes,  mas  ambos  compartem  a  utopia  da  felicidade  humana  no futuro  histórico:  “Marx  chama  esta  plenitude  de  reino  da  liberdade  e  os  cristãos,  de  reino  de  Deus”.  O  caminho  capaz  de  levar a  essa  aspiração,  que  não  é  garantida  por  nenhuma  teoria  política e  nenhuma  ciência  da  história,  é  “o  compromisso  efetivo  com  a luta de libertação dos oprimidos”.24


Esse compromisso  é partilhado  por um importante setor da Igreja brasileira,  o  mais próximo  ao  cristianismo  da libertação. Alguns bispos, como dom Pedro Casaldáliga, de São Félix do Ara­guaia, não escondem a opção socialista e a simpatia por movimentos revolucionários como o sandinismo nicaragüense. Sem ir tão longe, parte significativa do episcopado brasileiro assume de forma radical a opção prioritária pelos pobres. No curso dos anos 70, a Igreja se transformou  na principal força de oposição  ao  regime militar,  denunciando, em nome do Evangelho, não só as violações aos direitos humanos,  mas também o  modelo  de desenvolvimento  promovido pela ditadura,  caracterizado  como  desumano,  injusto  e fundado na opressão  econômica e social dos pobres.  Segundo  um informe interno  preparado  pelo  Segundo  Exército,  em 1974,  “o  clero  é o 
mais ativo dos inimigos que ameaçam nossa segurança nacional. Através de processos decididamente subversivos, ele está promovendo a substituição das estruturas políticas, sociais e econômicas do Brasil por uma nova ordem, inspirada na filosofia marxista”.25 História do marxismo no Brasil – volume 6 Marcelo Ridenti e Daniel Aarão Reis (orgs.). São Paulo: Editora da Unicamp, 2007, p. 422-423

Encontramos, nos anos 70, várias declarações de bispos que, embora não se refiram nunca ao “filósofo alemão”, não deixam de integrar elementos significativos da análise e da proposta marxistas. Esses documentos foram, sem dúvida, preparados por equi­pes de teólogos, agentes de pastoral e cientistas sociais cristãos, mas, em última análise, foram os bispos que os aprovaram, reescreveram e publicaram. Dois documentos episcopais regionais do ano de 1973 são particularmente impressionantes, enquanto crí­tica não só ao regime militar, mas ao próprio capitalismo. Esses dois textos são os mais radicais que um setor da Igreja brasileira jamais apresentou e constituem uma espécie de ponta-de-lança do cristianismo da libertação. 

 O primeiro, assinado pelos bispos e superiores das ordens religiosas do Centro-Oeste brasileiro, em maio de 1973, é intitulado “A marginalização de um povo”. Ele desenvolve toda uma análise crítica da situação socioeconômica do Brasil, no quadro do capitalismo dependente, multiplicando as referências a Paulo VI e aos sínodos da Igreja e terminando com a seguinte conclusão:
E preciso vencer o capitalismo. E ele é o mal maior, o pecado acumulado, a raiz estragada, a árvore que produz esses frutos que nós conhecemos: a pobreza, a fome, a doença e a morte da grande maioria. Para isso é preciso que a propriedade dos meios de produção (das fábricas, da terra, do comércio, dos bancos, fontes de crédito) seja superada. Enquanto uns poucos são os donos desses lugares e meios de trabalho, a grande maioria do povo está sendo usada e não tem vez. A grande maioria trabalha para enriquecer uns poucos e estes enriquecerão às custas da miséria da maioria.26

No mesmo sentido vai a declaração dos bispos do Nordeste do Brasil, “Ouvi os clamores de meu povo”, também de maio de 1973: As  estruturas  econômica  e  social  em  vigor  no  Brasil  são  edificadas  sobre  a  opressão  e  a  injustiça  que  provêm  de  uma  situação  de  capitalismo dependente  dos  grandes  centros  internacionais.  [...]  A  injustiça  gerada  nesta situação  tem  seu  fundamento  nas  relações  capitalistas  de  produção,  que  dão obrigatoriamente  origem  a  uma  sociedade  de  classes,  marcada  pela  discriminação...  A  classe  dominada  não  tem  outra  saída  para  se  libertar,  senão através  da  longa  e  difícil  caminhada,  já  em  curso,  em  favor  da  propriedade social dos meios de produção. Este é o fundamento principal de gigantesco projeto   histórico   para   a   transformação   global   da   atual   sociedade,   numa sociedade  nova,  onde  seja  possível  criar  as  condições  objetivas  para  os  oprimidos   recuperarem   a   sua   humanidade   despojada,   lançarem   por   terra   os grilhões  de  seus  sofrimentos,  vencerem  o  antagonismo  de  classes,  conquis­tarem, por fím, a liberdade.27

O documento é assinado por 13 bispos e arcebispos, entre os quais Hélder Câmara, Antônio Batista Fragoso e José Maria Pires, assim como pelos superiores jesuítas, redentoristas, beneditinos e franciscanos do Nordeste.

E evidente que esses documentos estão impregnados de marxismo, não só como mediação analítica, mas também como projeto utópico-social de emancipação dos oprimidos. E interessante comparar esses textos — que obviamente não representam o conjunto da Igreja brasileira ou a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (Cnbb), muito mais moderados — com os do Partido Comunista Brasileiro da época, para entender a especificidade do marxismo presente na cultura político-religiosa do cristianismo da libertação. No informe do Comitê Central para o VI Congresso, em 1967, a direção do PCB afirmava explicitamente: “Levantar a bandeira imediata da socialização dos meios de produção não corresponderia ao nível atual de desenvolvimento da contradição entre as forças produtivas e as relações de produção [...]”.
Na resolução política aprovada no mesmo congresso, encontra­mos a passagem seguinte: “O desenvolvimento capitalista verifi­cado no Brasil, embora limitado, teve um caráter objetivamente progressista, desde que significou a evolução para um estágio mais adiantado  da  sociedade.  As  possibilidades  desse  caminho  não  se esgotaram inteiramente”.
Enfim, na resolução política de dezembro 1975, o PCB declara: “Os  comunistas  propõem  para  o  Brasil  um  futuro  em  que  seja assegurado  o  bem-estar  do  povo,  um  desenvolvimento  democrá­tico,  o  florescimento  da  cultura  nacional  e  uma  independência  que garanta o progresso efetivo do País”.
Em comparação,  o  marxismo  dos bispos,  teólogos e agentes de pastoral do  cristianismo  da libertação  —  ou  pelo  menos de seus setores mais avançados —  apresenta características bastante dife rentes:
1) um anticapitalismo muito mais radical, intransigente e categó­ rico, com forte carga ético-religiosa, retomando temas da teoria da dependência, na versão socialista;28
2)   uma distância crítica em relação às ideologias do progresso e da modernização e uma visão utópico-milenarista da transfor­mação social, em contraste com a perspectiva evolucionista e desenvolvimentista do PCB;
3) a definição do pobre e do oprimido como sujeito do processo de libertação, em vez da complexa aliança de classes proposta pelo Partido Comunista (classe operária, classes médias, bur­ guesia nacional);
4) a urgência moral do combate pelo socialismo, em nome da li­berdade e da justiça, no lugar da visão “científica” das etapas do processo  histórico,  em função  do  grau  de desenvolvimento  das forças produtivas;
5)   a insistência na práxis, na ética e na subjetividade, privilegia­ das em detrimento da teoria, da ciência e das “condições ob­ jetivas”;
6) a ênfase na auto-organização  “pela base” e na autolibertação dos pobres,  ignorando  ou  relativizando  a questão  do  partido ou da “vanguarda”. História do marxismo no Brasil – volume 6 Marcelo Ridenti e Daniel Aarão Reis (orgs.). São Paulo: Editora da Unicamp, 2007, p. 423-426


Para ilustrar essa diferença substancial entre o “marxismo cristão” e  o predominante na esquerda secular, é interessante mencionar as críticas  à  Igreja  de  um  importante  antropólogo  marxista,  Otávio Guilherme  Velho.  Segundo  esse  autor,  as  posições  da  Igreja  brasileira  em  relação  ao  problema  da  terra  são  equivocadas,  porque tendem  a  “considerar  o  processo  de  desenvolvimento  capitalista como  um  mal  absoluto”.  Ao  reproduzir  uma  ideologia  camponesa espontânea  baseada  em  um  passado  pré-capitalista,  a  Igreja  seria incapaz  de  enfrentar  questões  básicas  como  a  necessidade  de  uma revolução  burguesa  e  acabaria  defendendo  uma  ideologia  agrária mais próxima do populismo russo do que do marxismo, para o qual “o desenvolvimento capitalista não é considerado um mal absoluto, e sim uma pré-condição para as transformações futuras”.29

E  verdade  que  a  “Igreja  dos  pobres”  se  inspira  nas  tradições comunitárias  populares  pré-capitalistas,  sobretudo  no  campo.  Alguns autores criticam essa orientação como “romântica” e, portanto, contraditória com o espírito da modernidade. Por exemplo, Roberto Romano, em seu livro sobre a Igreja brasileira e o Estado, afirma: “A  noção  de  comunidade  tem  uma  longa  história  no  pensamento social, como contraposição romântica à mecanização e aos conflitos da  sociedade.  Nisto,  o  católico  contemporâneo  não  diverge  essencialmente  do  sonho  romântico  [...]”  —  um  sonho  que  se  traduz na  formação  das  CEBs:  “As  comunidades  de  base,  inicialmente propostas  como  instrumento  de  renovação  da  estrutura  interna  da Igreja,  serão  depois compreendidas  como  padrão  organizatório para  toda a sociedade ™ Sem dúvida, o “marxismo cristão” tem forte carga romântica, mas será que não existe, no próprio pensamento marxista, uma  dimensão  romântica?  Uma  dimensão  que  se  manifesta,  por exemplo,  na  simpatia  pelas  comunidades  pré-capitalistas  —  bas­ta  lembrar  o  interesse  de  Marx  pela  comunidade  rural  russa  pré-capitalista como base para um possível desenvolvimento do socialismo  na Rússia,  ou a proposta de José Carlos Mariátegui de en­raizar   o   moderno   socialismo   indo-americano   nas   tradições   do “comunismo inca” — tese criticada pelo historiador soviético Anatol Shulgovski como “romântica” e “populista”.31 História do marxismo no Brasil – volume 6 Marcelo Ridenti e Daniel Aarão Reis (orgs.). São Paulo: Editora da Unicamp, 2007, p.426-427

O “marxismo cristão não se limita aos teólogos e a alguns bispos. Ele será assumido, em maior ou menor medida, por setores do clero — em particular as ordens religiosas, tanto masculinas como femininas — e por boa parte dos intelectuais cristãos, agentes de pastoral, animadores de comunidades de base e militantes cristãos de vários movimentos sociais, que constituem a ampla base do cristianismo da libertação brasileiro. Podemos encontrá-lo — mais ou menos diluído — nos documentos das pastorais populares — como a Pastoral Operária ou a Pastoral da Terra —, nas resoluções das conferências anuais das CEBs, em textos da JUC e da JEC etc. Ele se encontra também, com algumas diferenças, na teologia protestante da libertação — Julio de Santana — e em certos documentos de centros ecumênicos de inspiração protestante, como o Koinonia, do Rio de Janeiro, fundado por Jether Ramalho. Ele inspira vários livros publicados pela editora Vozes ou artigos na revista com o mesmo nome, assim como na Revista Eclesiástica Brasileira (REB). 
Enfim, está bastante presente nas atividades de ensino e pesquisa de algumas Pontifícias Univer­ sidades Católicas. O mais importante é que, a partir dos anos 80, ele se tornará um dos principais ingredientes na constituição da cultura sociopolítica — já secularizada e não-confessional — do Partido dos Trabalhadores, da Central Única dos Trabalhadores, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e de outros movi­ mentos sociais. Os militantes cristãos, numerosos tanto na base como na direção dessas novas forças — as quais vão contribuir para a auto-organização, conscientização e politização das classes popu­ lares no Brasil, num grau sem precedente na história do país —, não constituem uma corrente distinta, mas participam das várias tendências sindicais ou políticas que se manifestam em seu inte­ rior. Alguns deles se definem como “marxistas cristãos” — Olívio História do marxismo no Brasil – volume 6 Marcelo Ridenti e Daniel Aarão Reis (orgs.). São Paulo: Editora da Unicamp, 2007, p. 428

Dutra, ex-govemador petista do Rio Grande do Sul, para mencionar um exemplo —, outros não, mas de alguma forma o marxismo faz parte de sua cultura política, embora nem sempre de maneira consciente. Podem-se atribuir, em parte, ao “marxismo cristão” algumas das características desses movimentos, sobretudo nos anos 80 para o PT e a CUT e nos anos 90 para o MST: 
a) ra­dicalismo ético-social e “mística” do combate pela libertação; 
b) anticapitalismo intransigente, com forte carga moral;
c) “basismo”, desconfiança da política institucional. No seio dessas organizações, sobretudo do PT, os militantes oriundos do cris­ tianismo da libertação encontrarão outros, vindos de correntes ou grupos marxistas organizados (sobretudo trotskistas), o que permitirá o intercâmbio de experiências, mas gerará, em alguns casos, desconfiança mútua, tensões e conflitos. Em outros mo­ vimentos, como o MST, a convergência entre militantes de cul­ turas políticas diferentes será menos conflituosa e levará a uma fusão mais harmoniosa. História do marxismo no Brasil – volume 6 Marcelo Ridenti e Daniel Aarão Reis (orgs.). São Paulo: Editora da Unicamp, 2007, p. 429

7- Declínio da Teologia da Libertação
"Com o fim da ditadura (1985) e a ofensiva intensa do Vaticano contra a teologia da libertação — basta lembrar o “silêncio obsequioso” imposto no mesmo ano a Leonardo Boff pela Congregação para a Doutrina da Fé (cardeal Ratzinger) —, observa-se a evolução da Igreja brasileira para posições mais moderadas, mesmo com a CNBB mantendo a “opção prioritária pelos pobres”, criticando as políticas neoliberais dos sucessivos governos da “Nova República” e exigindo a reforma agrária. Enfim, com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e a desintegração da URSS, muitos observadores se apressaram em decretar “o fim do marxismo” e a mor­te da teologia da libertação.

Na verdade, embora alguns teólogos pudessem ter ilusões em relação ao “socialismo real”, a URSS e as “democracias populares” nunca foram uma motivação para seu compromisso sociopolítico ou mesmo uma referência importante para sua compreensão do marxismo — contrariamente ao velho PCB, que conhece nesse momento a maior crise de sua história e se acaba transformando num partido social-liberal, o Partido Popular Socialista (PPS).



 Comentando a “implosão” da URSS, Leonardo Boff compara, não sem ironia mordaz, o partido de tipo soviético com o “partido” da Igreja católica (o clero), a estrutura do “socialismo real” com a estrutura piramidal da “Igreja realmente existente”: “Mutatis mutandis, a es­trutura destes dois corpos totalitários e autoritários — o catolicismo real e o socialismo real — possui certa co-naturalidade até nos detalhes [...] e ambas obedecem a uma mesma lógica”. E, sobre­ tudo, ele estabelece uma distinção fundamental entre essa expe riência deformada e as idéias de Marx:
quão socialista era semelhante sociedade que a si mesma se chamava de socialista? Muito pouco pelos critérios dos fundadores dos ideais socia­listas. Estes sonhavam com um socialismo democrático a partir das maiorias populares, que incorporasse todos os valores da revolução burguesa, criasse novos, e os universalizasse. Isso não ocorreu. Não devemos perder estes grandes ideais cristalizados na idéia do socialismo. Eles pertencem aos sonhos mais ancestrais da humanidade. Não será a crise de um tipo do socialismo (o autoritário e estatal) que engolirá as esperanças por uma sociabilidade mais humana.32


Mais do que o fim pouco glorioso do regime soviético, é a derrota dos sandinistas na Nicarágua, em 1990, que decepciona os cristãos liberacionistas. Entretanto, na medida em que sua relação com o marxismo não é função deste ou daquele projeto histórico “real mente existente”, mas responde a uma profunda revolta contra a pobreza e a injustiça social no Brasil, e na medida em que — para citar as palavras de um teólogo brasileiro — a queda do Muro de Berlim não impede que o muro entre pobres e ricos continue a crescer vertiginosamente no país, não houve, entre os teólogos da li­bertação brasileiros, uma tendência a se dissociar do marxismo — e, muito menos, a abandonar o compromisso com a causa da libertação dos pobres." História do marxismo no Brasil – volume 6 Marcelo Ridenti e Daniel Aarão Reis (orgs.). São Paulo: Editora da Unicamp, 2007, p.p.429- 430




8- Renovação e novos horizontes
"O que se observa são, já desde o fim dos anos 80, duas pistas para a renovação da teologia da libertação, distintas, mas não contraditórias. Para alguns, essa renovação, sem pôr em questão a importância central do pobre — no sentido socioeconômico, “marxista”, de classe explorada e oprimida —, deve incorporar novos horizontes, buscando: 

a) ampliar e enriquecer o conceito de po­bre, incluindo a questão do negro, do indígena e da mulher, víti mas de uma forma específica de opressão;
 b) tratar de relacionar a dominação/exploração dos pobres com a da natureza, associando aos temas marxistas “clássicos” a nova contribuição da ecologia. Leonardo Boff representa da maneira mais coerente e inovadora essa orientação, que não significa de forma alguma uma desautorização do marxismo. Num importante livro de 1993, Ecologia, mundialização, espiritualidade, ele insiste na contribuição de Marx e na centralidade do conceito marxista de classe:
Marx não foi apenas um analista do capitalismo e um arquiteto do socialismo. Ele alimentou também uma perspectiva fílosofante [...] que viu dimensões fundamentais da construção social da realidade, de uma forma processual e flexível (dialética). [...] Da mesma forma a categoria “classe social”: numa sociedade de classes e não mais de ordens, como é a nossa, a categoria “classe” é imprescindível para se compreender a organização social e o conflito de interesses. Abandoná-la seria empobrecer nossa compreensão em detrimento do interesse dos mais fracos.
Ao mesmo tempo, Boff argumenta em favor da integração da perspectiva ecológica:
A reflexão ecológica enriqueceu o paradigma marxista em alguns passos, a ponto de alguns analistas falarem de uma segunda crítica da economia política, ao incorporar a natureza não como fator extrínseco mas intrínseco em todo o processo produtivo e na constituição das forças produtivas. [...] A consciência ecológica convida-nos a tomar certa distância com referência ao otimismo marxiano quanto ao “desenvolvimento das forças produtivas”.  Para  evitar  que  se  transformem  em  forças  destrutivas,  é  neces­sário “privilegiar aquelas forças que são renováveis”.33 História do marxismo no Brasil – volume 6 Marcelo Ridenti e Daniel Aarão Reis (orgs.). São Paulo: Editora da Unicamp, 2007, p. 431,432

A hipótese de uma convergência entre a causa dos pobres e a da na­tureza alimenta também sua reflexão no livro de 1995 Ecologia. Grito da terra, grito dos pobres. Para Boff, “teologia da libertação e discurso ecológico  se exigem e se complementam mutuamente”,  na medida em que ambos se opõem à lógica perversa da máquina produtivista do  capital: “A mesma lógica do  sistema imperante de acumulação e de organização sociais que leva a explorar os trabalhadores leva tam­bém a espoliar nações inteiras e por fim leva a depredar a natureza”.34

A outra pista é proposta por aqueles teólogos da libertação que, confrontados  com  a  onda  de  choque  neoliberal,  resolvem  orientar sua  crítica  diretamente  ao  terreno  da  economia  —  nos  escritos  de Hugo  Assmann  e  de  um  jovem  teólogo  cristão  coreano-brasilei­ro,  Jung  Mo  Sung,  encontramos  um  novo  aspecto  da  “afinidade eletiva” entre marxismo e cristianismo: a analogia entre o combate bíblico contra os ídolos e a crítica marxista ao fetichismo da mer­cadoria.  A  articulação  dos  dois  na  teologia da  libertação foi faci­litada  pelo  fato  de  que  o  próprio  Marx  utilizava  com  freqüência imagens e conceitos bíblicos em sua crítica ao capitalismo.
No livro — redigido com Franz Hinkelammert A idolatria do mercado. Ensaio sobre economia e teologia, de 1989, sem dúvida uma das mais importantes obras da teologia da libertação dos úl­timos 17 anos, Hugo Assmann propõe uma nova análise que encara o capitalismo em geral como “um ingente processo de idolatria, ali­ mentado por um sem-número de atos devocionais’e‘objetos devocionais’”, uma idolatria que exige inúmeros sacrifícios humanos. Nesse contexto, ele rende homenagem a Marx, sem deixar de criticar seus epígonos:
Marx  havia  sido  claro  ao  denominar  as  relações  mercantis,  universalizadas no capitalismo, de “religião da vida cotidiana”. Mas esta peça chave de sua análise, a teoria do  fetichismo, era amplamente desconsiderada pelos próprios marxistas, especialmente pela moda das interpretações althusserianas funestamente campeante na América Latina, naquele momento.

A grande contribuição de Marx foi revelar “a substância teológica da ‘religião econômica’ do capitalismo”, isto é, em última análise, “o caráter idolátrico da economia” capitalista. Mas muitos marxistas abandonam esse elemento decisivo da crítica de Marx ao capitalismo, o que significa uma “traição” não só a sua teoria econômica, “mas — o que é muito mais sério — a seu pensamento revolucionário”: “a não-compreensão da teoria do fetichismo em Marx implica necessariamente o abandono de sua radical lógica da vida, porque a teoria do fetichismo é a peça chave para o desocultamento mais radical da necrofilia, da lógica de morte do capitalismo”

Pro­fundo conhecedor da Escola de Frankfurt, o teólogo brasileiro men­ciona também a contribuição de Horkheimer e Adorno, na Dialética da razão, para entender “o sacrifício como lógica embutida nas relações mercantis do capitalismo”, um sacrificialismo brutalmente real, mas sistematicamente oculto pela categoria fetiche.35
Assmann dedica todo um capítulo do livro ao estudo dos símbolos bíblicos em Marx. Sem deixar de criticar a tese marxiana do inevitável desaparecimento da religião, ele argumenta que o ateísmo de Marx é antes de mais nada uma luta contra os ídolos:
O tema da idolatria se expressa em Marx com um abundante recurso a imagens bíblicas: o bezerro de ouro, Mamon, Baal, Moloc e a Besta do Apocalipse. Além disso, no centro está sempre o sacrifício de vidas humanas. Em segundo lugar, desta crítica de Marx ao culto dos ídolos brotam os mais profundos critérios humanistas e revolucionários de Marx, que se revolta com o fato de que seres humanos sejam sacrificados, como simples meios, ao dinheiro e ao capital.
A conclusão do teólogo é que “não entende o capitalismo quem não analisa sua idolatria” e seu fetichismo — que se tomaram mais intensos,  complexos  e  onipresentes  no  mundo  de  hoje  do  que  na época de Marx.36 História do marxismo no Brasil – volume 6 Marcelo Ridenti e Daniel Aarão Reis (orgs.). São Paulo: Editora da Unicamp, 2007, p.432-433


No  mesmo  momento  em  que  aparece  esse  livro,  é  publicado, com introdução de Hugo Assmann, o ensaio de um jovem teólogo brasileiro  leigo  de  origem  coreana,  Jung  Mo  Sung,  A  idolatria  do capital e a morte dos pobres, que defende idéias similares. Sem ter a mesma bagagem “marxológica” de Assmann, Sung utiliza os conceitos marxistas para analisar a lógica idólatra e sacrificial do capital,  em  particular  o  mecanismo  da  dívida  externa  manipulado  pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial:
As   exigências   que   o   sistema   capitalista   internacional   faz,   através   de suas  instituições  e  normas,  para  que  os  países  devedores  do  Terceiro  Mun­
do  possam continuar tendo  acesso  ao  mercado  internacional, são  autên­ ticas exigências sacrificiais. As vidas humanas são  imoladas como  paga­ mento  necessário  para poder participar do  novo  âmbito  do  sagrado: o mercado.
No coração desse sistema encontramos a fetichização do capital — a inversão da criatura a criador e do objeto a sujeito — e a alienação do trabalhador.37 

Em seu livro seguinte, Teologia e economia (1995), Sung rende homenagem à teoria do fetichismo de Marx — e a sua interpretação teológica por Assmann —, mas trata de analisar a diferença entre o fetichismo arcaico e a moderna idola tria do capital: “Esta idolatria é revestida de caráter científico e se­ cular. Sendo assim, os sacrifícios humanos não são mais ofertados em algum altar de um deus visível [...] mas são feitos em nome de uma necessidade ‘científica,’ secular, não religiosa. Tomaram-se sacrifícios seculares”.38
Também nos escritos de Leonardo Boff as questões econômi­cas não estão ausentes, em particular a crítica à mundialização (capitalista) neoliberal, tema que ocupa um lugar cada vez mais importante nas preocupações do cristianismo da libertação. Em seu livro Ecologia. Grito da terra, grito dos pobres, ele põe em evidên­cia  a  contradição  entre  progresso  técnico  e  regressão  social,  em termos que convergem com a crítica marxista da globalização:
Os últimos arranjos da ordem mundial hegemonizada pelo  capital sob o  regime de mundialização  e de neoliberalismo  trazem um progresso  material fantástico. Utilizam-se tecnologias de ponta, da terceira revolução científica [...] que aumentam enormemente a produção. Entretanto, dis­ pensam a mão  de obra humana. O efeito  social é perverso: grande exclu­ são  de trabalhadores e de inteiras regiões do  mundo, pouco  interessantes para a acumulação  do  capital dentro  de uma mentalidade da mais cruel indiferença.39
O novo movimento contra a globalização capitalista liberal, que teve expressão espetacular nos Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre, será provavelmente, nos próximos anos, um dos terrenos importantes de intervenção do cristianismo da libertação.

Um balanço sumário dos últimos 30/40 anos aponta a seguinte conclusão: graças ao cristianismo da libertação, idéias, temas e valores do marxismo — claro, de forma seletiva e reformulados em termos político-religiosos — foram assimilados por amplos setores populares no Brasil — que se encontram não só nas CEBs, mas também no PT, na CUT e no MST —, em proporções sem precedentes na história da esquerda brasileira. História do marxismo no Brasil – volume 6 Marcelo Ridenti e Daniel Aarão Reis (orgs.). São Paulo: Editora da Unicamp, 2007, p. 434-435

Notas
1    O conceito de afinidade eletiva tem origem na alquimia, que tratava de ex­ plicar a attractio electiva que conduz à fusão de dois corpos pela afinidade dos elementos  que  os  compõem.  No  célebre  romance  de  Goethe  As  afinidades eletivas, esse conceito “químico” serve de alegoria para a fusão entre a alma do homem e a da mulher apaixonados. Em Weber, o termo Wahlverwandschafi é utilizado como conceito sociológico para designar um processo de escolha recíproca e reforço mútuo entre formas culturais. Para mais detalhes a esse respeito, cf. meu livro Redenção e utopia. O judaísmo libertário na Europa central. Um estudo de afinidade eletiva. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
2      P. Lebret, ÜÉconomie humaine. São Paulo, 1947, mimeo.
3      Segundo testemunho de Yvo do Amaral Lesbaupin ao autor.
4       Documento anexo ao livro pioneiro de Luiz Gonzaga de Souza Lima, Evo­ lução política dos católicos e da Igreja. Petrópolis: Vozes, 1979, pp. 87-92.
5     Mareio Moreira Alves, LEglise et lapolitique au Brésil. Paris: Cerf, 1974, p. 120.
6      Luiz Gonzaga de Souza Lima, op. cit, p. 87.
7       Sobre as origens da AP e sua evolução, cf. o excelente ensaio de Marcelo Ridenti no volume 5 desta História do marxismo no Brasil.
8      Hugo Assmann, entrevista, 10 set., 1988.
9       H. Assmann, Opresión-liberación, desafio a los cristianos. Montevidéu: Tierra Nueva, 1971, p. 21.
10   Idem, op. cit., p. 24.
11   Idem, Implicaciones socioanaliticas e ideológicas dei lenguaje de liberación, 1972, apud Samuel Silva Gotay, O pensamento cristão revolucionário na América Latina e no Caribe. São Paulo: Paulinas, 1985, p. 201.
12   H. Assmann e R. Mate, Marxy Engels sobre la religión. Salamanca: Sigueme,
1974 e Sobre la religión II (Jaurès, Lenin, etc.). Salamanca: Sigueme, 1975.
13 Leonardo Boff, O caminhar da Igreja com os oprimidos, 3a ed. Prefácio Darcy Ribeiro. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 273. Em seu ensaio sobre O marxismo e a teologia da libertação (Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1987), o filósofo Luigi Bordin  insiste acertadamente nessa significação  dapráxw marxista  — e não apenas da mediação socioanalítica — para a teologia da libertação: “os teólogos da libertação  não  usam a metodologia científica do  marxismo  apenas no momento  constitutivo  da mediação  téorica-socio-analítica da Teologia da Libertação. Na verdade, eles assumem, antes, a praxis, isto  é, as práticas populares e proletárias de luta. Podemos, pois, concluir que os teólogos, assumindo com radicalidade as lutas populares de libertação, assumem tam­ bém a racionalidade inerente a tais práticas, que têm no marxismo sua ex­ pressão  mais coerente” (p. 97). Caberia acrescentar que se trata não  só  de “racionalidade”, mas de ética e de utopia.
14   L. Boff, op. cit., pp. 275-77.
15   Idem, op. cit., p. 275.
16   L. Boff et al., O que ficou... Balanço aos 50. Petrópolis: Vozes, 1989, pp. 20-21.
17   Clodovis Boff, entrevista, 19 set., 1988.
18   Clodovis Boff, Teologia do político e suas mediações. Petrópolis: Vozes, 1978, pp. 118-24.
19   Frei Betto, entrevista, 13 set., 1988.
20     Betto publicou um livro que teve grande impacto sobre a relação dos do­ minicanos com a guerrilha da ALN: Batismo de sangue. Os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. Rio de Janeiro: Bertrand, 1987.
21    Fr. Fernando, fr. Ivo e fr. Betto, O canto na fogueira. Cartas de três dominicanos quando em cárcere político. Petrópolis: Vozes, 1977, pp. 39 e 120.
22    Frei Betto, Cristianismo e marxismo. Petrópolis: Vozes, 1986, pp. 35-37.
3    Frei Betto, entrevista, 14 set., 1987.
24    Frei Betto, Cristianismo e marxismo, op. cit., p. 42.
25   Apud Scott Mainwaring, The Catholic Church andpolities in Brazil, 1916- 1985. Stanford: Stanford University Press, 1986, p. 155.
26   Anexo a Luiz Gonzaga de Souza Lima, op. cit., p. 237.
27    Idem, op. cit., pp. 106-8.
28 Refiro-me a autores como Andre Gunder Frank, Ruy Mauro Marini e Theo- tonio  dos Santos. Sobre a relação  entre teologia da libertação  e teoria da dependência, ver o livro de Luigi Bordin, op. cit.
29     Otávio Guilherme Velho, Sociedade e apicultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, pp. 125-36.
30       Roberto  Romano,  Brasil:  Igreja  contra  Estado.  São  Paulo:  Kairos,  1979, pp. 190-230.
31      Para uma discussão mais detalhada do “momento” romântico no marxismo, remeto a meu livro, em colaboração com Robert Sayre, Revolta e melanco­
lia. O romantismo na contramão da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1998.
32       L. Boff,  Ecologia, mundialização, espiritualidade. São Paulo: Ática, 1993, p. 115.
33    Idem, op. cit., pp. 116-18.
34    Idem, Ecologia. Grito da terra, pito dos pobres. São Paulo: Ática, 1995, p. 173.
35    H. Assmann e F. Hinkelammert, A idolatria do mercado. Ensaio sobre economia e teologia. Petrópolis: Vozes, 1989, pp. 74, 173-74, 301-2 e 396.
36      Idem, op. cit., pp. 388-411. A erudição de Assmann e seu conhecimento dos textos de Marx são impressionantes.
37 Jung Mo Sung, A idolatria do capital e a morte dos pobres. São Paulo: Paulinas, 1989, pp. 115 e 126. Nesse ensaio há poucas referências diretas a Marx, mas encontramos várias citações de Karel Kosik, Henri Lefebvre, Isaak  Rubin, Emest Mandei, Leandro Konder e outros marxistas contemporâneos.
38     Jung Mo Sung, Teologia e economia. Repensando a teologia da libertação e utopias. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 237. A posição de Sung é mais distancia­ da em relação a Marx do que a de Assmann ou Betto; por exemplo, ele critica a utopia marxista como fundada na “ilusão de acreditar que é possível cons­ truir  no  interior  da  história  o  Reino  da  Liberdade  em  plenitude,  através da praxis revolucionária” (p. 268).
39    L. Boff, Ecologia, op. cit., pp. 173-74.  História do marxismo no Brasil – volume 6 Marcelo Ridenti e Daniel Aarão Reis (orgs.). São Paulo: Editora da Unicamp, 2007, p. 411-437



9-Crítica católica oficial às teologias da libertação que impõe nova interpretação à fé católica.

Este documento que se segue foi publicado em 1984 com a aprovação do Papa João Paulo II e feito por Ratzinger que veio a se tornar papa posteriormente 2005-2013 (Papa Bento XVI). 


SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ

INSTRUÇÃO
SOBRE ALGUNS ASPECTOS
DA « TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO » libertati nuntius


O Sumo Pontífice João Paulo II, no decorrer de uma Audiência concedida ao Cardeal Prefeito que subscreve este documento, aprovou a presente Instrução, deliberada em reunião ordinária da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, e ordenou que a mesma fosse publicada.

Roma, Sede da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, 6 de Agosto de 1984, na Festa da Transfiguração do Senhor.

Joseph Card. Ratzinger
Prefeito

SB Alberto Bovone
Arcebispo tit. de Cesárea de Numidia
Secretário


III - A LIBERTAÇÃO, TEMA CRISTÃO

1. Considerada em si mesma, a aspiração pela libertação não pode deixar de encontrar eco amplo e fraterno no coração e no espírito dos cristãos.

2. Assim, em consonância com esta aspiração, nasceu o movimento teológico e pastoral conhecido pelo nome de « teologia da libertação »: num primeiro momento nos países da América Latina, marcados pela herança religiosa e cultural do cristianismo; em seguida, nas outras regiões do Terceiro Mundo, bem como em alguns ambientes dos países industrializados.

3. A expressão « teologia da libertação » designa primeiramente uma preocupação privilegiada, geradora de compromisso pela justiça, voltada para os pobres e para as vítimas da opressão. A partir desta abordagem podem-se distinguir diversas maneiras, frequentemente inconciliáveis, de conceber a significação cristã da pobreza e o tipo de compromisso pela justiça que ela exige. Como todo movimento de ideias, as « teologias da libertação » englobam posições teológicas diversificadas; suas fronteiras doutrinais são mal definidas....


IV - FUNDAMENTOS BÍBLICOS


3 As « teologias da libertação » recorrem amplamente à narração do Livro do Êxodo. Este constitui, de fato, o acontecimento fundamental na formação do Povo eleito. É preciso não perder de vista, contudo, que a significação específica do acontecimento provém de sua finalidade, já que esta libertação está orientada para a constituição do povo de Deus e para o culto da Aliança celebrado no Monte Sinai.[4] Por isso a libertação do Êxodo não pode ser reduzida a uma libertação de natureza prevalentemente ou exclusivamente política. É significativo, de resto, que o termo libertação seja ás vezes substituído na Sagrada Escritura pelo outro, muito semelhante, de redenção...


5. As múltiplas angústias e desgraças experimentadas pelo homem fiel ao Deus da Aliança servem de tema para diversos salmos: lamentações, pedidos de socorro, ações de graças referem-se à salvação religiosa e à libertação. Neste contexto, a desgraça não se identifica pura e simplesmente com uma condição social de miséria ou com a sorte de quem sofre opressão política. Ela inclui também a hostilidade dos inimigos, a injustiça, a morte e a culpa. Os salmos nos remetem a uma experiência religiosa essencial: somente de Deus se espera a salvação e o remédio. Deus, e não o homem, tem o poder de mudar as situações de angústia. Assim, os « pobres do Senhor » vivem numa dependência total e confiante na providência amorosa de Deus.[6] Aliás, durante toda a travessia do deserto, o Senhor nunca deixou de prover à libertação e à purificação espirituais de seu povo.

6. No Antigo Testamento, os profetas, desde Amos, não cessam de recordar, com particular vigor, as exigências da justiça e da solidariedade e de formular um juizo extremamente severo sobre os ricos que oprimem o pobre. Tomam a defesa da viúva e do órfão. Proferem ameaças contra os poderosos: a acumulação de iniquidades acarretará necessariamente terríveis castigos. Isto porque não se concebe a fidelidade à Aliança sem a prática da justiça. A justiça em relação a Deus e a justiça em relação aos homens são inseparáveis. Deus é o defensor e o libertador do pobre.

7. Semelhantes exigências encontram-se também no Novo Testamento. Ali são até radicalizadas, como demonstra o discurso das Bem-aventuranças. Conversão e renovação devem operar-se no mais íntimo do coração.

8. Já anunciado no Antigo Testamento, o mandamento do amor fraterno estendido a todos os homens constitui agora a suprema norma da vida social.[7] Não há discriminações ou limites que possam opor-se ao reconhecimento de todo e qualquer homem como o próximo.[8]...


12. A Revelação do Novo Testamento nos ensina que o pecado é o mal mais profundo, que atinge o homem no cerne da sua personalidade. A primeira libertação, ponto de referência para as demais, é a do pecado.

13. Se o Novo Testamento se abstém de exigir previamente, como pressuposto para a conquista desta liberdade, uma mudança da condição política e social, é sem dúvida, para salientar o caráter radical da emancipação trazida por Cristo, oferecida a todos os homens, sejam eles livres ou escravos politicamente. Contudo Carta a Filêmon mostra que a nova liberdade, trazida pela graça de Cristo, deve necessariamente ter repercussão também no campo social.

14. Não se pode portanto restringir o campo do pecado, cujo primeiro efeito é o de introduzir a desordem na relação entre o homem e Deus, àquilo que se denomina « pecado social ». Na verdade, só uma adequada doutrina sobre o pecado permitirá insistir sobre a gravidade de seus efeitos sociais.

15. Não se pode tampouco situar o mal unicamente ou principalmente nas « estruturas » económicas, sociais ou políticas, como se todos os outros males derivassem destas estruturas como de sua causa: neste caso a criação de um « homem novo » dependeria da instauração de estruturas económicas e socio-políticas diferentes. Há, certamente, estruturas iníquas e geradoras de iniquidades, e é preciso ter a coragem de mudá-las. Fruto da ação do homem, as estruturas boas ou más são consequências antes de serem causas. A raiz do mal se encontra pois nas pessoas livres e responsáveis, que devem ser convertidas pela graça de Jesus Cristo, para viverem e agirem como criaturas novas, no amor ao próximo, na busca eficaz da justiça, do auto-domínio e do exercício das virtudes.[13]

Ao estabelecer como primeiro imperativo a revolução radical das relações sociais e ao criticar, a partir desta posição, a busca da perfeição pessoal, envereda-se pelo caminho da negação do sentido da pessoa e de sua transcendência, e destroem-se a ética e o seu fundamento, que é o caráter absoluto da distinção entre o bem e o mal. Ademais, sendo a caridade o princípio da autêntica perfeição, esta não pode ser concebida sem abertura aos outros e sem espírito de serviço....


VI - UMA NOVA INTERPRETAÇÃO DO CRISTIANISMO...


3. O sentimento angustiante da urgência dos problemas não pode levar a perder de vista o essencial, nem fazer esquecer a resposta de Jesus ao Tentador (Mt 4, 4): « Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus » (Dt 8, 3). Assim, sucede que alguns, diante da urgência de repartir o pão, são tentados a colocar entre parênteses e a adiar para amanhã a evangelização: primeiro o pão, a Palavra mais tarde. É um erro fatal separar as duas coisas, até chegar a opô-las. O senso cristão, aliás, espontaneamente sugere a muitos que façam uma e outra.[19]

4. A alguns parece até que a luta necessária para obter justiça e liberdade humanas, entendidas no sentido económico e político, constitua o essencial e a totalidade da salvação. Para estes, o Evangelho se reduz a um evangelho puramente terrestre.

5. É em relação à opção preferencial pelos pobres, reafirmada com vigor e sem meios termos, após Medellin, na Conferência de Puebla[20] de um lado, e à tentação de reduzir o Evangelho da salvação a um evangelho terrestre, de outro lado, que se situam as diversas teologias da libertação.

6. Lembremos que a opção preferencial, definida em Puebla, é dupla: pelos pobres e pelos jovens.[21] É significativo que a opção pela juventude seja, de maneira geral, totalmente silenciada.

7. Dissemos acima (cf. IV, 1) que existe uma autêntica « teologia da libertação », aquela que lança raízes na Palavra de Deus, devidamente interpretada.

8. Mas sob um ponto de vista descritivo, convém falar das teologias da libertação, pois a expressão abrange posições teológicas, ou até mesmo ideológicas, não apenas diferentes, mas até, muitas vezes, incompatíveis entre si.

9. No presente documento tratar-se-á somente das produções daquela corrente de pensamento que, sob o nome de « teologia da libertação », propõem uma interpretação inovadora do conteúdo da fé e da existência cristã, interpretação que se afasta gravemente da fé da Igreja, mais ainda, constitui uma negação prática dessa fé.

10. Conceitos tomados por empréstimo, de maneira a-crítica, à ideologia marxista e o recurso a teses de uma hermenêutica bíblica marcada pelo racionalismo encontram-se na raiz da nova interpretação, que vem corromper o que havia de autêntico no generoso empenho inicial em favor dos pobres.

VII - A ANÁLISE MARXISTA

1. A impaciência e o desejo de ser eficazes levaram alguns cristãos, perdida a confiança em qualquer outro método, a voltarem-se para aquilo que chamam de « análise marxista ».

2. Seu raciocínio é o seguinte: uma situação intolerável e explosiva exige uma ação eficaz que não pode mais ser adiada. Uma ação eficaz supõe uma análise científica das causas estruturais da miséria. Ora, o marxismo aperfeiçoou um instrumental para semelhante análise. Bastará pois aplicá-lo à situação do Terceiro Mundo e especialmente à situação da América Latina.

3. Que o conhecimento científico da situação e dos possíveis caminhos de transformação social seja o pressuposto de uma ação capaz de levar aos objetivos prefixados, é evidente. Vai nisto um sinal de seriedade no compromisso.

4. O termo « científico », porém, exerce uma fascinação quase mítica; nem tudo o que ostenta a etiqueta de científico o é necessariamente. Por isso tomar emprestado um método de abordagem da realidade é algo que deve ser precedido de um exame crítico de natureza epistemológica. Ora, este prévio exame crítico falta a várias « teologias da libertação ».

5. Nas ciências humanas e sociais, convém estar atento antes de tudo à pluralidade de métodos e de pontos de vista, cada um dos quais põe em evidência um só aspecto da realidade; esta em virtude de sua complexidade, escapa a uma explicação unitária e unívoca.

6. No caso do marxismo, tal como se pretende utilizar na conjuntura de que falamos, tanto mais se impõe a crítica prévia, quanto o pensamento de Marx constitui uma concepção totalizante do mundo, na qual numerosos dados de observação e de análise descritiva são integrados numa estrutura filosófico-ideológica, que determina a significação e a importância relativa que se lhes atribui. Os a priori ideológicos são pressupostos para a leitura da realidade social. Assim, a dissociação dos elementos heterogéneos que compõem este amálgama epistemologicamente híbrido torna-se impossível, de modo que, acreditando aceitar somente o que se apresenta como análise, se é forçado a aceitar, ao mesmo tempo, a ideologia. Por isso não é raro que sejam os aspectos ideológicos que predominem nos empréstimos que diversos « teólogos da libertação » pedem aos autores marxistas.

7. A advertência de Paulo VI continua ainda hoje plenamente atual: através do marxismo, tal como è vivido concretamente, podem-se distinguir diversos aspectos e diversas questões propostas à reflexão e à ação dos cristãos. Entretanto, « seria ilusório e perigoso chegar ao ponto de esquecer o vínculo estreito que os liga radicalmente, aceitar os elementos da análise marxista sem reconhecer suas relações com a ideologia, entrar na prática da luta de classes e de sua interpretação marxista sem tentar perceber o tipo de sociedade totalitária à qual este processo conduz ».[22]

8. É verdade que desde as origens, mais acentuadamente porém nestes últimos anos, o pensamento marxista se diversificou, dando origem a diversas correntes que divergem consideravelmente entre si. Na medida, porém, em que se mantêm verdadeiramente marxistas, estas correntes continuam a estar vinculadas a um certo número de teses fundamentais que não são compatíveis com a concepção cristã do homem e da sociedade. Neste contexto, certas fórmulas não são neutras, mas conservam a significação que receberam na doutrina marxista original. É o que acontece com a « luta de classes ». Esta expressão continua impregnada da interpretação que Marx lhe deu e não poderia, por conseguinte, ser considerada, como um equivalente, de caráter empírico, da expressão « conflito social agudo ». Aqueles que se servem de semelhantes fórmulas, pretendendo reter apenas certos elementos da análise marxista,, que de resto seria rejeitada na sua globalidade, alimentam pelo menos um grave mal-entendido no espírito de seus leitores.

9. Lembremos que o ateísmo e a negação da pessoa humana,, de sua liberdade e de seus direitos, encontram-se no centro da concepção marxista. Esta contém de fato erros que ameaçam diretamente as verdades de fé sobre o destino eterno das pessoas. Ainda mais: querer integrar na teologia uma « análise » cujos critérios de interpretação dependam desta concepção ateia, significa embrenhar-se em desastrosas contradições. O desconhecimento da natureza espiritual da pessoa, aliás, leva a subordiná-la totalmente à coletividade e deste modo a negar os princípios de uma vida social e política em conformidade com a dignidade humana,

10. O exame crítico dos métodos de análise tomados de outras disciplinas impõe-se de maneira particular ao teólogo. É a luz da fé que fornece à teologia seus princípios. Por isso a utilização, por parte dos teólogos, de elementos filosóficos ou das ciências humanas tem um valor « instrumental » e deve ser objeto de um discernimento crítico de natureza teológica. Em outras palavras, o critério final e decisivo da verdade não pode ser, em última análise, senão um critério teológico. É à luz da fé, e daquilo que ela nos ensina sobre a verdade do homem e sobre o sentido último de seu destino, que se deve julgar da validade ou do grau de validade daquilo que as outras disciplinas propõem, de resto, muitas vezes à maneira de conjectura, como sendo verdades sobre o homem, sobre a sua história e sobre o seu destino.

11. Aplicados à realidade económica, social e política de hoje, certos esquemas de interpretação tomados de correntes do pensamento marxista podem apresentar, à primeira vista, alguma verosimilhança na medida em que a situação de alguns países oferece analogias com aquilo que Marx descreveu e interpretou, em meados do século passado. Tomando por base estas analogias, operam-se simplificações que, abstraindo de fatores essenciais específicos, impedem, de fato, uma análise verdadeiramente rigorosa das causas da miséria, mantêm as confusões.

12. Em certas regiões da América Latina, a monopolização de grande parte das riquezas por uma oligarquia de proprietários desprovidos de consciência social, a quase ausência ou as carências do estado de direito, as ditaduras militares que conculcam os direitos elementares do homem, o abuso do poder por parte de certos dirigentes, as manobras selvagens de um certo capital estrangeiro, constituem outros tantos fatores que alimentam um violento sentimento de revolta junto àqueles que, deste modo, se consideram vítimas impotentes de um novo colonialismo de cunho tecnológico, financeiro, monetário ou económico. A tomada de consciência das injustiças é acompanhada por un pathos que pede muitas vezes emprestado ao marxismo seu discurso, apresentado abusivamente como sendo um discurso « científico ».

13. A primeira condição para uma análise é a total docilidade à realidade que se pretende descrever. Por isso, uma consciência crítica deve acompanhar o uso das hipóteses de trabalho que se adotam. É necessário saber que elas correspondem a um ponto de vista particular, o que tem por consequência inevitável sublinhar unilateralmente certos aspectos do real, deixando outros na sombra. Esta limitação, que deriva da natureza das ciências sociais, é ignorada por aqueles que, à guisa de hipóteses reconhecidas como tais, recorrem a uma concepção totalizante, como é o pensamento de Marx.

VIII - SUBVERSÃO DO SENSO DA VERDADE E VIOLÊNCIA

1. Esta concepção totalizante impõe assim a sua lógica e leva as « teologias da libertação » a aceitar um conjunto de posições incompatíveis com a visão cristã do homem. Com efeito, o núcleo ideológico, tomado do marxismo e, que serve de ponto de referência, exerce a função de princípio determinante. Este papel lhe é confiado em virtude da qualificação de científico, quer dizer, de necessariamente verdadeiro, que lhe é atribuída. Neste núcleo podem-se distinguir diversos componentes.

2. Na lógica do pensamento marxista, a « análise » não é dissociável da praxis e da concepção da história à qual esta praxis está ligada, A análise é pois um instrumento de crítica e a crítica não passa de uma etapa do combate revolucionário. Este combate é o da classe do Proletariado investido de sua missão histórica.

3. Em consequência, somente quem participa deste combate pode fazer uma análise correta.

4. A consciência verdadeira é pois uma consciência « partidarista ». Pelo que se vê, é a própria concepção da verdade que aqui está em causa e que se encontra totalmente subvertida: não existe verdade – afirma-se – a não ser na e pela praxis « partidarista ».

5. A praxis e a verdade que dela deriva, são praxis e verdade partidaristas, porque a estrutura fundamental da história está marcada pela luta de classes. Existe pois uma necessidade objetiva de entrar na luta de classes (que é o reverso dialético da relação de exploração que se denuncia). A verdade é a verdade de classe – não há verdade senão no combate da classe revolucionária.

6. A lei fundamental da história, que é a lei da luta de classes, implica que a sociedade esteja fundada sobre a violência. À violência que constitui a relação de dominação dos ricos sobre os pobres deverá responder a contra-violência revolucionária, mediante a qual esta relação será invertida.

7. A luta de classes é pois apresentada como uma lei objetiva e necessária. Ao entrar no seu processo, do lado dos oprimidos, « faz-se » a verdade, age-se « cientificamente ». Em consequência, a concepção da verdade vai de par com a afirmação da violência necessária e, por isso, com a do amoralismo político. Nesta perspectiva, a referência a exigências éticas, que prescrevam reformas estruturais e institucionais radicais e corajosas perde totalmente o sentido.

8. A lei fundamental da luta de classes tem um caráter de globalidade e de universalidade. Ela se reflete em todos os domínios da existência, religiosos, éticos, culturais e institucionais. Em relação a esta lei, nenhum destes domínios é autónomo. Em cada um esta lei constitui o elemento determinante.

9. Quando se assumem estas teses de origem marxista é, em particular, a própria natureza da ética qui é radicalmente questionada. De fato, o caráter transcendente da distinção entre o bem e o mal, princípio da moralidade, encontra-se implicitamente negado na ótica da luta de classes.

IX - TRADUÇÃO « TEOLÓGICA » DESTE NÚCLEO IDEOLÓGICO

1. As posições aqui expostas encontram-se às vezes enunciadas com todos os seus termos em alguns escritos de « teólogos da libertação ». Em outros, elas se deduzem logicamente das premissas colocadas. Em outros ainda, elas são pressupostas em certas práticas litúrgicas (como por exemplo a « Eucaristia » transformada em celebração do povo em luta), embora quem participa destas práticas não esteja plenamente consciente disso. Estamos pois diante de um verdadeiro sistema, mesmo quando alguns hesitam em seguir a sua lógica até o fim. Como tal, este sistema é uma perversão da mensagem cristã, como esta foi confiada por Deus à Igreja. Esta mensagem se encontra pois posta em xeque, na sua globalidade, pelas « teologias da libertação ».

2. Não é o fato das estratificações sociais, com as conexas desigualdades e injustiças, éteoria da luta de classes como lei estrutural fundamental da história que é recebida por estas « teologias da libertação », na qualidade de princípio. A conclusão a que se chega é que a luta de classes, entendida deste modo, divide a própria Igreja e em função dela se devem julgar as realidades eclesiais. Pretende-se ainda que afirmar que o amor, na sua universalidade, é um meio capaz de vencer aquilo que constitui a lei estrutural primária da sociedade capitalista, seria manter, de má fé, uma ilusão falaz.

3. Dentro desta concepção, a luta de classes é o motor da história. A história torna-se assim uma noção central. Afirmar-se-á que Deus se fez história. Acrescentar-se-á que não existe senão uma única história, na qual já não é preciso distinguir entre história da salvação e história profana. Manter a distinção seria cair no « dualismo ». Semelhantes afirmações refletem um imanentismo historicista. Tende-se deste modo a identificar o Reino de Deus e o seu advento com o movimento de libertação humana e a fazer da mesma história o sujeito de seu próprio desenvolvimento como processo da auto-redenção do homem por meio de luta de classes. Esta identificação está em oposição com a fé da Igreja, como foi relembrada pelo Concílio Vaticano II.[23]

4. Nesta linha, alguns chegam até ao extremo de identificar o próprio Deus com a história e a definir a fé como « fidelidade à história », o que significa fidelidade comprometida com uma prática política, afinada com a concepção do devir da humanidade concebido no sentido de um messianismo puramente temporal.

5. Por conseguinte, a fé, a esperança e a caridade recebem um novo conteúdo: são « fidelidade à história », « confiança no futuro », « opção pelos pobres ». É o mesmo que dizer que são negadas em sua realidade teologal.

6. Desta nova concepção deriva inevitavelmente uma politização radical das afirmações da fé e dos juízos teológicos. Já não se trata somente de chamar a atenção para as consequências e incidências políticas das verdades de fé que seriam respeitadas antes de tudo em seu valor transcendente. Toda e qualquer afirmação de fé ou de teologia se vê subordinada a um critério político, que, por sua vez, depende da teoria da luta de classes, como motor da história.

7. Apresenta-se por conseguinte o ingresso na luta de classes como uma exigência da própria caridade; denuncia-se como atitude desmobilizadora e contrária ao amor pelos pobres a vontade de amar, de saída, todo homem, qualquer que seja a classe a que pertença, e de ir ao seu encontro pelas vias não-violentas do diálogo e da persuasão. Mesmo afirmando que ele não pode ser objeto de ódio, afirma-se com a mesma força que, pelo fato de pertencer objetivamente ao mundo dos ricos, ele é, antes de tudo, um inimigo de classe a combater. Como consequência, a universalidade do amor ao próximo e a fraternidade transformam-se num princípio escatológico que terá valor somente para o « homem novo », que surgirá da revolução vitoriosa.

8. Quanto à Igreja, a tendência é de encará-la simplesmente como uma realidade dentro da história, sujeita ela também às leis que, segundo se pensa, governam o devir histórico na sua imanência. Esta redução esvazia a realidade específica da Igreja, dom da graça de Deus e mistério da fé. Contesta-se, igualmente, que a participação na mesma Mesa eucarística de cristãos que, por acaso, pertençam a classes opostas, tenha ainda algum sentido.

9. Na sua significação positiva, a Igreja dos pobres indica a preferência, sem exclusivismo, dada aos pobres, segundo todas as formas de miséria humana, porque eles são os prediletos de Deus. A expressão significa ainda que a Igreja, como comunhão e como instituição, assim como os membros da mesma Igreja, tomam consciência, em nosso tempo, das exigências da pobreza evangélica.

10. Mas as « teologias da libertação », que têm o mérito de haver revalorizado os grandes textos dos profetas e do Evangelho acerca da defesa dos pobres, passam a fazer um amálgama pernicioso entre o pobre da Escritura e o proletariado de Marx. Perverte-se deste modo o sentido cristão do pobre e o combate pelos direitos dos pobres transforma-se em combate de classes na perspectiva ideológica da luta de classes. A Igreja dos pobres significa então Igreja classista, que tomou consciência das necessidades da luta revolucionária como etapa para a libertação e que celebra esta libertação na sua liturgia.

11. É necessário fazer uma observação análoga a respeito da expressão Igreja do povo. Do ponto de vista pastoral, pode-se entender com essa expressão os destinatários prioritários da evangelização, aqueles para os quais, em virtude de sua condição, se volta primeiro que tudo o amor pastoral da Igreja. É possível referir-se também à Igreja como « povo de Deus », ou seja, como o povo da Nova Aliança realizada em Cristo.[24]

12. As « teologias da libertação », a que aqui nos referimos, porém, entendem por Igreja do povo a Igreja da luta libertadora organizada. O povo assim entendido chega mesmo a tornar-se, para alguns, objeto de fé.

13. A partir de semelhante concepção da Igreja do povo, elabora-se uma crítica das próprias estruturas da Igreja. Não se trata apenas de uma correção fraterna dirigida aos pastores da Igreja, cujo comportamento não reflita o espírito evangélico de serviço e se apegue a sinais anacrónicos de autoridade que escandalizam os pobres. Trata-se, sim, de pôr em xeque a estrutura sacramental e hierárquica da Igreja, tal como a quis o próprio Senhor. São denunciados na Hierarquia e no Magistério os representantes objetivos da classe dominante, que é preciso combater. Teologicamente, esta posição equivale a afirmar que o povo é a fonte dos ministérios e portanto pode dotar-se de ministros à sua escolha, de acordo com as necessidades de sua missão revolucionária histórica.

X - UMA NOVA HERMENÊUTICA

1. A concepção partidarista da verdade, que se manifesta na praxis revolucionária de classe, corrobora esta posição. Os teólogos que não compartilham as teses da « teologia da libertação », a hierarquia e sobretudo o Magistério romano são assim desacreditados a priori, como pertencentes à classe dos opressores. A teologia deles é uma teologia de classe. Os argumentos e ensinamentos não merecem pois ser examinados em si mesmos, uma vez que refletem simplesmente os interesses de uma classe. Por isso, decreta-se que o discurso deles é, em princípio, falso.

2. Aparece aqui o carácter global e totalizante da « teologia da libertação ». Por isso mesmo, deve ser criticada não nesta ou naquela afirmação que ela faz, mas a partir do ponto de vista de classes que ela adopta a priori e que nela funciona como princípio hermenêutico determinante.

3. Por causa deste pressuposto classista, torna-se extremamente difícil, para não dizer impossível, conseguir com alguns « teólogos da libertação » um verdadeiro diálogo, no qual o interlocutor seja ouvido e seus argumentos sejam discutidos objetivamente e com atenção. Com efeito estes teólogos mais ou menos conscientemente, partem do pressuposto de que o ponto de vista da classe oprimida e revolucionária, que seria o mesmo deles constitui o único ponto de vista da verdade. Os critérios teológicos da verdade, vêem-se, deste modo, relativizados e subordinados aos imperativos da luta de classes. Nesta perspectiva substitui-se a ortodoxia como regra correta da fé pela ideia da ortopráxis, como critério de verdade. A este respeito, é preciso não confundir a orientação prática, própria à teologia tradicional, do mesmo modo e pelo mesmo título que lhe é própria também a orientação especulativa, com um primado privilegiado, conferido a um determinado tipo de praxis. Na realidade esta última é a praxis revolucionária que se tornaria assim critério supremo da verdade teológica. Uma metodologia teológica sadia toma em consideração, sem dúvida, a praxis da Igreja e nela encontra um de seus fundamentos, mas isto porque essa praxis é decorrência da fé e constitui uma expressão vivenciada dessa fé.

4. A doutrina social da Igreja é rejeitada com desdém. Esta procede, afirma-se, da ilusão de um possível compromisso, próprio das classes médias, destituídas de sentido histórico.

5. A nova hermenêutica inserida nas « teologias da libertação » conduz a uma releitura essencialmente política da Escritura. É assim que se atribui a máxima importância ao acontecimento do Êxodo, enquanto libertação da escravidão política. Propõe-se igualmente uma leitura política do Magnificat. O erro aqui não está em privilegiar uma dimensão política das narrações bíblicas; mas em fazer desta dimensão a dimensão principal e exclusiva, o que leva a uma leitura redutiva da Escritura.

6. Quem assim procede, coloca-se por isso mesmo na perspectiva de um messianismo temporal, que é uma das expressões mais radicais da secularização do Reino de Deus e de sua absorção na imanência da história humana.

7. Privilegiar deste modo a dimensão política, é o mesmo que ser levado a negar a radical novidade do Novo Testamento e, antes de tudo, a desconhecer a pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, bem como o caráter específico da libertação que Ele nos traz e que é fundamentalmente libertação do pecado, fonte de todos os males.

8. Aliás, pôr de lado a interpretação autorizada do Magistério, denunciada como interpretação de classe, é afastar-se automaticamente da Tradição. É, par isso mesmo, privar-se de um critério teológico essencial para a interpretação e acolher no vazio assim criado, as teses mais radicais da exegese racionalista. Retoma-se, então, sem espírito crítico, a oposição entre o « Jesus da história » e o « Jesus da fé ».

9. Conserva-se, sem dúvida, a letra das fórmulas da fé, especialmente a de Calcedônia, mas atribui-se a essas fórmulas uma nova significação, que constitui uma negação da fé da Igreja. De um lado, rejeita-se a doutrina cristológica apresentada pela Tradição, em nome do critério de classe; e de outro lado, pretende-se chegar ao « Jesus da história » a partir da experiência revolucionária da luta dos pobres pela sua libertação.

10. Pretende-se reviver uma experiência análoga à que teria sido a de Jesus. A experiência dos pobres lutando por sua libertação, que teria sido a de Jesus, e só ela, revelaria assim o conhecimento do verdadeiro Deus e do Reino.

11. É claro que a fé no Verbo encarnado, morto e ressuscitado por todos os homens, a Quem « Deus fez Senhor e Cristo »[25] é negada. Toma o seu lugar uma « figura » de Jesus, uma espécie de símbolo que resume em si mesmo as exigências da luta dos oprimidos.

12. Propõe-se assim uma interpretação exclusivamente política da morte de Cristo. Nega-se desta maneira seu valor salvífico e toda a economia da redenção.

13. A nova interpretação atinge assim todo o conjunto do mistério cristão.

14. De um modo geral, ela opera o que se poderia chamar de inversão dos símbolos. Assim, em lugar de ver no Êxodo com São Paulo, uma figura do batismo,[26] se tenderá ao extremo de fazer deste um símbolo da libertação política do povo.

15. Pelo mesmo critério hermenêutico, aplicado à vida eclesial e à constituição hierárquica da Igreja, as relações entre a hierarquia e a « base » tornam-se relações de dominação que obedecem à lei da luta de classes. A sacramentalidade, que está na raiz dos ministérios eclesiásticos e que faz da Igreja uma realidade espiritual que não se pode reduzir a uma análise puramente sociológica, é simplesmente ignorada.

16. Verifica-se ainda a inversão dos símbolos no domínio dos sacramentos. A Eucaristia não é mais entendida na sua verdade de presença sacramental do sacrifício reconciliador e como dom do Corpo e do Sangue de Cristo. Torna-se celebração do povo na sua luta. Por conseguinte, a unidade da Igreja é radicalmente negada. A unidade, a reconciliação, a comunhão no amor não mais são concebidas como um dom que recebemos de Cristo.[27] É a classe histórica dos pobres que, mediante o combate, construirá a unidade. A luta de classes é o caminho desta unidade. A Eucaristia torna-se, deste modo, Eucaristia de classe. Nega-se também, ao mesmo tempo a força triunfante do amor de Deus que nos é dado.

XI - ORIENTAÇÕES

1. Chamar a atenção para os graves desvios que algumas « teologias da libertação » trazem consigo não deve, de modo algum, ser interpretado como uma aprovação, ainda que indireta, aos que contribuem para a manutenção da miséria dos povos, aos que dela se aproveitam, aos que se acomodam ou aos que ficam indiferentes perante esta miséria. A Igreja, guiada pelo Evangelho da Misericórdia e pelo amor ao homem, escuta o clamor pela justiça[28] e deseja responder com todas as suas forças.

2. Um imenso apelo é assim dirigido à Igreja. Com audácia e coragem, com clarividência e prudência, com zelo e força de ânimo, com um amor aos pobres que vai até ao sacrifício, os pastores, como muitos já fazem, hão de considerar como tarefa prioritária responder a este apelo.

3. Todos aqueles, sacerdotes, religiosos e leigos que, auscultando o clamor pela justiça, quiserem trabalhar na evangelização e na promoção humana, fá-lo-ão em comunhão com seu bispo e com a Igreja, cada um na linha de sua vocação eclesial específica.

4. Conscientes do carácter eclesial de sua vocação, os teólogos colaborarão lealmente e em espírito de diálogo com o Magistério da Igreja. Saberão reconhecer no Magistério um dom de Cristo à sua Igreja[29] e acolherão a sua palavra e as suas orientações com respeito filial.

5. Somente a partir da tarefa evangelizadora, tomada em sua integralidade, se compreendem as exigências de uma promoção humana e de uma libertação autênticas. Esta libertação tem como pilares indispensáveis, a verdade sobre Jesus Cristo, o Salvador, a verdade sobre a Igreja, a verdade sobre o homem e sobre a sua dignidade.[30] É à luz das bem-aventuranças, da bem-aventurança dos pobres de coração em primeiro lugar, que a Igreja, desejosa de ser no mundo inteiro a Igreja dos pobres, quer servir a nobre causa da verdade e da justiça. Ela se dirige a cada homem e, por isso mesmo, a todos os homens. Ela é a « Igreja universal. A Igreja do mistério da encarnação. Não é a Igreja de uma classe ou de uma só casta. Ela fala em nome da própria verdade. Esta verdade é realista ». Ela leva a ter em conta « cada realidade humana, cada injustiça, cada tensão, cada luta ».[31]

6. Uma defesa eficaz da justiça deve apoiar-se na verdade do homem, criado à imagem de Deus e chamado à graça da filiação divina. O reconhecimento da verdadeira relação do homem com Deus constitui o fundamento da justiça, enquanto regula as relações entre os homens. Esta é a razão pela qual o combate pelos direitos do homem, que a Igreja não cessa de promover, constitui o autêntico combate pela justiça.

7. A verdade do homem exige que este combate seja conduzido por meios que estejam de acordo com a dignidade humana. Por isso o recurso sistemático e deliberado à violência cega, venha essa de um lado ou de outro, deve ser condenado.[32] Pôr a confiança em meios violentos na esperança de instaurar uma maior justiça é ser vítima de uma ilusão fatal. Violência gera violência e degrada o homem. Rebaixa a dignidade do homem na pessoa das vítimas e avilta esta mesma dignidade naqueles que a praticam.

8. A urgência de reformas radicais que incidam sobre estruturas que segregam a miséria e constituem, por si mesma, formas de violência, não pode fazer perder de vista que a fonte da injustiça se encontra no coração dos homens. Não se obterão pois mudanças sociais que estejam realmente ao serviço do homem senão fazendo apelo às capacidades éticas da pessoa e à constante necessidade de conversão interior.[33] Pois na medida em que colaborarem livremente, por sua própria iniciativa e em solidariedade, nestas necessárias mudanças, os homens, despertados no sentido de sua responsabilidade, crescerão em humanidade. A inversão entre moralidade e estruturas é própria de uma antropologia materialista, incompatível com a verdade do homem.

9. É pois igualmente ilusão fatal crer que novas estruturas darão origem por si mesmas a um « homem novo », no sentido da verdade do homem. O cristão não pode desconhecer que o Espírito Santo que nos foi dado é a fonte de toda verdadeira novidade e que Deus é o senhor da história.

10. A derrubada, por meio da violência revolucionária, de estruturas geradoras de injustiças não é pois ipso facto o começo da instauração de um regime justo. Um fato marcante de nossa época deve ocupar a reflexão de todos aqueles que desejam sinceramente a verdadeira libertação dos seus irmãos. Milhões de nossos contemporâneos aspiram legitimamente a reencontrar as liberdades fundamentais de que estão privados por regimes totalitários e ateus, que tomaram o poder por caminhos revolucionários e violentos, exatamente em nome da libertação do povo. Não se pode desconhecer esta vergonha de nosso tempo: pretendendo proporcionar-lhes liberdade, mantêm-se nações inteiras em condições de escravidão indignas do homem. Aqueles que, talvez por inconsciência, se tornam cúmplices de semelhantes escravidões, traem os pobres que eles quereriam servir.

11. A luta de classes como caminho para uma sociedade sem classes é um mito que impede as reformas e agrava a miséria e as injustiças. Aqueles que se deixam fascinar por este mito deveriam refletir sobre as experiências históricas amargas às quais ele conduziu. Compreenderiam então que não se trata, de modo algum, de abandonar uma via eficaz de luta em prol dos pobres em troca de um ideal desprovido de efeito. Trata-se, pelo contrário, de libertar-se de uma miragem para se apoiar no Evangelho e na sua força de realização.

12. Uma das condições para uma necessária retificação teológica é a revalorização do magistério social da Igreja. Este magistério não é, de modo algum, fechado. É, ao contrário, aberto a todas as novas questões que não deixam de surgir no decorrer dos tempos. Nesta perspectiva, a contribuição dos teólogos e dos pensadores de todas as regiões do mundo para a reflexão da Igreja é hoje indispensável.

13. Do mesmo modo, a experiência daqueles que trabalham diretamente na evangelização e na promoção dos pobres e dos oprimidos é necessária à reflexão doutrinal e pastoral da Igreja. Neste sentido é preciso tomar consciência de certos aspectos da verdade a partir da praxis, se por praxis se entende a prática pastoral e uma prática social que conserva sua inspiração evangélica.

14. O ensino da Igreja em matéria social proporciona as grandes orientações éticas. Mas para que possa atingir diretamente a ação, ele precisa de pessoas competentes, do ponto de vista científico e técnico, bem como no domínio das ciências humanas e da política. Os pastores estarão atentos à formação destas pessoas competentes, profundamente impregnadas pelo Evangelho. São aqui visados, em primeiro lugar, os leigos, cuja missão específica é a de construir a sociedade.

15. As teses das « teologias da libertação » estão sendo largamente difundidas, sob uma forma ainda simplificada, nos cursos de formação ou nas comunidades de base, que carecem de preparação catequética e teológica e de capacidade de discernimento. São assim aceitas, por homens e mulheres generosos, sem que seja possível um juízo crítico.

16. É por isso que os pastores devem vigiar sobre a qualidade e o conteúdo da catequese e da formação que devem sempre apresentar a integralidade da mensagem da salvação e os imperativos da verdadeira libertação humana, no quadro desta mensagem integral.

17. Nesta apresentação integral do mistério cristão, será oportuno acentuar os aspectos essenciais que as « teologias da libertação » tendem especialmente a desconhecer ou eliminar: transcendência e gratuidade da libertação em Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem; soberania de sua graça; verdadeira natureza dos meios de salvação, e especialmente da Igreja e dos sacramentos. Tenham-se presentes a verdadeira significação da ética, para a qual a distinção entre o bem e o mal não pode ser relativizada; o sentido autêntico do pecado; a necessidade da conversão e a universalidade da lei do amor fraterno. Chame-se a atenção contra uma politização da existência, que, desconhecendo ao mesmo tempo a especificidade do Reino de Deus e a transcendência da pessoa, acaba sacralizando a política e abusando da religiosidade do povo em proveito de iniciativas revolucionárias.

18. É frequente dirigir aos defensores da « ortodoxia » a acusação de passividade, de indulgência ou de cumplicidade culpáveis frente a situações intoleráveis de injustiça e de regimes políticos que mantêm estas situações. A conversão espiritual, a intensidade do amor a Deus e ao próximo, o zelo pela justiça e pela paz, o sentido evangélico dos pobres e da pobreza, são exigidos a todos, especialmente aos pastores e aos responsáveis. A preocupação pela pureza da fé não subsiste sem a preocupação de dar a resposta de um testemunho eficaz de serviço ao próximo e, em especial, ao pobre e ao oprimido, através de uma vida teologal integral. Pelo testemunho de sua capacidade de amar, dinâmica e construtiva, os cristãos lançarão, sem dúvida, as bases desta « civilização do amor » de que falou, depois de Paulo VI, a Conferência de Puebla.[34] De resto, são numerosos os sacerdotes, religiosos ou leigos, que se consagram de um modo verdadeiramente evangélico à criação de uma sociedade justa.

CONCLUSÃO

As palavras de Paulo VI, na Profissão de fé do povo de Deus, exprimem, com meridiana clareza, a fé da Igreja, da qual ninguém pode afastar-se sem provocar, juntamente com a ruína espiritual, novas misérias e novas escravidões.

« Nós professamos que o Reino de Deus iniciado aqui na terra, na Igreja de Cristo, não é deste mundo, cuja figura passa, e que seu crescimento próprio não se pode confundir com o progresso da civilização, da ciência ou da técnica humanas, mas consiste em conhecer cada vez mais profundamente as insondáveis riquezas de Cristo, em esperar cada vez mais corajosamente os bens eternos, em responder cada vez mais ardentemente ao amor de Deus e em difundir cada vez mais amplamente a graça e a santidade entre os homens. Mas é este mesmo amor que leva a Igreja a preocupar-se constantemente com o bem temporal dos homens. Não cessando de lembrar a seus filhos que eles não têm aqui na terra uma morada permanente, anima-os também a contribuir, cada qual segundo a sua vocação e os meios de que dispõem, para o bem de sua cidade terrestre, a promover a justiça, a paz e a fraternidade entre os homens, a prodigalizar-se na ajuda aos irmãos, sobretudo aos mais pobres e mais infelizes. A intensa solicitude da Igreja, esposa de Cristo, pelas necessidades dos homens, suas alegrias e esperanças, seus sofrimentos e seus esforços, nada mais é do que seu grande desejo de lhes estar presente para os iluminar com a luz de Cristo e reuni-los todos nele, seu único Salvador. Esta solicitude não pode, em hipótese alguma, comportar que a própria Igreja se conforme às coisas deste mundo, nem que diminua o ardor da espera pelo seu Senhor e pelo Reino eterno ».[35]

O Sumo Pontífice João Paulo 11, no decorrer de uma Audiência concedida ao Cardeal Prefeito que subscreve este documento, aprovou a presente Instrução, deliberada em reunião ordinária da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, e ordenou que a mesma fosse publicada.

Roma, Sede da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, 6 de Agosto de 1984, na Festa da Transfiguração do Senhor.

Joseph Card. Ratzinger
Prefeito

SB Alberto Bovone
Arcebispo tit. de Cesárea de Numidia
Secretário


Notas

[1] Cf. Gaudium et spes, n. 4.

[2] Cf. Dei Verbum, n. 10.

[3] Cf. Gál 5, 1 ss.

[4] Cf. Êx 24.

[5] Cf. Jer 31, 31-34; Ez 36, 26 ss.

[6] Cf. Sof 3, 12 ss.

[7] Cf. Deut 10, 18-19.

[8] Cf. Lc 10, 25-27.

[9] Cf. 2 Cor 8, 9.

[10] Cf. Mt 25, 31-46; At 9, 4-5; Col 1, 24.

[11] Cf. Tg 5, 1 ss.

[12] Cf. 1 Cor 11, 17-34.

[13] Cf. Tg 2, 14-26.

[14] Cf. AAS 71, 1979, pp. 1144-1160.

[15] Cf. AAS 71, 1979, p. 196.

[16] Cf. Evangelii nuntiandi, nn. 25-33: AAS 68, 1976, pp. 23-28.

[17] Cf. Evangelii nuntiandi, n. 32: AAS 68, 1976, p. 27.

[18] Cf. AAS 71, 1979, pp. 188-196.

[19] Cf. Gaudium et spes, n. 39; Pio XI, Quadragesimo annoAAS 23, 1931, p. 207.

[20] Cf. nn. 1134-1165 e nn. 1166-1205.

[21] Cf. Doc. de Puebla, IV, 2.

[22] Paulo PP. VIOctogesima adveniens, n. 34: AAS 63, 1971, pp. 424-425.

[23] Cf. Lumen gentium, nn. 9-17.

[24] Cf. Gaudium et spes, n. 39.

[25] Cf. At 2, 36.

[26] Cf. 1 Cor 10, 1-2.

[27] Cf. Ef 2, 11-12.

[28] Cf. Doc. de Puebla, I, 2, n. 3. 3.

[29] Cf. Lc 10, 16.

[30] Cf. João Paulo PP. IIDiscurso na abertura da Conferência de PueblaAAS 71, 1979, pp. 188-186.

[31] Cf. João Paulo PP. IIDiscurso na Favela « Vidigal», no Rio de Janeiro, 2 de Julho de 1980: AAS 72, 1980, pp. 852-858.

[32] Cf. Doc. de Puebla, II, 2, n. 5. 4.

[33] Cf. Doc. de Puebla, IV, 3, n. 3. 3.

[34] Cf. Doc. de Puebla, IV, 2, n. 2. 4.

[35] Paulo PP. VIProfissão de Fé do Povo de Deus, 30 de Junho de 1968: AAS 60, 1968, pp. 443-444.


10- Conferência de Puebla

Este documento abaixo publicado em 1979 mostra a preferencia pelos pobres e pelos jovens. Mas estes últimos não tem recebido ênfase pela teologia da libertação:

Conferência de Puebla

IIIª CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO

Puebla de los Angeles, México, 27-1 a 13-2 de 1979 

Quarta Parte (IV)

IGREJA MISSIONÁRIA A SERVIÇO DA EVANGELIZAÇÃO NA AMÉRICA LATINA

Capítulo I Opção preferencial pelos pobres 

Capítulo II Opção preferencial pelos jovens

Capítulo III Ação da Igreja junto aos construtores da, sociedade pluralista na AL 

Capítulo IV Ação em prol da pessoa na sociedade nacional e internacional


1132. Os pobres e os jovens constituem, portanto, a riqueza e a esperança da Igreja na América, Latina, e sua evangelização é, por conseguinte, prioritária

CAPÍTULO II OPÇAO PREFERENCIAL PELOS JOVENS 

1166. Apresentar aos jovens o Cristo vivo, como único Salvador, para que, evangelizados, evangelizem e contribuam, como em resposta de amor a Cristo, para a libertação integral do homem e da sociedade, levando uma vida de comunhão e participação. 

2.1. Situação da juventude 

1167. Características da juventude: a juventude não é só um grupo de pessoas de idade cronológica. E também uma atitude frente à vida, numa etapa não definitiva, mas transitória. Possui traços muito característicos: 

1168. Um inconformismo que a tudo questiona.; um espírito de aventura que a leva a compromissos e situações radicais; uma capacidade criadora com respostas novas para o mundo em transformação, que aspira a sempre melhorar em sinal de esperança. Sua aspiração pessoal mais espontânea e forte é a liberdade, emancipada de qualquer tutela exterior. É sinal de alegria e felicidade. Muito sensível aos problemas sociais. Exige autenticidade e simplicidade, rejeitando com rebeldia uma sociedade invadida por hipocrisias e contravalores. 

1169. Este dinamismo a torna capaz de renovar “as culturas” que, doutra forma, envelheceriam. 347 Cf. Discurso Operários Monterrey. 

 A juventude no corpo social

 1170. O papel normal desempenhado pela juventude na sociedade é dinamizar o corpo social. Quando os adultos não são autênticos nem abertos para o diálogo com os jovens, impedem que o dinamismo criador do jovem faça progredir o corpo social. Ao perceberem que não são tomados a sério, os jovens se lançam por diversos caminhos: ou são perseguidos por diversas ideologias, especialmente as radicalizadas, já que, sendo sensíveis às mesmas por seu idealismo natural, nem sempre têm a suficiente preparação para um claro discernimento, ou mostram-se indiferentes para com o sistema vigente ou se acomodam a ele com dificuldade e perdem a capacidade dinamizadora. 

1171. O que mais desorienta o jovem é a ameaça à sua exigência de autenticidade por parte do meio adulto, em grande parte incoerente e manipulador e por parte do conflito de gerações, da civilização de consumo, duma certa pedagogia do instinto, da droga, do sexualismo, da tentação de ateísmo.

1172. Hoje em dia, a juventude é manipulada especialmente na área política e no emprego do “tempo livre”. Uma parte da juventude tem legítimas inquietações políticas e consciência de poder social. Sua falta de formação nesses campos e a ausência de assessoria equilibrada a levam a radicalizações ou frustrações. O jovem ocupa grande parte do seu “tempo livre” com o esporte e uso dos meios de comunicação social. Estes são, para alguns, instrumentos de educação e recreação sadia; para outros, elementos de alienação. 

1173. A família é o corpo social primário no qual se origina e se educa e juventude. Da sua estabilidade, tipo de relacionamento com a juventude, vivência e abertura aos seus valores depende em grande parte o fracasso ou êxito da realização desta juventude na sociedade ou na Igreja.348 

1174. A juventude feminina está passando por uma crise de identidade, por causa da confusão reinante acerca da missão da mulher hoje. Os elementos negativos referentes à libertação feminina e um certo machismo ainda existente impedem uma sadia promoção feminina, como parte indispensável da construção da sociedade. 

 348 Cf. João Paulo II, Homilia Puebla – AAS LXXI, p. 182. 282 


A juventude da América Latina 

1175. A juventude da América Latina não pode ser considerada em abstrato. Há diversidade de jovens, caracterizados por sua situação social ou pelas experiências sócio-políticas que vivem seus respectivos países. 

1176. Se observarmos a situação social, verificamos que, ao lado daqueles que, por sua condição econômica, se desenvolvem normalmente, há muitos jovens indígenas, camponeses, mineiros, pescadores e operários que, por sua pobreza, se vêem obrigados a trabalhar como adultos. Ao lado de jovens que vivem folgadamente, há estudantes, sobretudo de subúrbios, que já vivem na insegurança dum futuro emprego ou não encontram seu caminho por falta de orientação vocacional. 

1177. Por outro lado, é indubitável haver jovens que se sentiram frustrados pela falta de autenticidade de alguns líderes seus ou se sentiram enfastiados por uma civilização de consumo. Outros, pelo contrário, em resposta às múltiplas formas de egoísmo, desejam construir um mundo de paz, justiça e amor. Finalmente, comprovamos que não poucos descobriram a alegria da entrega a Cristo, não obstante as variadas e rudes exigências de sua cruz. Os jovens e a Igreja 

1178. A Igreja vê na juventude uma enorme força renovadora, símbolo da própria Igreja. E a Igreja faz isto não por tática mas por vocação, já que é “chamada à constante renovação de si mesma, isto é, a um incessante rejuvenescimento” (João Paulo II Alocução Juventude, 2 - AAS, LXXI, p. 218) . O serviço prestado com humildade à juventude deve fazer com que mude na Igreja qualquer atitude de desconfiança ou incoerência para com os jovens. 

1179. Atualmente, contudo, os jovens consideram a Igreja de diversas maneiras: uns a amam espontaneamente como ela é, sacramento de Cristo; outros a questionam para que seja autêntica; e não faltam os que procuram um Cristo vivo separado do seu corpo que é a Igreja. Há uma massa indiferente, passivamente acomodada à civilização de consumo ou outros sucedâneos, desinteressada da exigência evangélica. 

1180. Existem jovens socialmente muito inquietos, mas reprimidos pelos sistemas de governo; estes buscam a Igreja como espaço de liberdade para poderem expressar-se sem manipulações e protestar social e politicamente. Alguns, pelo contrário, pretendem utilizá-1a como instrumento de contestação. Finalmente, uma minoria muito ativa, influenciada por seu ambiente ou por ideologias materialistas e atéias, nega e combate o Evangelho. 

1181. Os jovens desejosos de se realizar na Igreja podem ' ficar frustrados por não encontrarem uma boa planificação e programação pastoral que corresponda à realidade histórica em que vivem. Igualmente sentem a falta de assessores preparados, embora em não poucos grupos e movimentos juvenis existam assessores competentes e abnegados. 2 - 2 . Critérios pastorais 

1182. Queremos dar uma resposta à situação da juventude, graças aos três critérios de verdade propostos por S. S. João Paulo II: verdade sobre Jesus Cristo, verdade sobre a missão da Igreja e verdade sobre o homem.349

 1183. Embora não se dê conta disso, a juventude vai ao encontro de um Messias, Cristo, o qual caminha em direção dos jovens.350 Somente ele torna o jovem verdadeiramente livre. Este é o Cristo que deve ser apresentado aos jovens como libertador integral351 que, pelo espírito doa bem-aventuranças, oferece a todo jovem a inserção num processo de constante conversão; compreende suas fraquezas e oferece-lhe um encontro muito pessoal com Ele e com a comunidade, nos sacramentos da reconciliação e da Eucaristia. O jovem deve experimentar Cristo como amigo pessoal que nunca falha, caminho de total realização. Com ele e pela lei do amor, o jovem caminha em direção do Pai comum e dos irmãos. Cem isto, sente-se verdadeiramente feliz. O jovem na Igreja

 1184. Os jovens devem sentir que são Igreja, experimentando-a como lugar de comunhão e participação. Por isso, a Igreja aceita suas críticas, por reconhecer-se limitada em seus membros, e os quer gradualmente responsáveis na sua construção até que os envie como testemunhas e missionários, especialmente à  grande massa juvenil. Nela, os jovens sentem-se povo novo, o povo das bem-aventuranças, sem outra segurança que a de Cristo; um povo dotado de coração de pobre, contemplativo, em atitude de escutar e discernir evangelicamente, construtor de paz, portador de alegria e de um projeto libertador integral em favor, sobretudo, de seus irmãos jovens. A Virgem Mãe bondosa, indefectível na fé, educa o jovem para ser Igreja. 

 349 Cf. Discurso Inaugural – AAS LXXI, p. 178. 

350 Cf. Paulo VI. 

351 Cf. 5,1.13 ; 4,26.31 ; 1Cor 7,22 ; 2Cor 3,17. 

1185. Assumindo as atitudes de Cristo, o jovem promove e defende a dignidade da pessoa humana. Em virtude do batismo, é filho do único Pai, irmão de todos os homens e contribui para a edificação da Igreja. Sente-se cada vez mais “cidadão universal” instrumento na construção da comunidade latinoamericana e universal. 

2.3. Opções pastorais 

Opção preferencial 

1186. A Igreja confia nos jovens.352 Eles são a sua esperança. A Igreja vê na juventude da América Latina um verdadeiro potencial e o futuro de sua evangelização. Por ser verdadeira dinamizadora do corpo social e especialmente do corpo eclesial, com vistas à sua missão evangelizadora no Continente.353

 1187. Por isso queremos oferecer uma linha pastoral global: desenvolver, de acordo com a pastoral diferencial e orgânica, uma pastoral de juventude que leve em conta a realidade social dos jovens de nosso continente; atenda ao aprofundamento e crescimento da fé para a comunhão com Deus e os homens; oriente a opção vocacional dos jovens; lhes ofereça elementos para se converterem em fatores de transformação e lhes proporcione cais eficazes para a participação ativa na Igreja e na transformação da sociedade.354 

352 Cf. EN 72. 

353 Cf. Med. Juventude 13. 

354 Cf. DT 770.

Aplicações concretas 

Comunhão e compromisso 

1188. A Igreja evangelizadora faz um veemente apelo para que os jovens nela  busquem o lugar de sua comunhão com Deus e os homens a fim de construir “a civilização do amor” e edificar a paz na justiça. Convida-os a que se comprometam eficazmente numa ação evangelizadora que não exclua ninguém, de acordo com a situação em que vivem, e tendo predileção pelos mais pobres. 

1189. A integração na Igreja será canalizada através de movimentos juvenis ou comunidades que devem estar integradas na pastoral de conjunto diocesana ou nacional, com projeções para uma integração latino-americana. Esta integração far-se-á especialmente por meio da: * pastoral familiar; * pastoral da Igreja diocesana e paroquial em seus diversos aspectos de catequese, educação, vocações, etc.; * inter-relacionamento dos diversos movimentos de juventude ou comunidades, considerando-lhes a situação concreta: estudantes secundários, universitários, operários, camponeses, que tem condicionamentos próprios e exigências diferentes em face do processo evangelizador e que, por isso, pedem uma pastoral específica. 

1190. Esta pastoral de movimentos e comunidades deve levar em conta os jovens numa inter-relação fecunda, já que os grupos devem ser fermento no conjunto e propiciar uma evangelização total. 

1191. Providencie-se um acolhimento e atenção aos jovens que, por diversos motivos, devem emigrar, temporária ou definitivamente, e que são vítimas da solidão, da falta de ambientação, da marginalização, etc. 

Formação e participação 

1192. A inserção na Igreja e a tarefa de compromisso efetivo na edificação de nova civilização do amor e da paz é muito exigente e requer profunda formação e participação responsável. Por este motivo: 

1193. A pastoral de juventude na linha da evangelização deve ser um verdadeiro processo de educação na fé, que leva à própria conversão e a um compromisso evangelizador. 

1194. O fundamento desta educação deve ser a apresentação ao jovem de Cristo vivo, Deus e homem, modelo de autenticidade, simplicidade e fraternidade; único que salva, libertando de todo pecado e de suas conseqüências e que compromete para a libertação ativa dos irmãos por meios não violentos. 

1195. A pastoral da juventude empenhar-se-á em que o jovem cresça numa espiritualidade autêntica e apostólica, fundada no espírito de oração e no conhecimento da Palavra de Deus e no amor filial a Maria Santíssima que, unindo-o a Cristo, o torne solidário com seus irmãos. 

1196. A pastoral da juventude deve ajudar também a formar os jovens de maneira gradual para a ação sócio-política e para as mudanças de estruturas, de menos humanas em mais humanas, segundo a Dou trina Social da Igreja. 

1197. Formar-se-á no jovem um sentido crítico frente aos meios de comunicação social e aos contravalores culturais que as diversas ideologias tentam transmitir-lhe, especialmente a liberal capitalista e a marxista, para que não seja por elas manipulado. 

1198. Usar-se-á uma linguagem simples e adaptada a uma pedagogia que tenha presente as diferenças psicológicas do homem e da mulher e se caracterize pela mútua confiança e respeito recíproco; numa conversão ao meio em que vive e atua, para centrar assim sua missão dinâmica evangelizadora.

1199. Estimule-se a capacidade criadora dos jovens, para que eles mesmos imaginem e descubram os meios mais diversos e aptos para tornar presente, de forma construtiva, a missão que exercem na sociedade e na Igreja. Para isso, lhes sejam facilitados os meios e áreas onde ponham em prática o seu compromisso. Recomenda-se a presença missionária dos jovens em lugares especialmente necessitados. 

1200. Procure-se dar aos jovens uma boa orientação espiritual a fim de que possam amadurecer a sua opção vocacional, quer leiga, quer religiosa ou sacerdotal.

 1201. Recomenda-se dar a maior importância a todos os meios que favoreçam a evangelização e o crescimento na fé: retiros, jornadas, encontros, cursilhos, convivências, etc. 

1202. Como tempo forte para o amadurecimento na fé que leva necessariamente a um compromisso apostólico - deve-se destacar a celebração consciente e ativa do sacramento da confirmação, precedida duma esmerada catequese e sempre de acordo com as diretrizes da Santa Sé e das Conferências Episcopais. 

1203. Deve-se procurar formar com prioridade animadores juvenis qualificados (sacerdotes, religiosos ou leigos) que sejam guias e amigos da juventude, conservando sua própria identidade e prestando este serviço com madureza humana e cristã. 

1204. A juventude não se pode considerar em abstrato, nem é um grupo isolado no corpo social. Por isso, ela requer uma pastoral articulada que permita uma comunicação efetiva entre os diversos períodos da juventude e uma continuidade de formação e compromisso depois, na idade adulta. 

1205. Seja a pastoral juvenil uma pastoral da alegria e da esperança, que transmita a mensagem alegre da salvação a um mundo muitas vezes triste, oprimido e desesperançado, em busca da sua libertação.355

355 Cf. João Paulo II, Alocução Juventude – AAS LXXI, p. 217.



11- CARTA DO PAPA JOÃO PAULO II
AOS BISPOS DA CONFERÊNCIA EPISCOPAL
DOS BISPOS DO BRASIL -1986
http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/letters/1986/documents/hf_jp-ii_let_19860409_conf-episcopale-brasile.html   consultado em 14/03/2021

5. Tendo diante dos olhos essas indeclináveis exigências do seu serviço episcopal, os Senhores tem-se esforçado, sobretudo nos últimos anos, por encontrar respostas justas aos desafios acima referidos, sempre presentes, eles também, ao seu espírito. A Santa Sé não tem deixado de acompanhá-los nestes esforços, como faz com todas as Igrejas. Manifestação e prova da atenção com que compartilha esses esforços, são os numerosos documentos publicados ultimamente, entre os quais as duas recentes Instruções emanadas pela Congregação para a Doutrina da Fé, com a minha explícita aprovação: uma, sobre alguns aspectos da teologia da libertação ; outra, sobre a liberdade crista e a libertação . Estas últimas, endereçadas à Igreja Universal, tem, para o Brasil, uma inegável relevância pastoral.

Na medida em que se empenha por encontrar aquelas respostas justas – penetradas de compreensão para com a rica experiência da Igreja neste País, tão eficazes e construtivas quanto possível e ao mesmo tempo consonantes e coerentes com os ensinamentos do Evangelho, da Tradição viva e do perene Magistério da Igreja – estamos convencidos, nós e os Senhores, de que a teologia da libertação é não só oportuna mas útil e necessária. Ela deve constituir uma nova etapa – em estreita conexão com as anteriores – daquela reflexão teológica iniciada com a Tradição apostólica e continuada com os grandes Padres e Doutores, com o Magistério ordinário e extraordinário e, na época mais recente, com o rico património da Doutrina Social da Igreja, expressa em documentos que vão da Rerum Novarum à Laborem Exercens.

Penso que, neste campo, a Igreja no Brasil possa desempenhar um papel importante e delicado ao mesmo tempo: o de criar espaço e condições para que se desenvolva, em perfeita sintonia com a fecunda doutrina contida nas duas citadas Instruções, uma reflexão teológica plenamente aderente ao constante ensinamento da Igreja em matéria social e, ao mesmo tempo, apta a inspirar uma práxis eficaz em favor da justiça social e da equidade, da salvaguarda dos direitos humanos, da construção de uma sociedade humana baseada na fraternidade e na concórdia, na verdade e na caridade. Deste modo se poderia romper a pretensa fatalidade dos sistemas – incapazes, um e outro de assegurar a libertação trazida por Jesus Cristo – o capitalismo desenfreado e o coletivismo ou capitalismo de Estado . Tal papel, se cumprido, será certamente um serviço que a Igreja pode prestar ao País e ao quase Continente latino-americano, como também a muitas outras regiões do mundo onde os mesmos desafios se apresentam com análoga gravidade.

Para cumprir esse papel é insubstituível a ação sábia e corajosa dos pastores, isto é, dos Senhores. Deus os ajude a velar incessantemente para que aquela correta e necessária teologia da libertação se desenvolva no Brasil e na América Latina, de modo homogéneo e não heterogéneo com relação à teologia de todos os tempos, em plena fidelidade à doutrina da Igreja, atenta a um amor preferencial não excludente nem exclusivo para com os pobres.

6. Neste ponto é indispensável ter presente a importante reflexão da Instrução Libertatis Conscientia sobre as duas dimensões constitutivas da libertação na sua concepção cristã: quer no nível da reflexão quer na sua práxis, a libertação é, antes de tudo, soteriológica (um aspecto da Salvação realizada por Jesus Cristo, Filho de Deus) e depois ético-social (ou ético-política). Reduzir uma dimensão à outra – suprimindo-as praticamente a ambas – ou antepor a segunda à primeira é subverter e desnaturar a verdadeira libertação crista

É dever dos Pastores, portanto, anunciar a todos os homens, sem ambiguidades, o mistério da libertação que se encerra na Cruz e na Ressurreição de Cristo. A Igreja de Jesus, nos nossos dias como em todos os tempos, no Brasil como em qualquer parte do mundo, conhece uma só sabedoria e uma só potência: a da Cruz que leva à Ressurreição . Os pobres deste País, que tem nos Senhores os seus Pastores, os pobres deste Continente são os primeiros a sentir urgente necessidade deste evangelho da libertação radical e integral. Sonegá-lo seria defraudá-los e desiludi-los.

Pôr outro lado, os Senhores – e com os Senhores toda a Igreja no Brasil – mostram-se prontos a empreender em seu setor próprio e na linha do próprio carisma, tudo aquilo que deriva, como consequência, da libertação soteriológica. É, aliás, o que a Igreja, desde os seus albores, sempre procurou fazer por meio de seus santos, seus mestres e seus pastores e por meio de seus fiéis engajados nas realidades temporais.

Permitam-me Irmãos no episcopado, que, com plena confiança, os convide a uma tarefa menos visível mas de alta relevância, além de profundamente conexa com nossa função episcopal: a de educar para a libertação, educando para a liberdade . Educar para a liberdade é infundir os critérios sem os quais essa liberdade se tornaria uma quimera, se não uma perigosa contrafaço. 12 ajudar a reconquistar a liberdade perdida ou a curar a liberdade, quando adulterada ou corrompida. Educadores na fé, como nos chama o Concílio Vaticano II, nossa tarefa consistirá também em educar para a liberdade.




12- Texto de Ratzinger antes da publciação de Libertatis Nuntius
EU VOS EXPLICO A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO- 1984
Cardeal Joseph Ratzinger 

Na época em que Ratzinger concedeu a entrevista a Vittorio Messori, posteriormente transformada em livro (A fé em Crise), a Instrução Libertatis Nuntius já estava escrita, mas ainda aguardava a sua publicação. Entretanto, no lugar desta, já havia sido publicada, em março de 1984, uma reflexão teológica pessoal do Cardeal sobre a TdL, suas “Observações Preliminares”, conhecida como "Eu vos explico a teologia da libertação".
Revista Pergunte e Responderemos ,n. 276, set-out, 1984, p.354-365)
MESSORI, Vittorio; RATZINGER, Joseph. A Fé em Crise?: O Cardeal Ratzinger se interroga. Trad.: Pe. Fernando José Guimarães. São Paulo: E.P.U., 1985. p. 136


Para esclarecer a minha tarefa e a minha intenção, com relação ao tema, parecem-me necessárias algumas observações preliminares:

1. A teologia da libertação é um fenômeno extraordinariamente complexo. É possível formar-se um conceito da teologia da libertação segundo o qual ela vai das posições mais radicalmente marxistas até aquelas que propõem o lugar apropriado da necessária responsabilidade do cristão para com os pobres e os oprimidos no contexto de uma carreta teologia eclesial, como fizeram os documentos do CELAM, de Medellín a Puebla.

 Neste nosso texto, usaremos o conceito “teologia da libertação” em sentido mais restrito: sentido que compreende apenas aqueles teólogos que, de algum modo, fizeram própria a opção fundamental marxista. Mesmo aqui existem, nos particulares, muitas diferenças que é impossível aprofundar nesta reflexão geral. Neste contexto posso apenas tentar pôr em evidência algumas linhas fundamentais que, sem desconhecer as diversas matrizes, são muito difundidas e exercem certa influência mesmo onde não existe teologia da libertação em sentido estrito.

2. Com a análise do fenômeno da teologia da libertação torna-se manifesto um perigo fundamental paro a fé da Igreja. Sem dúvida, é preciso ter presente que um erro não pode existir se não contém um núcleo de verdade. De fato, um erro é tanto mais perigoso quanto maior for a proporção do núcleo de verdade assumida. Além disso, o erro não se poderia apropriar daquela parte de verdade, se essa verdade fosse suficientemente vivida e testemunhada ali onde é o seu lugar, isto é, na fé da Igreja. Por isso, ao lado da demonstração do erro e do perigo da teologia da libertação, é preciso sempre acrescentar a pergunta: que verdade se esconde no erro e como recuperá-la plenamente?

3. A teologia da libertação é um fenômeno universal sob três pontos de vista:

a) Essa teologia não pretende constituir-se como um novo tratado teológico ao lado dos outros já existentes; não pretende, por exemplo, elaborar novos aspectos da ética social da Igreja. Ela se concebe, antes, como uma nova hermenêutica da fé cristã, quer dizer, como nova forma de compreensão e de realização do cristianismo na sua totalidade. Por isto mesmo, muda todas as formas da vida eclesial: a constituição eclesiástica, a liturgia, a catequese, as opções morais;

b) A teologia da libertação tem certamente o seu centro de gravidade na América Latina, mas não é, de modo algum, fenômeno exclusivamente latino-americano. Não se pode pensá-la sem a influência determinante de teólogos europeus e também norte-americanos. Além do mais, existe também na Índia, no Sri Lanka, nas Filipinas, em Taiwan, na África – embora nesta última esteja em primeiro plano a busca de uma “teologia africana”. A união dos teólogos do Terceiro Mundo é fortemente caracterizada pela atenção prestada aos temas da teologia da libertação;

c) A teologia da libertação supera os limites confessionais. Um dos mais conhecidos representantes da teologia da libertação, Hugo Assman, era sacerdote católico e ensina hoje como professor em uma Faculdade protestante, mas continua a se apresentar com a pretensão de estar acima das fronteiras confessionais. A teologia da libertação procura criar, já desde as suas premissas, uma nova universalidade em virtude da qual as separações clássicas da Igreja devem perder a sua importância.


I. O Conceito de Teologia da Libertação e os Pressupostos de sua Gênese

Essas observações preliminares, entretanto, já nos introduziram no núcleo do tema. Deixam aberta, porém, a questão principal: o que é propriamente a teologia da libertação? Em uma primeira tentativa de resposta, podemos dizer: a teologia da libertação pretende dar nova interpretação global do Cristianismo; explica o Cristianismo como uma práxis de libertação e pretende constituir-se, ela mesma, um guia para tal práxis. Mas assim como, segundo essa teologia, toda realidade é política, também a libertação é um conceito político e o guia rumo à libertação deve ser um guia para a ação política. “Nada resta fora do empenho político. Tudo existe com uma colocação política” (Gutierrez). 

Uma teologia que não seja “prática (o que significa dizer “essencialmente política”) é considerada “idealista” e condenada como irreal ou como veículo de conservação dos opressores no poder, Para um teólogo que tenha aprendido a sua teologia na tradição clássica e que tenha aceitado a sua vocação espiritual, é difícil imaginar que seriamente se possa esvaziar a realidade global do Cristianismo em um esquema de práxis sócio-político de libertação. A coisa é, entretanto, mais difícil, já que os teólogos da libertação continuam a usar grande parte da linguagem ascética e dogmática da Igreja em clave nova, de tal modo que aqueles que lêem e que escutam partindo de outra visão, podem ter a impressão de reencontrar o patrimônio antigo com o acréscimo apenas de algumas afirmações um pouco estranhas mas que, unidos a tanta religiosidade, não poderiam ser tão perigosas. Exatamente a radicalidade da teologia da libertação faz com que a sua gravidade não seja avaliada de modo suficiente; não entra em nenhum esquema de heresia até hoje existente, A sua colocação, já de partida, situa-se fora daquilo que pode ser colhido pelos tradicionais sistemas de discussão. Por isto tentarei abordar a orientação fundamental da teologia da libertação em duas etapas: primeiramente é necessário dizer algo acerca dos pressupostos que a tornaram possível; a seguir, desejo aprofundar alguns dos conceitos base que permitem conhecer algo da estrutura da teologia da libertação. Como se chegou a esta orientação completamente nova do pensamento teológico, que se exprime na teologia da libertação? Vejo principalmente três: fatores que a tornaram possível.

1. Após o Concílio, produziu-se uma situação teológica nova:

a) Surgiu a opinião de que a tradição teológica existente até então não era mais aceitável e, por conseguinte, se deviam procurar, o partir da Escritura e dos sinais dos tempos, orientações teológicas e espirituais totalmente novas;

b) A ideia de abertura ao mundo e de compromisso no mundo transformou-se freqüentemente em uma fé ingênua nas ciências; uma fé que acolheu as ciências humanas como um novo evangelho, sem querer, reconhecer os seus limites e problemas próprios. A psicologia, a sociologia e a interpretação marxista da história foram considerados como cientificamente seguras e, a seguir, como instâncias não mais contestáveis do pensamento cristão;

c) A critica da tradição por parte da exegese evangélica moderna, especialmente o de Bultmann e da sua escola, tornou-se uma, instância teológica inamovível que barrou a estrada às formas até então válidas da teologia, encorajando assim também novas construções.

2. A situação teológica assim transformada coincidiu com uma situação da historia espiritual também ela modificada. Ao final da fase de reconstrução após a segunda guerra mundial, fase que coincidiu pouco mais ou menos com o término do Concilio, produziu-se no mundo ocidental um sensível vazio de significado, ao qual a filosofia existencialista ainda em voga não estava em condições de dar alguma resposta. Nesta situação, as diferentes formas do neo-marxismo transformaram-se em um impulso moral e, ao mesmo tempo, em uma promessa de significado que parecia quase irresistível à juventude universal. O marxismo, com as acentuações religiosas de Bloch e as filosofias dotadas de rigor científico de Adorno, Harkheimer, Habernas e Marcuse, ofereceram modelos de ação com os quais alguns pensadores acreditavam poder responder ao desafio da miséria no mundo e, ao mesmo tempo, poder atualizar o sentido correto da mensagem bíblica.

3. O desafio moral da pobreza e da opressão não se podia mais ignorar, no momento em que a Europa e a América do Norte atingiam uma opulência até então desconhecida. Este desafio exigia evidentemente nova respostas, que não se podiam encontrar na tradição existente até aquele momento. A situação teológica e filosófica mudada convidava expressamente a buscar o resposta em um cristianismo que se deixasse regular pelos modelos da esperança, aparentemente fundados cientificamente, das filosofias marxistas,

II. A Estrutura Gnoseológica Fundamental do Teologia do Libertação

Esta resposta se apresenta totalmente diversa nas formas particulares de teologia da libertação, teologia da evolução, teologia política, etc. Não pode, pois, ser apresentada globalmente, Existem, no entanto, alguns conceitos fundamentais que se repetem continuamente nas diferentes variações e exprimem comuns intenções de fundo. Antes de passar aos conceitos fundamentais do conteúdo, é necessário fazer uma observação a cerca dos elementos estruturais do teologia da libertação. Paro tal, podemos retomar o que já afirmamos acerca da situação teológica mudada após o Concilio. 

Como já disse, leu-se a exegese de Bultmann e da sua escola como um enunciado da “ciência” sobre Jesus, ciência que devia obviamente ser considerado como válida. O “Jesus histórico” de Bultmann, entretanto, apresentava-se separado por um abismo (o próprio Bultmann fala de Graben, fosso) do Cristo da fé. Segundo Bultmann, Jesus pertence aos pressupostos do Novo Testamento, permanecendo. porém, encerrado no mundo do judaísmo. O resultado final dessa exegese consistiu em abalar a credibilidade histórica dos Evangelhos: o Cristo da tradição eclesial e o Jesus histórico apresentado pela ciência pertencem evidentemente a dois mundos diferentes. A figura de Jesus foi erradicada da sua colocação na tradição por ação da ciência, considerada como instância suprema. Deste modo, por um lado, a tradição pairava como algo de irreal no vazio, e, por outro, devia-se procurar para a figura de Jesus uma nova interpretação e um novo significado. Bultmann, portanto, adquiriu importância não tanto pelas suas afirmações positivas quanto pelo resultado negativo da sua crítica: o núcleo da fé, a cristologia, permaneceu aberto a novas interpretações porque os seus enunciados originais tinham desaparecido, na medida em que eram considerados historicamente insustentáveis. Ao mesmo tempo desautorizava-se o magistério da Igreja, na medida em que o consideravam preso a uma teoria cientificamente insustentável e, portanto, sem valor como instância cognoscitiva sobre Jesus. Os seus anunciados podiam ser considerados somente como definições frustadas de uma posição cientificamente superada.

Além disso, Bultmann foi importante para o desenvolvimento posterior de uma segunda palavra-chave. Ele trouxe à moda o antigo conceito de hermenêutica, conferindo-lhe uma dinâmica nova. Na palavra “hermenêutica” encontra expressão a ideia de que uma compreensão real dos textos históricos não acontece através de uma mera interpretação histórica, mas toda interpretação histórica inclui certas decisões preliminares. A hermenêutica tem a função de “atualizar”, em conexão com a determinação de dado histórico. Nela, segundo o terminologia clássica, se trata de uma “fusão dos horizontes” entre “então” [“naquele tempo”] e o “hoje”. Por conseguinte, ela suscita a pergunta: o que significa o então (“naquele tempo”), nos dias de hoje? O próprio Bultmann respondeu a esta pergunta servindo-se da filosofia de Heidegger e interpretou, deste modo, a Bíblia em sentido existencialista. Tal resposta, hoje, não apresenta mais algum interesse. Neste sentido Bultmann foi superado pela exegese atual. Mas permaneceu a separação entre a figura de Jesus da tradição clássica e a ideia de que se pode e se deve transferir essa figura ao presente, através de uma nova hermenêutica.

A este ponto, surge o segundo elemento, já mencionado, da nossa situação: o novo clima filosófico dos anos sessenta. A análise marxista da história e da sociedade foi considerada, nesse ínterim, a única dotada de caráter “científico”, isto significa que o mundo é interpretado à luz do esquema da luta de classes e que a única escolha possível é entre capitalismo e marxismo. Significa, além disso, que toda a realidade é política e que deve ser justificada politicamente. O conceito bíblico do “pobre” oferece o ponto de partida para a confusão entre a imagem bíblica da história e a dialética marxista; esse conceito é interpretado com a ideia de proletariado em sentido marxista e justifica também o marxismo como hermenêutica legítima para a compreensão da Bíblia. Ora, segundo essa compreensão, existem, e só podem existir, duas opções; por isso, contradizer essa interpretação da Bíblia não é senão expressão do esforço da classe dominante para conservar o próprio poder. Gutierrez afirma: “A luta de classes é um dado de fato e a neutralidade acerca desse ponto é absolutamente impossível”. A partir daí, torna-se impossível até a intervenção do magistério eclesiástico: no caso em que este se opusesse a tal interpretação do Cristianismo demonstraria apenas estar ao lado dos ricos e dos dominadores e contra os pobres e os sofredores, isto é, contra o próprio Jesus, e, na dialético da história, aliar-se-ia à parte negativo.

Essa decisão, aparentemente “científica” e “hermeneuticamente” indiscutível, determina por si o rumo da ulterior interpretação do Cristianismo, seja quatro às instâncias interpretativas, seja quatro aos conteúdos interpretados. No que diz respeito as instâncias interpretativas, os conceitos decisivos são: povo, comunidade, experiência, história. Se até então a Igreja, isto é, a Igreja Católica na Sua totalidade, que, transcendendo tempo e espaço, abrange os leigos (sensus fidei) e a hierarquia (magistério), fora a instância hermenêutica fundamental, hoje tornou-se a “comunidade” tal instância. A vivência e as experiências da comunidade determinam agora a compreensão e a interpretação da Escritura. De novo pode-se dizer, aparentemente de maneira muito científica, que a figura de Jesus, apresentada nos Evangelhos, constitui uma síntese de acontecimentos e interpretações da experiência de comunidades particulares, onde no entanto, a interpretação é muito mais importante do que o acontecimento, que, em si, não é mais determinável. Essa síntese original de acontecimento e interpretação pode ser dissolvida e reconstruída sempre de novo: a comunidade “interpreta” com a sua “experiência” os acontecimentos e encontra assim sua “práxis”. Esta ideia, podemos encontrá-la em modo um tanto diverso do conceito de povo, com o qual se transformou a acentuação conciliar da ideia de “povo de Deus” em mito marxista. As experiências do “povo” explicam a Escritura. Povo” torna-se assim um conceito aposto ao de “hierarquia” e em antítese a todas as instituições indicadas como forças da opressão.

Afinal, é “povo” quem participa da “luta de classes”; a “igreja popular” acontece em oposição à Igreja hierárquica. Por fim, o conceito de “história” torna-se instância hermenêutica decisiva. A opinião, considerada cientificamente segura e irrefutável, de que a Bíblia raciocine em termos exclusivamente de história da salvação, e, portanto de maneira antimetafísica, permite a fusão do horizonte bíblico com a ideia marxista da história que procede dialeticamente como autêntica portadora de salvação. A história é a autêntica revelação e, portanto a verdadeira instância hermenêutica da interpretação bíblica. Tal dialético é apoiado, algumas vezes, pela pneumatologia. Em todo caso, também esta última, no Magistério que insiste em verdades permanentes, vê uma instância inimiga do progresso, dado que pensa “metafisicamente” e assim contradiz a “história”. Pode-se dizer que o conceito de história absorve o conceito de Deus e de revelação. A “historicidade” da Bíblia deve justificar o seu papel absolutamente predominante e, portanto, deve legitimar, ao mesmo tempo, a passagem para a filosofia materialista-marxista, na qual a história assumiu a função de Deus.

III. Conceitos fundamentais da Teologia da Libertação

Com isto, chegamos aos conceitos fundamentais do conteúdo da nova interpretação do Cristianismo. Uma vez que os contextos nos quais aparecem os diversos conceitos são diferentes, gostaria de citar alguns deles, sem a pretensão de esquematizá-los. Comecemos pela nova interpretação da fé, da esperança e da caridade. Com relação a fé, por exemplo, J. Sobrinho afirma: a experiência que Jesus tem de Deus é radicalmente histórica. “A sua fé converte-se em fidelidade”. Por isso, Sobrinho substitui fundamentalmente a fé pela “fidelidade à história” (fidelidad a la historia, 143-144). Jesus é fiel à profunda convicção de que o mistério da vida do homem … é realmente o último … (144). Aqui produz-se aquela fusão entre Deus e história que dá a Sobrinho a possibilidade de conservar para Jesus a fórmula de Calcedônia, ainda que com um sentido completamente mudado; pode-se ver como os critérios clássicos da ortodoxia não são aplicáveis à análise dessa teologia, Ignacio Ellacuria, na capa do livro sobre este assunto, afirma: Sobrinho “diz de novo … que Jesus é Deus, acrescentando, porém, imediatamente, que o Deus verdadeiro é somente aquele que se revela historicamente em Jesus e nos pobres, que continuam a sua presença. Somente quem mantém unidas essas duas afirmações, é ortodoxo…”

A esperança é interpretada como “confiança no futuro” e como trabalho pelo futuro; com isso elo é subordinado novamente ao predomínio da história das classes. “Amor” consiste na “opção pelos pobres”, isto é, coincide com a opção pela luta de classes. Os teólogos da libertação sublinham com força, diante do “falso universalismo”, a parcialidade e o cárater partidário da opção cristã; tomar partido é, segundo eles, requisito fundamental de uma correta hermenêutica dos testemunhos bíblicos. Na minha opinião, aqui se pode reconhecer muito claramente a mistura entre uma verdade fundamental do Cristianismo e uma opção fundamental não cristã, que torna o conjunto tão sedutor: o sermão da montanha é, na verdade, a escolha por parte de Deus a favor dos pobres. Mas a interpretação dos pobres no sentido da dialética marxista da história e a interpretação da escolha partidária no sentido da luta de classes é um salto “eis allo genos” (grego: para outro gênero), no qual as coisas contrárias se apresentam como idênticas.

O conceito fundamental da pregação de Jesus é o de “reino de Deus”. Este conceito encontra-se também no centro das teologia da libertação, lido porém no contexto da hermenêutica marxista. Segundo J. Sobrinho, o reino não deve ser compreendido espiritualmente, nem universalmente, no sentido de uma reserva escatologicamente abstrata. Deve ser compreendido em forma partidária e voltado para a práxis. Somente a partir da práxis de Jesus, e não teoricamente, é possível definir o que seria o reino: trabalhar na realidade histórica que nos circunda para transformá-la no reino (166). Aqui ocorre mencionar também uma ideia fundamental de certa teologia pós-conciliar que impulsionou nessa direção. Muitos apregoaram que, segundo o Concílio, se deveriam superar todas as formas de dualismo: o dualismo de corpo e alma, de natural e sobrenatural, de imanência e transcendência, de presente e futuro. Após o desmantelamento desses dualismos, resta apenas a possibilidade de trabalhar por um reino que se realize nesta história e em sua realidade político-econômica.

Mas justamente dessa forma deixou-se de trabalhar pelo homem de hoje e se começou a destruir o presente, a favor de um futuro hipotético: assim produziu-se imediatamente o verdadeiro dualismo.

Neste contexto gostaria de mencionar também a interpretação, impressionante e definitivamente espantosa, que Sobrinho dá da morte e da ressurreição. Antes do mais, ele estabelece, contra as concepções universalistas, que a ressurreição é, em primeiro lugar, uma esperança para aqueles que são crucificados; estes constituem a maioria dos homens: todos aqueles milhões aos quais a injustiça estrutural se impõe como uma lenta crucifixão (176 e seguintes). O crente, no entanto, participa também do senhorio de Jesus sobre a história, através da edificação do reino, isto é, na luta pela justiça e pela libertação integral, na transformação das estruturas injustas em estruturas mais humanas. Esse senhorio sobre a história é exercitado ao se repetir o gesto de Deus que ressuscita Jesus, isto é, dando novamente vida aos crucificados da história (181). O homem assumiu o gesto de Deus e aqui a transformação total da mensagem bíblica se manifesta de maneiro quase trágica, se se pensa em como essa tentativa de imitação de Deus se desenvolveu e se desenvolve ainda.

Gostaria de citar apenas alguns outros conceitos: o êxodo se transforma em uma imagem central da história da salvação; o mistério pascal é entendido como um símbolo revolucionário e, portanto, a Eucaristia é interpretada como uma festa de libertação no sentido de uma esperança político-messiânica e da sua práxis. A palavra redenção é substituída geralmente por libertação, a qual, por sua vez, é compreendida, no contexto da história e da luta de classes, como processo de libertação que avança; por fim, é fundamental também a acentuação da práxis: a verdade não deve ser compreendida em sentido metafísico; trata-se de “idealismo”. A verdade realiza-se na história e na práxis. A ação é a verdade. Por conseguinte, também as ideias que se usam para ação, em última instância são intercambiáveis. A única coisa decisiva é a práxis. A práxis torna-se, assim, a única e verdadeira ortodoxia. Desta forma, justifica-se um enorme afastamento dos textos bíblicos: a crítica histórica liberta da interpretação tradicional, que aparece como não científica. Com relação à tradição, atribui-se importância ao máximo rigor científico na linha de Bultmann. Mas os conteúdos da Bíblia, determinados historicamente, não podem, por sua vez, ser vinculantes de modo absoluto. O instrumento para a interpretação não é, em última análise, a pesquisa histórica, mas, sim, a hermenêutica da história, experimentada na comunidade, isto é, nos grupos políticos, sobretudo dado que a maior parte dos próprios conteúdos bíblicos deve ser considerada como produto de tal hermenêutica comunitária.

Quando se tenta fazer um julgamento geral, deve-se dizer que, quando alguém procura compreender as opções fundamentais da teologia da libertação não pode negar que o conjunto contém uma lógica quase incontestável. Com as premissas da critica bíblica e da hermenêutica fundada na experiência, de um lado, e da análise marxista da história, de outro, conseguiu-se criar uma visão de conjunto do cristianismo que parece responder plenamente tanto às exigências da ciência, quanto aos desafios morais dos nossos tempos. E, portanto, impõe-se aos homens de modo imediato a tarefa de fazer do Cristianismo um instrumento da transformação concreta do mundo, o que pareceria uni-lo a todas as forças progressistas da nossa época. Pode-se, pois, compreender como esta nova interpretação do Cristianismo atraia sempre mais teólogos, sacerdotes e religiosos, especialmente no contexto dos problemas do terceiro mundo. Subtrair-se a ela deve necessariamente aparecer aos olhos deles como uma evasão da realidade, como uma renúncia à razão e à moral. Porém, de outra parte, quando se pensa o quanto seja radical a interpretação do Cristianismo que dela deriva, torna-se ainda mais urgente o problema do que se possa e se deva fazer frente a ela.

À guisa de comentário, parece oportuno salientar os seguintes pontos:

1. A Teologia da Libertação não é um novo tratado teológico ao lado de outros já existentes, mas é uma nova interpretação do Cristianismo, que revira radicalmente as verdades da fé, a constituição da Igreja, a Liturgia, a Catequética e as opções morais.

2. Todos os valores e toda a realidade são considerados do ponto de vista político. Uma teologia que não seja essencialmente política, é encarada como fator de conservação dos apressares no poder.

3. A dificuldade de se perceber esse caráter subversivo da Teologia da Libertação está, em grande parte, no fato de que os seus arautos continuam a usar a linguagem ascética e dogmática da Igreja, embora em chave nova. Isto dá aos observadores a impressão de que estão diante do patrimônio da fé acrescido de algumas afirmações religiosas que não podem ser perigosas.

4. A gravidade da Teologia da Libertação não é suficientemente avaliada; não entra em nenhum esquema de heresia até hoje existente.

5. O cristão não pode ser, de forma alguma, insensível à miséria dos povos do Terceiro Mundo. Todavia, para acudir cristãmente a tal situação, não lhe é necessário adotar um sistema de pensamento que é anticristão como a Teologia da Libertação. Existe a Doutrina Social da Igreja, desenvolvida pelos Papas desde Leão XIII até João Paulo II de maneira cada vez mais incisiva e penetrante. Se fosse posta em prática, eliminaria graves males de que sofrem os homens, sem disseminar o ódio e a luta de classes.



13- Discurso João Paulo II sobre invasão de terras:


1 –  DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II AOS BISPOS DO BRASIL DO REGIONAL SUL I
EM VISITA "AD LIMINA APOSTOLORUM" Terça-feira, 21 de Março de 1995
 

Não se pode tratar com superficialidade o tema da ocupação da terra e da sua propriedade. Não basta dar terra a quem quer trabalhar. O importante é garantir o acesso à terra a quem quer e tem efetivamente condições de fazê-la produzir, quando ela está ociosa e improdutiva (cf. Homilia, Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XIV/2 [1991] 844; Encíclica Mater et Magistra, 134-136). Ocorre, para tal fim, a colaboração esclarecida e permanente com o poder público a quem cabe a condução do processo para a implementação de uma nova política fundiária que melhore a distribuição de terras e crie condições efetivas de um trabalho produtivo e compensador para o produtor rural e o homem do campo. Por outro lado, é necessário recordar a doutrina tradicional de que a posse da terra “é ilegítima quando não é valorizada ou quando serve para impedir o trabalho dos outros, visando somente obter um ganho que não provém da expansão global do trabalho humano e da riqueza social, mas antes de sua repressão, da exploração ilícita, da especulação e da ruptura da solidariedade no mundo do trabalho” (Centesimus Annus 43). Mas recordo, igualmente, as palavras do meu predecessor Leão XIII quando ensina que “nem a justiça, nem o bem comum consentem danificar alguém ou invadir a sua propriedade sob nenhum pretexto”(Rerum Novarum, 30). A Igreja não pode estimular, inspirar ou apoiar as iniciativas ou movimentos de ocupação de terras, quer por invasões pelo uso da força, quer pela penetração sorrateira das propriedades agrícolas. http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/speeches/1995/march/documents/hf_jp-ii_spe_19950321_brasile-ad-limina.html




Referências Bibliográficas:


Estão no corpo do texto
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