"Teologia da libertação , movimento religioso surgido no catolicismo romano do final do século 20 e centrado na América Latina . Procurou aplicar a fé religiosa ajudando os pobres e oprimidos por meio do envolvimento em assuntos políticos e cívicos. Enfatizou tanto o aumento da consciência das estruturas socioeconômicas “pecaminosas” que causam desigualdades sociais, quanto a participação ativa na mudança dessas estruturas.
O nascimento do movimento de teologia da libertação costuma ser datado da segunda Conferência Episcopal Latino-Americana, realizada em Medellín , Colômbia , em 1968. Nessa conferência, os bispos presentes publicaram um documento afirmando os direitos dos pobres e afirmando que as nações industrializadas enriqueceram às custas dos países em desenvolvimento. O texto seminal do movimento , Teología de la liberación (1971;A Teologia da Libertação ), foi escrito por Gustavo Gutiérrez , sacerdote e teólogo peruano. Outros líderes do movimento incluíram o padre brasileiro nascido na Bélgica José Comblin, Arcebispo Óscar Romero de El Salvador , teólogo brasileiroLeonardo Boff, estudioso jesuíta Jon Sobrino e arcebispoHelder Câmara do Brasil .
O movimento da teologia da libertação ganhou força na América Latina durante os anos 1970. Por causa de sua insistência de que o ministério deve incluir o envolvimento na luta política dos pobres contra as elites ricas, os teólogos da libertação foram frequentemente criticados - tanto formalmente, de dentro da Igreja Católica Romana, quanto informalmente - como fornecedores ingênuos do marxismo e defensores do ativismo social de esquerda . Na década de 1990, o Vaticano , sob o papa João Paulo II começou a refrear a influência do movimento com a nomeação de prelados conservadores no Brasil e em outras partes da América Latina.
https://www.britannica.com/topic/liberation-theology
2- Influencia da Teologia da Libertação no PT, CUT, JUC, JOC, MST
"A teologia da libertação é um conjunto de escritos publicados a partir de 1970 por uma série de autores, tais como Leonardo e Clodovis Boff, Hugo Assmann, Carlos Mesters, frei Betto, Jung Mo Sung e muitos outros.
Mas esse corpo de textos — parte de um movimento teológico latino-americano, representado por pensadores como Gustavo Gutierrez, Enrique Dussel, Jon Sobrino, Jorge Pixley, Ignacio Ellacuría, Pablo Richards — é apenas a ponta visível do iceberg, a expressão cultural de um vasto movimento social que aparece no Brasil desde o começo dos anos 60 — bem antes da aparição dos primeiros livros da nova teologia. Esse movimento inclui setores significativos do clero — padres, freiras, ordens religiosas, bispos —, dos movi mentos religiosos leigos, como a Ação Católica, a Juventude Uni versitária Católica (JUC) e a Juventude Operária Católica (JOC), das comissões pastorais, como a Justiça e Paz, a Pastoral da Terra e a Pastoral Operária, e das comunidades eclesiais de base (CEBs).
se identifica com os mecanismos da Santa Inquisição, o marxismo não pode ser assimilado aos “socialismos” vigentes, que “não representam nenhuma alternativa desejável por sua tirania burocrática e pelo afogamento das liberdades individuais”. O ideário socialista pode e deve se historizar de outras formas.15
Num balanço escrito em 1989, Boff insiste que o teólogo tem tudo a ganhar em uma confrontação com o marxismo, em suas várias correntes. O marxismo lhe transmite um olhar agudo, um espírito crítico e um compromisso solidário com a causa dos po bres; ele lhe oferece conceitos para a análise da história e da estru tura social, assim como uma visão orgânica e sistemática, em con traposição à fragmentação da perspectiva liberal-burguesa.16 História do marxismo no Brasil – volume 6 Marcelo Ridenti e Daniel Aarão Reis (orgs.). São Paulo: Editora da Unicamp, 2007, p.P. 420
E preciso vencer o capitalismo. E ele é o mal maior, o pecado acumulado, a raiz estragada, a árvore que produz esses frutos que nós conhecemos: a pobreza, a fome, a doença e a morte da grande maioria. Para isso é preciso que a propriedade dos meios de produção (das fábricas, da terra, do comércio, dos bancos, fontes de crédito) seja superada. Enquanto uns poucos são os donos desses lugares e meios de trabalho, a grande maioria do povo está sendo usada e não tem vez. A grande maioria trabalha para enriquecer uns poucos e estes enriquecerão às custas da miséria da maioria.26
Marx não foi apenas um analista do capitalismo e um arquiteto do socialismo. Ele alimentou também uma perspectiva fílosofante [...] que viu dimensões fundamentais da construção social da realidade, de uma forma processual e flexível (dialética). [...] Da mesma forma a categoria “classe social”: numa sociedade de classes e não mais de ordens, como é a nossa, a categoria “classe” é imprescindível para se compreender a organização social e o conflito de interesses. Abandoná-la seria empobrecer nossa compreensão em detrimento do interesse dos mais fracos.
Ao mesmo tempo, Boff argumenta em favor da integração da perspectiva ecológica:
A reflexão ecológica enriqueceu o paradigma marxista em alguns passos, a ponto de alguns analistas falarem de uma segunda crítica da economia política, ao incorporar a natureza não como fator extrínseco mas intrínseco em todo o processo produtivo e na constituição das forças produtivas. [...] A consciência ecológica convida-nos a tomar certa distância com referência ao otimismo marxiano quanto ao “desenvolvimento das forças produtivas”. Para evitar que se transformem em forças destrutivas, é necessário “privilegiar aquelas forças que são renováveis”.33 História do marxismo no Brasil – volume 6 Marcelo Ridenti e Daniel Aarão Reis (orgs.). São Paulo: Editora da Unicamp, 2007, p. 431,432
SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ
INSTRUÇÃO
SOBRE ALGUNS ASPECTOS
DA « TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO » libertati nuntius
O Sumo Pontífice João Paulo II, no decorrer de uma Audiência concedida ao Cardeal Prefeito que subscreve este documento, aprovou a presente Instrução, deliberada em reunião ordinária da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, e ordenou que a mesma fosse publicada.
Roma, Sede da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, 6 de Agosto de 1984, na Festa da Transfiguração do Senhor.
Joseph Card. Ratzinger
Prefeito
SB Alberto Bovone
Arcebispo tit. de Cesárea de Numidia
Secretário
III - A LIBERTAÇÃO, TEMA CRISTÃO
1. Considerada em si mesma, a aspiração pela libertação não pode deixar de encontrar eco amplo e fraterno no coração e no espírito dos cristãos.
2. Assim, em consonância com esta aspiração, nasceu o movimento teológico e pastoral conhecido pelo nome de « teologia da libertação »: num primeiro momento nos países da América Latina, marcados pela herança religiosa e cultural do cristianismo; em seguida, nas outras regiões do Terceiro Mundo, bem como em alguns ambientes dos países industrializados.
3. A expressão « teologia da libertação » designa primeiramente uma preocupação privilegiada, geradora de compromisso pela justiça, voltada para os pobres e para as vítimas da opressão. A partir desta abordagem podem-se distinguir diversas maneiras, frequentemente inconciliáveis, de conceber a significação cristã da pobreza e o tipo de compromisso pela justiça que ela exige. Como todo movimento de ideias, as « teologias da libertação » englobam posições teológicas diversificadas; suas fronteiras doutrinais são mal definidas....
IV - FUNDAMENTOS BÍBLICOS
3 As « teologias da libertação » recorrem amplamente à narração do Livro do Êxodo. Este constitui, de fato, o acontecimento fundamental na formação do Povo eleito. É preciso não perder de vista, contudo, que a significação específica do acontecimento provém de sua finalidade, já que esta libertação está orientada para a constituição do povo de Deus e para o culto da Aliança celebrado no Monte Sinai.[4] Por isso a libertação do Êxodo não pode ser reduzida a uma libertação de natureza prevalentemente ou exclusivamente política. É significativo, de resto, que o termo libertação seja ás vezes substituído na Sagrada Escritura pelo outro, muito semelhante, de redenção...
5. As múltiplas angústias e desgraças experimentadas pelo homem fiel ao Deus da Aliança servem de tema para diversos salmos: lamentações, pedidos de socorro, ações de graças referem-se à salvação religiosa e à libertação. Neste contexto, a desgraça não se identifica pura e simplesmente com uma condição social de miséria ou com a sorte de quem sofre opressão política. Ela inclui também a hostilidade dos inimigos, a injustiça, a morte e a culpa. Os salmos nos remetem a uma experiência religiosa essencial: somente de Deus se espera a salvação e o remédio. Deus, e não o homem, tem o poder de mudar as situações de angústia. Assim, os « pobres do Senhor » vivem numa dependência total e confiante na providência amorosa de Deus.[6] Aliás, durante toda a travessia do deserto, o Senhor nunca deixou de prover à libertação e à purificação espirituais de seu povo.
6. No Antigo Testamento, os profetas, desde Amos, não cessam de recordar, com particular vigor, as exigências da justiça e da solidariedade e de formular um juizo extremamente severo sobre os ricos que oprimem o pobre. Tomam a defesa da viúva e do órfão. Proferem ameaças contra os poderosos: a acumulação de iniquidades acarretará necessariamente terríveis castigos. Isto porque não se concebe a fidelidade à Aliança sem a prática da justiça. A justiça em relação a Deus e a justiça em relação aos homens são inseparáveis. Deus é o defensor e o libertador do pobre.
7. Semelhantes exigências encontram-se também no Novo Testamento. Ali são até radicalizadas, como demonstra o discurso das Bem-aventuranças. Conversão e renovação devem operar-se no mais íntimo do coração.
8. Já anunciado no Antigo Testamento, o mandamento do amor fraterno estendido a todos os homens constitui agora a suprema norma da vida social.[7] Não há discriminações ou limites que possam opor-se ao reconhecimento de todo e qualquer homem como o próximo.[8]...
12. A Revelação do Novo Testamento nos ensina que o pecado é o mal mais profundo, que atinge o homem no cerne da sua personalidade. A primeira libertação, ponto de referência para as demais, é a do pecado.
13. Se o Novo Testamento se abstém de exigir previamente, como pressuposto para a conquista desta liberdade, uma mudança da condição política e social, é sem dúvida, para salientar o caráter radical da emancipação trazida por Cristo, oferecida a todos os homens, sejam eles livres ou escravos politicamente. Contudo a Carta a Filêmon mostra que a nova liberdade, trazida pela graça de Cristo, deve necessariamente ter repercussão também no campo social.
14. Não se pode portanto restringir o campo do pecado, cujo primeiro efeito é o de introduzir a desordem na relação entre o homem e Deus, àquilo que se denomina « pecado social ». Na verdade, só uma adequada doutrina sobre o pecado permitirá insistir sobre a gravidade de seus efeitos sociais.
15. Não se pode tampouco situar o mal unicamente ou principalmente nas « estruturas » económicas, sociais ou políticas, como se todos os outros males derivassem destas estruturas como de sua causa: neste caso a criação de um « homem novo » dependeria da instauração de estruturas económicas e socio-políticas diferentes. Há, certamente, estruturas iníquas e geradoras de iniquidades, e é preciso ter a coragem de mudá-las. Fruto da ação do homem, as estruturas boas ou más são consequências antes de serem causas. A raiz do mal se encontra pois nas pessoas livres e responsáveis, que devem ser convertidas pela graça de Jesus Cristo, para viverem e agirem como criaturas novas, no amor ao próximo, na busca eficaz da justiça, do auto-domínio e do exercício das virtudes.[13]
Ao estabelecer como primeiro imperativo a revolução radical das relações sociais e ao criticar, a partir desta posição, a busca da perfeição pessoal, envereda-se pelo caminho da negação do sentido da pessoa e de sua transcendência, e destroem-se a ética e o seu fundamento, que é o caráter absoluto da distinção entre o bem e o mal. Ademais, sendo a caridade o princípio da autêntica perfeição, esta não pode ser concebida sem abertura aos outros e sem espírito de serviço....
VI - UMA NOVA INTERPRETAÇÃO DO CRISTIANISMO...
3. O sentimento angustiante da urgência dos problemas não pode levar a perder de vista o essencial, nem fazer esquecer a resposta de Jesus ao Tentador (Mt 4, 4): « Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus » (Dt 8, 3). Assim, sucede que alguns, diante da urgência de repartir o pão, são tentados a colocar entre parênteses e a adiar para amanhã a evangelização: primeiro o pão, a Palavra mais tarde. É um erro fatal separar as duas coisas, até chegar a opô-las. O senso cristão, aliás, espontaneamente sugere a muitos que façam uma e outra.[19]
4. A alguns parece até que a luta necessária para obter justiça e liberdade humanas, entendidas no sentido económico e político, constitua o essencial e a totalidade da salvação. Para estes, o Evangelho se reduz a um evangelho puramente terrestre.
5. É em relação à opção preferencial pelos pobres, reafirmada com vigor e sem meios termos, após Medellin, na Conferência de Puebla[20] de um lado, e à tentação de reduzir o Evangelho da salvação a um evangelho terrestre, de outro lado, que se situam as diversas teologias da libertação.
6. Lembremos que a opção preferencial, definida em Puebla, é dupla: pelos pobres e pelos jovens.[21] É significativo que a opção pela juventude seja, de maneira geral, totalmente silenciada.
7. Dissemos acima (cf. IV, 1) que existe uma autêntica « teologia da libertação », aquela que lança raízes na Palavra de Deus, devidamente interpretada.
8. Mas sob um ponto de vista descritivo, convém falar das teologias da libertação, pois a expressão abrange posições teológicas, ou até mesmo ideológicas, não apenas diferentes, mas até, muitas vezes, incompatíveis entre si.
9. No presente documento tratar-se-á somente das produções daquela corrente de pensamento que, sob o nome de « teologia da libertação », propõem uma interpretação inovadora do conteúdo da fé e da existência cristã, interpretação que se afasta gravemente da fé da Igreja, mais ainda, constitui uma negação prática dessa fé.
10. Conceitos tomados por empréstimo, de maneira a-crítica, à ideologia marxista e o recurso a teses de uma hermenêutica bíblica marcada pelo racionalismo encontram-se na raiz da nova interpretação, que vem corromper o que havia de autêntico no generoso empenho inicial em favor dos pobres.
VII - A ANÁLISE MARXISTA
1. A impaciência e o desejo de ser eficazes levaram alguns cristãos, perdida a confiança em qualquer outro método, a voltarem-se para aquilo que chamam de « análise marxista ».
2. Seu raciocínio é o seguinte: uma situação intolerável e explosiva exige uma ação eficaz que não pode mais ser adiada. Uma ação eficaz supõe uma análise científica das causas estruturais da miséria. Ora, o marxismo aperfeiçoou um instrumental para semelhante análise. Bastará pois aplicá-lo à situação do Terceiro Mundo e especialmente à situação da América Latina.
3. Que o conhecimento científico da situação e dos possíveis caminhos de transformação social seja o pressuposto de uma ação capaz de levar aos objetivos prefixados, é evidente. Vai nisto um sinal de seriedade no compromisso.
4. O termo « científico », porém, exerce uma fascinação quase mítica; nem tudo o que ostenta a etiqueta de científico o é necessariamente. Por isso tomar emprestado um método de abordagem da realidade é algo que deve ser precedido de um exame crítico de natureza epistemológica. Ora, este prévio exame crítico falta a várias « teologias da libertação ».
5. Nas ciências humanas e sociais, convém estar atento antes de tudo à pluralidade de métodos e de pontos de vista, cada um dos quais põe em evidência um só aspecto da realidade; esta em virtude de sua complexidade, escapa a uma explicação unitária e unívoca.
6. No caso do marxismo, tal como se pretende utilizar na conjuntura de que falamos, tanto mais se impõe a crítica prévia, quanto o pensamento de Marx constitui uma concepção totalizante do mundo, na qual numerosos dados de observação e de análise descritiva são integrados numa estrutura filosófico-ideológica, que determina a significação e a importância relativa que se lhes atribui. Os a priori ideológicos são pressupostos para a leitura da realidade social. Assim, a dissociação dos elementos heterogéneos que compõem este amálgama epistemologicamente híbrido torna-se impossível, de modo que, acreditando aceitar somente o que se apresenta como análise, se é forçado a aceitar, ao mesmo tempo, a ideologia. Por isso não é raro que sejam os aspectos ideológicos que predominem nos empréstimos que diversos « teólogos da libertação » pedem aos autores marxistas.
7. A advertência de Paulo VI continua ainda hoje plenamente atual: através do marxismo, tal como è vivido concretamente, podem-se distinguir diversos aspectos e diversas questões propostas à reflexão e à ação dos cristãos. Entretanto, « seria ilusório e perigoso chegar ao ponto de esquecer o vínculo estreito que os liga radicalmente, aceitar os elementos da análise marxista sem reconhecer suas relações com a ideologia, entrar na prática da luta de classes e de sua interpretação marxista sem tentar perceber o tipo de sociedade totalitária à qual este processo conduz ».[22]
8. É verdade que desde as origens, mais acentuadamente porém nestes últimos anos, o pensamento marxista se diversificou, dando origem a diversas correntes que divergem consideravelmente entre si. Na medida, porém, em que se mantêm verdadeiramente marxistas, estas correntes continuam a estar vinculadas a um certo número de teses fundamentais que não são compatíveis com a concepção cristã do homem e da sociedade. Neste contexto, certas fórmulas não são neutras, mas conservam a significação que receberam na doutrina marxista original. É o que acontece com a « luta de classes ». Esta expressão continua impregnada da interpretação que Marx lhe deu e não poderia, por conseguinte, ser considerada, como um equivalente, de caráter empírico, da expressão « conflito social agudo ». Aqueles que se servem de semelhantes fórmulas, pretendendo reter apenas certos elementos da análise marxista,, que de resto seria rejeitada na sua globalidade, alimentam pelo menos um grave mal-entendido no espírito de seus leitores.
9. Lembremos que o ateísmo e a negação da pessoa humana,, de sua liberdade e de seus direitos, encontram-se no centro da concepção marxista. Esta contém de fato erros que ameaçam diretamente as verdades de fé sobre o destino eterno das pessoas. Ainda mais: querer integrar na teologia uma « análise » cujos critérios de interpretação dependam desta concepção ateia, significa embrenhar-se em desastrosas contradições. O desconhecimento da natureza espiritual da pessoa, aliás, leva a subordiná-la totalmente à coletividade e deste modo a negar os princípios de uma vida social e política em conformidade com a dignidade humana,
10. O exame crítico dos métodos de análise tomados de outras disciplinas impõe-se de maneira particular ao teólogo. É a luz da fé que fornece à teologia seus princípios. Por isso a utilização, por parte dos teólogos, de elementos filosóficos ou das ciências humanas tem um valor « instrumental » e deve ser objeto de um discernimento crítico de natureza teológica. Em outras palavras, o critério final e decisivo da verdade não pode ser, em última análise, senão um critério teológico. É à luz da fé, e daquilo que ela nos ensina sobre a verdade do homem e sobre o sentido último de seu destino, que se deve julgar da validade ou do grau de validade daquilo que as outras disciplinas propõem, de resto, muitas vezes à maneira de conjectura, como sendo verdades sobre o homem, sobre a sua história e sobre o seu destino.
11. Aplicados à realidade económica, social e política de hoje, certos esquemas de interpretação tomados de correntes do pensamento marxista podem apresentar, à primeira vista, alguma verosimilhança na medida em que a situação de alguns países oferece analogias com aquilo que Marx descreveu e interpretou, em meados do século passado. Tomando por base estas analogias, operam-se simplificações que, abstraindo de fatores essenciais específicos, impedem, de fato, uma análise verdadeiramente rigorosa das causas da miséria, mantêm as confusões.
12. Em certas regiões da América Latina, a monopolização de grande parte das riquezas por uma oligarquia de proprietários desprovidos de consciência social, a quase ausência ou as carências do estado de direito, as ditaduras militares que conculcam os direitos elementares do homem, o abuso do poder por parte de certos dirigentes, as manobras selvagens de um certo capital estrangeiro, constituem outros tantos fatores que alimentam um violento sentimento de revolta junto àqueles que, deste modo, se consideram vítimas impotentes de um novo colonialismo de cunho tecnológico, financeiro, monetário ou económico. A tomada de consciência das injustiças é acompanhada por un pathos que pede muitas vezes emprestado ao marxismo seu discurso, apresentado abusivamente como sendo um discurso « científico ».
13. A primeira condição para uma análise é a total docilidade à realidade que se pretende descrever. Por isso, uma consciência crítica deve acompanhar o uso das hipóteses de trabalho que se adotam. É necessário saber que elas correspondem a um ponto de vista particular, o que tem por consequência inevitável sublinhar unilateralmente certos aspectos do real, deixando outros na sombra. Esta limitação, que deriva da natureza das ciências sociais, é ignorada por aqueles que, à guisa de hipóteses reconhecidas como tais, recorrem a uma concepção totalizante, como é o pensamento de Marx.
VIII - SUBVERSÃO DO SENSO DA VERDADE E VIOLÊNCIA
1. Esta concepção totalizante impõe assim a sua lógica e leva as « teologias da libertação » a aceitar um conjunto de posições incompatíveis com a visão cristã do homem. Com efeito, o núcleo ideológico, tomado do marxismo e, que serve de ponto de referência, exerce a função de princípio determinante. Este papel lhe é confiado em virtude da qualificação de científico, quer dizer, de necessariamente verdadeiro, que lhe é atribuída. Neste núcleo podem-se distinguir diversos componentes.
2. Na lógica do pensamento marxista, a « análise » não é dissociável da praxis e da concepção da história à qual esta praxis está ligada, A análise é pois um instrumento de crítica e a crítica não passa de uma etapa do combate revolucionário. Este combate é o da classe do Proletariado investido de sua missão histórica.
3. Em consequência, somente quem participa deste combate pode fazer uma análise correta.
4. A consciência verdadeira é pois uma consciência « partidarista ». Pelo que se vê, é a própria concepção da verdade que aqui está em causa e que se encontra totalmente subvertida: não existe verdade – afirma-se – a não ser na e pela praxis « partidarista ».
5. A praxis e a verdade que dela deriva, são praxis e verdade partidaristas, porque a estrutura fundamental da história está marcada pela luta de classes. Existe pois uma necessidade objetiva de entrar na luta de classes (que é o reverso dialético da relação de exploração que se denuncia). A verdade é a verdade de classe – não há verdade senão no combate da classe revolucionária.
6. A lei fundamental da história, que é a lei da luta de classes, implica que a sociedade esteja fundada sobre a violência. À violência que constitui a relação de dominação dos ricos sobre os pobres deverá responder a contra-violência revolucionária, mediante a qual esta relação será invertida.
7. A luta de classes é pois apresentada como uma lei objetiva e necessária. Ao entrar no seu processo, do lado dos oprimidos, « faz-se » a verdade, age-se « cientificamente ». Em consequência, a concepção da verdade vai de par com a afirmação da violência necessária e, por isso, com a do amoralismo político. Nesta perspectiva, a referência a exigências éticas, que prescrevam reformas estruturais e institucionais radicais e corajosas perde totalmente o sentido.
8. A lei fundamental da luta de classes tem um caráter de globalidade e de universalidade. Ela se reflete em todos os domínios da existência, religiosos, éticos, culturais e institucionais. Em relação a esta lei, nenhum destes domínios é autónomo. Em cada um esta lei constitui o elemento determinante.
9. Quando se assumem estas teses de origem marxista é, em particular, a própria natureza da ética qui é radicalmente questionada. De fato, o caráter transcendente da distinção entre o bem e o mal, princípio da moralidade, encontra-se implicitamente negado na ótica da luta de classes.
IX - TRADUÇÃO « TEOLÓGICA » DESTE NÚCLEO IDEOLÓGICO
1. As posições aqui expostas encontram-se às vezes enunciadas com todos os seus termos em alguns escritos de « teólogos da libertação ». Em outros, elas se deduzem logicamente das premissas colocadas. Em outros ainda, elas são pressupostas em certas práticas litúrgicas (como por exemplo a « Eucaristia » transformada em celebração do povo em luta), embora quem participa destas práticas não esteja plenamente consciente disso. Estamos pois diante de um verdadeiro sistema, mesmo quando alguns hesitam em seguir a sua lógica até o fim. Como tal, este sistema é uma perversão da mensagem cristã, como esta foi confiada por Deus à Igreja. Esta mensagem se encontra pois posta em xeque, na sua globalidade, pelas « teologias da libertação ».
2. Não é o fato das estratificações sociais, com as conexas desigualdades e injustiças, é a teoria da luta de classes como lei estrutural fundamental da história que é recebida por estas « teologias da libertação », na qualidade de princípio. A conclusão a que se chega é que a luta de classes, entendida deste modo, divide a própria Igreja e em função dela se devem julgar as realidades eclesiais. Pretende-se ainda que afirmar que o amor, na sua universalidade, é um meio capaz de vencer aquilo que constitui a lei estrutural primária da sociedade capitalista, seria manter, de má fé, uma ilusão falaz.
3. Dentro desta concepção, a luta de classes é o motor da história. A história torna-se assim uma noção central. Afirmar-se-á que Deus se fez história. Acrescentar-se-á que não existe senão uma única história, na qual já não é preciso distinguir entre história da salvação e história profana. Manter a distinção seria cair no « dualismo ». Semelhantes afirmações refletem um imanentismo historicista. Tende-se deste modo a identificar o Reino de Deus e o seu advento com o movimento de libertação humana e a fazer da mesma história o sujeito de seu próprio desenvolvimento como processo da auto-redenção do homem por meio de luta de classes. Esta identificação está em oposição com a fé da Igreja, como foi relembrada pelo Concílio Vaticano II.[23]
4. Nesta linha, alguns chegam até ao extremo de identificar o próprio Deus com a história e a definir a fé como « fidelidade à história », o que significa fidelidade comprometida com uma prática política, afinada com a concepção do devir da humanidade concebido no sentido de um messianismo puramente temporal.
5. Por conseguinte, a fé, a esperança e a caridade recebem um novo conteúdo: são « fidelidade à história », « confiança no futuro », « opção pelos pobres ». É o mesmo que dizer que são negadas em sua realidade teologal.
6. Desta nova concepção deriva inevitavelmente uma politização radical das afirmações da fé e dos juízos teológicos. Já não se trata somente de chamar a atenção para as consequências e incidências políticas das verdades de fé que seriam respeitadas antes de tudo em seu valor transcendente. Toda e qualquer afirmação de fé ou de teologia se vê subordinada a um critério político, que, por sua vez, depende da teoria da luta de classes, como motor da história.
7. Apresenta-se por conseguinte o ingresso na luta de classes como uma exigência da própria caridade; denuncia-se como atitude desmobilizadora e contrária ao amor pelos pobres a vontade de amar, de saída, todo homem, qualquer que seja a classe a que pertença, e de ir ao seu encontro pelas vias não-violentas do diálogo e da persuasão. Mesmo afirmando que ele não pode ser objeto de ódio, afirma-se com a mesma força que, pelo fato de pertencer objetivamente ao mundo dos ricos, ele é, antes de tudo, um inimigo de classe a combater. Como consequência, a universalidade do amor ao próximo e a fraternidade transformam-se num princípio escatológico que terá valor somente para o « homem novo », que surgirá da revolução vitoriosa.
8. Quanto à Igreja, a tendência é de encará-la simplesmente como uma realidade dentro da história, sujeita ela também às leis que, segundo se pensa, governam o devir histórico na sua imanência. Esta redução esvazia a realidade específica da Igreja, dom da graça de Deus e mistério da fé. Contesta-se, igualmente, que a participação na mesma Mesa eucarística de cristãos que, por acaso, pertençam a classes opostas, tenha ainda algum sentido.
9. Na sua significação positiva, a Igreja dos pobres indica a preferência, sem exclusivismo, dada aos pobres, segundo todas as formas de miséria humana, porque eles são os prediletos de Deus. A expressão significa ainda que a Igreja, como comunhão e como instituição, assim como os membros da mesma Igreja, tomam consciência, em nosso tempo, das exigências da pobreza evangélica.
10. Mas as « teologias da libertação », que têm o mérito de haver revalorizado os grandes textos dos profetas e do Evangelho acerca da defesa dos pobres, passam a fazer um amálgama pernicioso entre o pobre da Escritura e o proletariado de Marx. Perverte-se deste modo o sentido cristão do pobre e o combate pelos direitos dos pobres transforma-se em combate de classes na perspectiva ideológica da luta de classes. A Igreja dos pobres significa então Igreja classista, que tomou consciência das necessidades da luta revolucionária como etapa para a libertação e que celebra esta libertação na sua liturgia.
11. É necessário fazer uma observação análoga a respeito da expressão Igreja do povo. Do ponto de vista pastoral, pode-se entender com essa expressão os destinatários prioritários da evangelização, aqueles para os quais, em virtude de sua condição, se volta primeiro que tudo o amor pastoral da Igreja. É possível referir-se também à Igreja como « povo de Deus », ou seja, como o povo da Nova Aliança realizada em Cristo.[24]
12. As « teologias da libertação », a que aqui nos referimos, porém, entendem por Igreja do povo a Igreja da luta libertadora organizada. O povo assim entendido chega mesmo a tornar-se, para alguns, objeto de fé.
13. A partir de semelhante concepção da Igreja do povo, elabora-se uma crítica das próprias estruturas da Igreja. Não se trata apenas de uma correção fraterna dirigida aos pastores da Igreja, cujo comportamento não reflita o espírito evangélico de serviço e se apegue a sinais anacrónicos de autoridade que escandalizam os pobres. Trata-se, sim, de pôr em xeque a estrutura sacramental e hierárquica da Igreja, tal como a quis o próprio Senhor. São denunciados na Hierarquia e no Magistério os representantes objetivos da classe dominante, que é preciso combater. Teologicamente, esta posição equivale a afirmar que o povo é a fonte dos ministérios e portanto pode dotar-se de ministros à sua escolha, de acordo com as necessidades de sua missão revolucionária histórica.
X - UMA NOVA HERMENÊUTICA
1. A concepção partidarista da verdade, que se manifesta na praxis revolucionária de classe, corrobora esta posição. Os teólogos que não compartilham as teses da « teologia da libertação », a hierarquia e sobretudo o Magistério romano são assim desacreditados a priori, como pertencentes à classe dos opressores. A teologia deles é uma teologia de classe. Os argumentos e ensinamentos não merecem pois ser examinados em si mesmos, uma vez que refletem simplesmente os interesses de uma classe. Por isso, decreta-se que o discurso deles é, em princípio, falso.
2. Aparece aqui o carácter global e totalizante da « teologia da libertação ». Por isso mesmo, deve ser criticada não nesta ou naquela afirmação que ela faz, mas a partir do ponto de vista de classes que ela adopta a priori e que nela funciona como princípio hermenêutico determinante.
3. Por causa deste pressuposto classista, torna-se extremamente difícil, para não dizer impossível, conseguir com alguns « teólogos da libertação » um verdadeiro diálogo, no qual o interlocutor seja ouvido e seus argumentos sejam discutidos objetivamente e com atenção. Com efeito estes teólogos mais ou menos conscientemente, partem do pressuposto de que o ponto de vista da classe oprimida e revolucionária, que seria o mesmo deles constitui o único ponto de vista da verdade. Os critérios teológicos da verdade, vêem-se, deste modo, relativizados e subordinados aos imperativos da luta de classes. Nesta perspectiva substitui-se a ortodoxia como regra correta da fé pela ideia da ortopráxis, como critério de verdade. A este respeito, é preciso não confundir a orientação prática, própria à teologia tradicional, do mesmo modo e pelo mesmo título que lhe é própria também a orientação especulativa, com um primado privilegiado, conferido a um determinado tipo de praxis. Na realidade esta última é a praxis revolucionária que se tornaria assim critério supremo da verdade teológica. Uma metodologia teológica sadia toma em consideração, sem dúvida, a praxis da Igreja e nela encontra um de seus fundamentos, mas isto porque essa praxis é decorrência da fé e constitui uma expressão vivenciada dessa fé.
4. A doutrina social da Igreja é rejeitada com desdém. Esta procede, afirma-se, da ilusão de um possível compromisso, próprio das classes médias, destituídas de sentido histórico.
5. A nova hermenêutica inserida nas « teologias da libertação » conduz a uma releitura essencialmente política da Escritura. É assim que se atribui a máxima importância ao acontecimento do Êxodo, enquanto libertação da escravidão política. Propõe-se igualmente uma leitura política do Magnificat. O erro aqui não está em privilegiar uma dimensão política das narrações bíblicas; mas em fazer desta dimensão a dimensão principal e exclusiva, o que leva a uma leitura redutiva da Escritura.
6. Quem assim procede, coloca-se por isso mesmo na perspectiva de um messianismo temporal, que é uma das expressões mais radicais da secularização do Reino de Deus e de sua absorção na imanência da história humana.
7. Privilegiar deste modo a dimensão política, é o mesmo que ser levado a negar a radical novidade do Novo Testamento e, antes de tudo, a desconhecer a pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, bem como o caráter específico da libertação que Ele nos traz e que é fundamentalmente libertação do pecado, fonte de todos os males.
8. Aliás, pôr de lado a interpretação autorizada do Magistério, denunciada como interpretação de classe, é afastar-se automaticamente da Tradição. É, par isso mesmo, privar-se de um critério teológico essencial para a interpretação e acolher no vazio assim criado, as teses mais radicais da exegese racionalista. Retoma-se, então, sem espírito crítico, a oposição entre o « Jesus da história » e o « Jesus da fé ».
9. Conserva-se, sem dúvida, a letra das fórmulas da fé, especialmente a de Calcedônia, mas atribui-se a essas fórmulas uma nova significação, que constitui uma negação da fé da Igreja. De um lado, rejeita-se a doutrina cristológica apresentada pela Tradição, em nome do critério de classe; e de outro lado, pretende-se chegar ao « Jesus da história » a partir da experiência revolucionária da luta dos pobres pela sua libertação.
10. Pretende-se reviver uma experiência análoga à que teria sido a de Jesus. A experiência dos pobres lutando por sua libertação, que teria sido a de Jesus, e só ela, revelaria assim o conhecimento do verdadeiro Deus e do Reino.
11. É claro que a fé no Verbo encarnado, morto e ressuscitado por todos os homens, a Quem « Deus fez Senhor e Cristo »[25] é negada. Toma o seu lugar uma « figura » de Jesus, uma espécie de símbolo que resume em si mesmo as exigências da luta dos oprimidos.
12. Propõe-se assim uma interpretação exclusivamente política da morte de Cristo. Nega-se desta maneira seu valor salvífico e toda a economia da redenção.
13. A nova interpretação atinge assim todo o conjunto do mistério cristão.
14. De um modo geral, ela opera o que se poderia chamar de inversão dos símbolos. Assim, em lugar de ver no Êxodo com São Paulo, uma figura do batismo,[26] se tenderá ao extremo de fazer deste um símbolo da libertação política do povo.
15. Pelo mesmo critério hermenêutico, aplicado à vida eclesial e à constituição hierárquica da Igreja, as relações entre a hierarquia e a « base » tornam-se relações de dominação que obedecem à lei da luta de classes. A sacramentalidade, que está na raiz dos ministérios eclesiásticos e que faz da Igreja uma realidade espiritual que não se pode reduzir a uma análise puramente sociológica, é simplesmente ignorada.
16. Verifica-se ainda a inversão dos símbolos no domínio dos sacramentos. A Eucaristia não é mais entendida na sua verdade de presença sacramental do sacrifício reconciliador e como dom do Corpo e do Sangue de Cristo. Torna-se celebração do povo na sua luta. Por conseguinte, a unidade da Igreja é radicalmente negada. A unidade, a reconciliação, a comunhão no amor não mais são concebidas como um dom que recebemos de Cristo.[27] É a classe histórica dos pobres que, mediante o combate, construirá a unidade. A luta de classes é o caminho desta unidade. A Eucaristia torna-se, deste modo, Eucaristia de classe. Nega-se também, ao mesmo tempo a força triunfante do amor de Deus que nos é dado.
XI - ORIENTAÇÕES
1. Chamar a atenção para os graves desvios que algumas « teologias da libertação » trazem consigo não deve, de modo algum, ser interpretado como uma aprovação, ainda que indireta, aos que contribuem para a manutenção da miséria dos povos, aos que dela se aproveitam, aos que se acomodam ou aos que ficam indiferentes perante esta miséria. A Igreja, guiada pelo Evangelho da Misericórdia e pelo amor ao homem, escuta o clamor pela justiça[28] e deseja responder com todas as suas forças.
2. Um imenso apelo é assim dirigido à Igreja. Com audácia e coragem, com clarividência e prudência, com zelo e força de ânimo, com um amor aos pobres que vai até ao sacrifício, os pastores, como muitos já fazem, hão de considerar como tarefa prioritária responder a este apelo.
3. Todos aqueles, sacerdotes, religiosos e leigos que, auscultando o clamor pela justiça, quiserem trabalhar na evangelização e na promoção humana, fá-lo-ão em comunhão com seu bispo e com a Igreja, cada um na linha de sua vocação eclesial específica.
4. Conscientes do carácter eclesial de sua vocação, os teólogos colaborarão lealmente e em espírito de diálogo com o Magistério da Igreja. Saberão reconhecer no Magistério um dom de Cristo à sua Igreja[29] e acolherão a sua palavra e as suas orientações com respeito filial.
5. Somente a partir da tarefa evangelizadora, tomada em sua integralidade, se compreendem as exigências de uma promoção humana e de uma libertação autênticas. Esta libertação tem como pilares indispensáveis, a verdade sobre Jesus Cristo, o Salvador, a verdade sobre a Igreja, a verdade sobre o homem e sobre a sua dignidade.[30] É à luz das bem-aventuranças, da bem-aventurança dos pobres de coração em primeiro lugar, que a Igreja, desejosa de ser no mundo inteiro a Igreja dos pobres, quer servir a nobre causa da verdade e da justiça. Ela se dirige a cada homem e, por isso mesmo, a todos os homens. Ela é a « Igreja universal. A Igreja do mistério da encarnação. Não é a Igreja de uma classe ou de uma só casta. Ela fala em nome da própria verdade. Esta verdade é realista ». Ela leva a ter em conta « cada realidade humana, cada injustiça, cada tensão, cada luta ».[31]
6. Uma defesa eficaz da justiça deve apoiar-se na verdade do homem, criado à imagem de Deus e chamado à graça da filiação divina. O reconhecimento da verdadeira relação do homem com Deus constitui o fundamento da justiça, enquanto regula as relações entre os homens. Esta é a razão pela qual o combate pelos direitos do homem, que a Igreja não cessa de promover, constitui o autêntico combate pela justiça.
7. A verdade do homem exige que este combate seja conduzido por meios que estejam de acordo com a dignidade humana. Por isso o recurso sistemático e deliberado à violência cega, venha essa de um lado ou de outro, deve ser condenado.[32] Pôr a confiança em meios violentos na esperança de instaurar uma maior justiça é ser vítima de uma ilusão fatal. Violência gera violência e degrada o homem. Rebaixa a dignidade do homem na pessoa das vítimas e avilta esta mesma dignidade naqueles que a praticam.
8. A urgência de reformas radicais que incidam sobre estruturas que segregam a miséria e constituem, por si mesma, formas de violência, não pode fazer perder de vista que a fonte da injustiça se encontra no coração dos homens. Não se obterão pois mudanças sociais que estejam realmente ao serviço do homem senão fazendo apelo às capacidades éticas da pessoa e à constante necessidade de conversão interior.[33] Pois na medida em que colaborarem livremente, por sua própria iniciativa e em solidariedade, nestas necessárias mudanças, os homens, despertados no sentido de sua responsabilidade, crescerão em humanidade. A inversão entre moralidade e estruturas é própria de uma antropologia materialista, incompatível com a verdade do homem.
9. É pois igualmente ilusão fatal crer que novas estruturas darão origem por si mesmas a um « homem novo », no sentido da verdade do homem. O cristão não pode desconhecer que o Espírito Santo que nos foi dado é a fonte de toda verdadeira novidade e que Deus é o senhor da história.
10. A derrubada, por meio da violência revolucionária, de estruturas geradoras de injustiças não é pois ipso facto o começo da instauração de um regime justo. Um fato marcante de nossa época deve ocupar a reflexão de todos aqueles que desejam sinceramente a verdadeira libertação dos seus irmãos. Milhões de nossos contemporâneos aspiram legitimamente a reencontrar as liberdades fundamentais de que estão privados por regimes totalitários e ateus, que tomaram o poder por caminhos revolucionários e violentos, exatamente em nome da libertação do povo. Não se pode desconhecer esta vergonha de nosso tempo: pretendendo proporcionar-lhes liberdade, mantêm-se nações inteiras em condições de escravidão indignas do homem. Aqueles que, talvez por inconsciência, se tornam cúmplices de semelhantes escravidões, traem os pobres que eles quereriam servir.
11. A luta de classes como caminho para uma sociedade sem classes é um mito que impede as reformas e agrava a miséria e as injustiças. Aqueles que se deixam fascinar por este mito deveriam refletir sobre as experiências históricas amargas às quais ele conduziu. Compreenderiam então que não se trata, de modo algum, de abandonar uma via eficaz de luta em prol dos pobres em troca de um ideal desprovido de efeito. Trata-se, pelo contrário, de libertar-se de uma miragem para se apoiar no Evangelho e na sua força de realização.
12. Uma das condições para uma necessária retificação teológica é a revalorização do magistério social da Igreja. Este magistério não é, de modo algum, fechado. É, ao contrário, aberto a todas as novas questões que não deixam de surgir no decorrer dos tempos. Nesta perspectiva, a contribuição dos teólogos e dos pensadores de todas as regiões do mundo para a reflexão da Igreja é hoje indispensável.
13. Do mesmo modo, a experiência daqueles que trabalham diretamente na evangelização e na promoção dos pobres e dos oprimidos é necessária à reflexão doutrinal e pastoral da Igreja. Neste sentido é preciso tomar consciência de certos aspectos da verdade a partir da praxis, se por praxis se entende a prática pastoral e uma prática social que conserva sua inspiração evangélica.
14. O ensino da Igreja em matéria social proporciona as grandes orientações éticas. Mas para que possa atingir diretamente a ação, ele precisa de pessoas competentes, do ponto de vista científico e técnico, bem como no domínio das ciências humanas e da política. Os pastores estarão atentos à formação destas pessoas competentes, profundamente impregnadas pelo Evangelho. São aqui visados, em primeiro lugar, os leigos, cuja missão específica é a de construir a sociedade.
15. As teses das « teologias da libertação » estão sendo largamente difundidas, sob uma forma ainda simplificada, nos cursos de formação ou nas comunidades de base, que carecem de preparação catequética e teológica e de capacidade de discernimento. São assim aceitas, por homens e mulheres generosos, sem que seja possível um juízo crítico.
16. É por isso que os pastores devem vigiar sobre a qualidade e o conteúdo da catequese e da formação que devem sempre apresentar a integralidade da mensagem da salvação e os imperativos da verdadeira libertação humana, no quadro desta mensagem integral.
17. Nesta apresentação integral do mistério cristão, será oportuno acentuar os aspectos essenciais que as « teologias da libertação » tendem especialmente a desconhecer ou eliminar: transcendência e gratuidade da libertação em Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem; soberania de sua graça; verdadeira natureza dos meios de salvação, e especialmente da Igreja e dos sacramentos. Tenham-se presentes a verdadeira significação da ética, para a qual a distinção entre o bem e o mal não pode ser relativizada; o sentido autêntico do pecado; a necessidade da conversão e a universalidade da lei do amor fraterno. Chame-se a atenção contra uma politização da existência, que, desconhecendo ao mesmo tempo a especificidade do Reino de Deus e a transcendência da pessoa, acaba sacralizando a política e abusando da religiosidade do povo em proveito de iniciativas revolucionárias.
18. É frequente dirigir aos defensores da « ortodoxia » a acusação de passividade, de indulgência ou de cumplicidade culpáveis frente a situações intoleráveis de injustiça e de regimes políticos que mantêm estas situações. A conversão espiritual, a intensidade do amor a Deus e ao próximo, o zelo pela justiça e pela paz, o sentido evangélico dos pobres e da pobreza, são exigidos a todos, especialmente aos pastores e aos responsáveis. A preocupação pela pureza da fé não subsiste sem a preocupação de dar a resposta de um testemunho eficaz de serviço ao próximo e, em especial, ao pobre e ao oprimido, através de uma vida teologal integral. Pelo testemunho de sua capacidade de amar, dinâmica e construtiva, os cristãos lançarão, sem dúvida, as bases desta « civilização do amor » de que falou, depois de Paulo VI, a Conferência de Puebla.[34] De resto, são numerosos os sacerdotes, religiosos ou leigos, que se consagram de um modo verdadeiramente evangélico à criação de uma sociedade justa.
CONCLUSÃO
As palavras de Paulo VI, na Profissão de fé do povo de Deus, exprimem, com meridiana clareza, a fé da Igreja, da qual ninguém pode afastar-se sem provocar, juntamente com a ruína espiritual, novas misérias e novas escravidões.
« Nós professamos que o Reino de Deus iniciado aqui na terra, na Igreja de Cristo, não é deste mundo, cuja figura passa, e que seu crescimento próprio não se pode confundir com o progresso da civilização, da ciência ou da técnica humanas, mas consiste em conhecer cada vez mais profundamente as insondáveis riquezas de Cristo, em esperar cada vez mais corajosamente os bens eternos, em responder cada vez mais ardentemente ao amor de Deus e em difundir cada vez mais amplamente a graça e a santidade entre os homens. Mas é este mesmo amor que leva a Igreja a preocupar-se constantemente com o bem temporal dos homens. Não cessando de lembrar a seus filhos que eles não têm aqui na terra uma morada permanente, anima-os também a contribuir, cada qual segundo a sua vocação e os meios de que dispõem, para o bem de sua cidade terrestre, a promover a justiça, a paz e a fraternidade entre os homens, a prodigalizar-se na ajuda aos irmãos, sobretudo aos mais pobres e mais infelizes. A intensa solicitude da Igreja, esposa de Cristo, pelas necessidades dos homens, suas alegrias e esperanças, seus sofrimentos e seus esforços, nada mais é do que seu grande desejo de lhes estar presente para os iluminar com a luz de Cristo e reuni-los todos nele, seu único Salvador. Esta solicitude não pode, em hipótese alguma, comportar que a própria Igreja se conforme às coisas deste mundo, nem que diminua o ardor da espera pelo seu Senhor e pelo Reino eterno ».[35]
O Sumo Pontífice João Paulo 11, no decorrer de uma Audiência concedida ao Cardeal Prefeito que subscreve este documento, aprovou a presente Instrução, deliberada em reunião ordinária da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, e ordenou que a mesma fosse publicada.
Roma, Sede da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, 6 de Agosto de 1984, na Festa da Transfiguração do Senhor.
Joseph Card. Ratzinger
Prefeito
SB Alberto Bovone
Arcebispo tit. de Cesárea de Numidia
Secretário
Notas
[1] Cf. Gaudium et spes, n. 4.
[2] Cf. Dei Verbum, n. 10.
[3] Cf. Gál 5, 1 ss.
[4] Cf. Êx 24.
[5] Cf. Jer 31, 31-34; Ez 36, 26 ss.
[6] Cf. Sof 3, 12 ss.
[7] Cf. Deut 10, 18-19.
[8] Cf. Lc 10, 25-27.
[9] Cf. 2 Cor 8, 9.
[10] Cf. Mt 25, 31-46; At 9, 4-5; Col 1, 24.
[11] Cf. Tg 5, 1 ss.
[12] Cf. 1 Cor 11, 17-34.
[13] Cf. Tg 2, 14-26.
[14] Cf. AAS 71, 1979, pp. 1144-1160.
[15] Cf. AAS 71, 1979, p. 196.
[16] Cf. Evangelii nuntiandi, nn. 25-33: AAS 68, 1976, pp. 23-28.
[17] Cf. Evangelii nuntiandi, n. 32: AAS 68, 1976, p. 27.
[18] Cf. AAS 71, 1979, pp. 188-196.
[19] Cf. Gaudium et spes, n. 39; Pio XI, Quadragesimo anno: AAS 23, 1931, p. 207.
[20] Cf. nn. 1134-1165 e nn. 1166-1205.
[21] Cf. Doc. de Puebla, IV, 2.
[22] Paulo PP. VI, Octogesima adveniens, n. 34: AAS 63, 1971, pp. 424-425.
[23] Cf. Lumen gentium, nn. 9-17.
[24] Cf. Gaudium et spes, n. 39.
[25] Cf. At 2, 36.
[26] Cf. 1 Cor 10, 1-2.
[27] Cf. Ef 2, 11-12.
[28] Cf. Doc. de Puebla, I, 2, n. 3. 3.
[29] Cf. Lc 10, 16.
[30] Cf. João Paulo PP. II, Discurso na abertura da Conferência de Puebla: AAS 71, 1979, pp. 188-186.
[31] Cf. João Paulo PP. II, Discurso na Favela « Vidigal», no Rio de Janeiro, 2 de Julho de 1980: AAS 72, 1980, pp. 852-858.
[32] Cf. Doc. de Puebla, II, 2, n. 5. 4.
[33] Cf. Doc. de Puebla, IV, 3, n. 3. 3.
[34] Cf. Doc. de Puebla, IV, 2, n. 2. 4.
[35] Paulo PP. VI, Profissão de Fé do Povo de Deus, 30 de Junho de 1968: AAS 60, 1968, pp. 443-444.
10- Conferência de Puebla
Este documento abaixo publicado em 1979 mostra a preferencia pelos pobres e pelos jovens. Mas estes últimos não tem recebido ênfase pela teologia da libertação:
Conferência de Puebla
IIIª CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO
Puebla de los Angeles, México, 27-1 a 13-2 de 1979
Quarta Parte (IV)
IGREJA MISSIONÁRIA A SERVIÇO DA EVANGELIZAÇÃO NA AMÉRICA LATINA
Capítulo I Opção preferencial pelos pobres
Capítulo II Opção preferencial pelos jovens
Capítulo III Ação da Igreja junto aos construtores da, sociedade pluralista na AL
Capítulo IV Ação em prol da pessoa na sociedade nacional e internacional
1132. Os pobres e os jovens constituem, portanto, a riqueza e a esperança da Igreja na América, Latina, e sua evangelização é, por conseguinte, prioritária.
CAPÍTULO II OPÇAO PREFERENCIAL PELOS JOVENS
1166. Apresentar aos jovens o Cristo vivo, como único Salvador, para que, evangelizados, evangelizem e contribuam, como em resposta de amor a Cristo, para a libertação integral do homem e da sociedade, levando uma vida de comunhão e participação.
2.1. Situação da juventude
1167. Características da juventude: a juventude não é só um grupo de pessoas de idade cronológica. E também uma atitude frente à vida, numa etapa não definitiva, mas transitória. Possui traços muito característicos:
1168. Um inconformismo que a tudo questiona.; um espírito de aventura que a leva a compromissos e situações radicais; uma capacidade criadora com respostas novas para o mundo em transformação, que aspira a sempre melhorar em sinal de esperança. Sua aspiração pessoal mais espontânea e forte é a liberdade, emancipada de qualquer tutela exterior. É sinal de alegria e felicidade. Muito sensível aos problemas sociais. Exige autenticidade e simplicidade, rejeitando com rebeldia uma sociedade invadida por hipocrisias e contravalores.
1169. Este dinamismo a torna capaz de renovar “as culturas” que, doutra forma, envelheceriam. 347 Cf. Discurso Operários Monterrey.
A juventude no corpo social
1170. O papel normal desempenhado pela juventude na sociedade é dinamizar o corpo social. Quando os adultos não são autênticos nem abertos para o diálogo com os jovens, impedem que o dinamismo criador do jovem faça progredir o corpo social. Ao perceberem que não são tomados a sério, os jovens se lançam por diversos caminhos: ou são perseguidos por diversas ideologias, especialmente as radicalizadas, já que, sendo sensíveis às mesmas por seu idealismo natural, nem sempre têm a suficiente preparação para um claro discernimento, ou mostram-se indiferentes para com o sistema vigente ou se acomodam a ele com dificuldade e perdem a capacidade dinamizadora.
1171. O que mais desorienta o jovem é a ameaça à sua exigência de autenticidade por parte do meio adulto, em grande parte incoerente e manipulador e por parte do conflito de gerações, da civilização de consumo, duma certa pedagogia do instinto, da droga, do sexualismo, da tentação de ateísmo.
1172. Hoje em dia, a juventude é manipulada especialmente na área política e no emprego do “tempo livre”. Uma parte da juventude tem legítimas inquietações políticas e consciência de poder social. Sua falta de formação nesses campos e a ausência de assessoria equilibrada a levam a radicalizações ou frustrações. O jovem ocupa grande parte do seu “tempo livre” com o esporte e uso dos meios de comunicação social. Estes são, para alguns, instrumentos de educação e recreação sadia; para outros, elementos de alienação.
1173. A família é o corpo social primário no qual se origina e se educa e juventude. Da sua estabilidade, tipo de relacionamento com a juventude, vivência e abertura aos seus valores depende em grande parte o fracasso ou êxito da realização desta juventude na sociedade ou na Igreja.348
1174. A juventude feminina está passando por uma crise de identidade, por causa da confusão reinante acerca da missão da mulher hoje. Os elementos negativos referentes à libertação feminina e um certo machismo ainda existente impedem uma sadia promoção feminina, como parte indispensável da construção da sociedade.
348 Cf. João Paulo II, Homilia Puebla – AAS LXXI, p. 182. 282
A juventude da América Latina
1175. A juventude da América Latina não pode ser considerada em abstrato. Há diversidade de jovens, caracterizados por sua situação social ou pelas experiências sócio-políticas que vivem seus respectivos países.
1176. Se observarmos a situação social, verificamos que, ao lado daqueles que, por sua condição econômica, se desenvolvem normalmente, há muitos jovens indígenas, camponeses, mineiros, pescadores e operários que, por sua pobreza, se vêem obrigados a trabalhar como adultos. Ao lado de jovens que vivem folgadamente, há estudantes, sobretudo de subúrbios, que já vivem na insegurança dum futuro emprego ou não encontram seu caminho por falta de orientação vocacional.
1177. Por outro lado, é indubitável haver jovens que se sentiram frustrados pela falta de autenticidade de alguns líderes seus ou se sentiram enfastiados por uma civilização de consumo. Outros, pelo contrário, em resposta às múltiplas formas de egoísmo, desejam construir um mundo de paz, justiça e amor. Finalmente, comprovamos que não poucos descobriram a alegria da entrega a Cristo, não obstante as variadas e rudes exigências de sua cruz. Os jovens e a Igreja
1178. A Igreja vê na juventude uma enorme força renovadora, símbolo da própria Igreja. E a Igreja faz isto não por tática mas por vocação, já que é “chamada à constante renovação de si mesma, isto é, a um incessante rejuvenescimento” (João Paulo II Alocução Juventude, 2 - AAS, LXXI, p. 218) . O serviço prestado com humildade à juventude deve fazer com que mude na Igreja qualquer atitude de desconfiança ou incoerência para com os jovens.
1179. Atualmente, contudo, os jovens consideram a Igreja de diversas maneiras: uns a amam espontaneamente como ela é, sacramento de Cristo; outros a questionam para que seja autêntica; e não faltam os que procuram um Cristo vivo separado do seu corpo que é a Igreja. Há uma massa indiferente, passivamente acomodada à civilização de consumo ou outros sucedâneos, desinteressada da exigência evangélica.
1180. Existem jovens socialmente muito inquietos, mas reprimidos pelos sistemas de governo; estes buscam a Igreja como espaço de liberdade para poderem expressar-se sem manipulações e protestar social e politicamente. Alguns, pelo contrário, pretendem utilizá-1a como instrumento de contestação. Finalmente, uma minoria muito ativa, influenciada por seu ambiente ou por ideologias materialistas e atéias, nega e combate o Evangelho.
1181. Os jovens desejosos de se realizar na Igreja podem ' ficar frustrados por não encontrarem uma boa planificação e programação pastoral que corresponda à realidade histórica em que vivem. Igualmente sentem a falta de assessores preparados, embora em não poucos grupos e movimentos juvenis existam assessores competentes e abnegados. 2 - 2 . Critérios pastorais
1182. Queremos dar uma resposta à situação da juventude, graças aos três critérios de verdade propostos por S. S. João Paulo II: verdade sobre Jesus Cristo, verdade sobre a missão da Igreja e verdade sobre o homem.349
1183. Embora não se dê conta disso, a juventude vai ao encontro de um Messias, Cristo, o qual caminha em direção dos jovens.350 Somente ele torna o jovem verdadeiramente livre. Este é o Cristo que deve ser apresentado aos jovens como libertador integral351 que, pelo espírito doa bem-aventuranças, oferece a todo jovem a inserção num processo de constante conversão; compreende suas fraquezas e oferece-lhe um encontro muito pessoal com Ele e com a comunidade, nos sacramentos da reconciliação e da Eucaristia. O jovem deve experimentar Cristo como amigo pessoal que nunca falha, caminho de total realização. Com ele e pela lei do amor, o jovem caminha em direção do Pai comum e dos irmãos. Cem isto, sente-se verdadeiramente feliz. O jovem na Igreja
1184. Os jovens devem sentir que são Igreja, experimentando-a como lugar de comunhão e participação. Por isso, a Igreja aceita suas críticas, por reconhecer-se limitada em seus membros, e os quer gradualmente responsáveis na sua construção até que os envie como testemunhas e missionários, especialmente à grande massa juvenil. Nela, os jovens sentem-se povo novo, o povo das bem-aventuranças, sem outra segurança que a de Cristo; um povo dotado de coração de pobre, contemplativo, em atitude de escutar e discernir evangelicamente, construtor de paz, portador de alegria e de um projeto libertador integral em favor, sobretudo, de seus irmãos jovens. A Virgem Mãe bondosa, indefectível na fé, educa o jovem para ser Igreja.
349 Cf. Discurso Inaugural – AAS LXXI, p. 178.
350 Cf. Paulo VI.
351 Cf. 5,1.13 ; 4,26.31 ; 1Cor 7,22 ; 2Cor 3,17.
1185. Assumindo as atitudes de Cristo, o jovem promove e defende a dignidade da pessoa humana. Em virtude do batismo, é filho do único Pai, irmão de todos os homens e contribui para a edificação da Igreja. Sente-se cada vez mais “cidadão universal” instrumento na construção da comunidade latinoamericana e universal.
2.3. Opções pastorais
Opção preferencial
1186. A Igreja confia nos jovens.352 Eles são a sua esperança. A Igreja vê na juventude da América Latina um verdadeiro potencial e o futuro de sua evangelização. Por ser verdadeira dinamizadora do corpo social e especialmente do corpo eclesial, com vistas à sua missão evangelizadora no Continente.353
1187. Por isso queremos oferecer uma linha pastoral global: desenvolver, de acordo com a pastoral diferencial e orgânica, uma pastoral de juventude que leve em conta a realidade social dos jovens de nosso continente; atenda ao aprofundamento e crescimento da fé para a comunhão com Deus e os homens; oriente a opção vocacional dos jovens; lhes ofereça elementos para se converterem em fatores de transformação e lhes proporcione cais eficazes para a participação ativa na Igreja e na transformação da sociedade.354
352 Cf. EN 72.
353 Cf. Med. Juventude 13.
354 Cf. DT 770.
Aplicações concretas
Comunhão e compromisso
1188. A Igreja evangelizadora faz um veemente apelo para que os jovens nela busquem o lugar de sua comunhão com Deus e os homens a fim de construir “a civilização do amor” e edificar a paz na justiça. Convida-os a que se comprometam eficazmente numa ação evangelizadora que não exclua ninguém, de acordo com a situação em que vivem, e tendo predileção pelos mais pobres.
1189. A integração na Igreja será canalizada através de movimentos juvenis ou comunidades que devem estar integradas na pastoral de conjunto diocesana ou nacional, com projeções para uma integração latino-americana. Esta integração far-se-á especialmente por meio da: * pastoral familiar; * pastoral da Igreja diocesana e paroquial em seus diversos aspectos de catequese, educação, vocações, etc.; * inter-relacionamento dos diversos movimentos de juventude ou comunidades, considerando-lhes a situação concreta: estudantes secundários, universitários, operários, camponeses, que tem condicionamentos próprios e exigências diferentes em face do processo evangelizador e que, por isso, pedem uma pastoral específica.
1190. Esta pastoral de movimentos e comunidades deve levar em conta os jovens numa inter-relação fecunda, já que os grupos devem ser fermento no conjunto e propiciar uma evangelização total.
1191. Providencie-se um acolhimento e atenção aos jovens que, por diversos motivos, devem emigrar, temporária ou definitivamente, e que são vítimas da solidão, da falta de ambientação, da marginalização, etc.
Formação e participação
1192. A inserção na Igreja e a tarefa de compromisso efetivo na edificação de nova civilização do amor e da paz é muito exigente e requer profunda formação e participação responsável. Por este motivo:
1193. A pastoral de juventude na linha da evangelização deve ser um verdadeiro processo de educação na fé, que leva à própria conversão e a um compromisso evangelizador.
1194. O fundamento desta educação deve ser a apresentação ao jovem de Cristo vivo, Deus e homem, modelo de autenticidade, simplicidade e fraternidade; único que salva, libertando de todo pecado e de suas conseqüências e que compromete para a libertação ativa dos irmãos por meios não violentos.
1195. A pastoral da juventude empenhar-se-á em que o jovem cresça numa espiritualidade autêntica e apostólica, fundada no espírito de oração e no conhecimento da Palavra de Deus e no amor filial a Maria Santíssima que, unindo-o a Cristo, o torne solidário com seus irmãos.
1196. A pastoral da juventude deve ajudar também a formar os jovens de maneira gradual para a ação sócio-política e para as mudanças de estruturas, de menos humanas em mais humanas, segundo a Dou trina Social da Igreja.
1197. Formar-se-á no jovem um sentido crítico frente aos meios de comunicação social e aos contravalores culturais que as diversas ideologias tentam transmitir-lhe, especialmente a liberal capitalista e a marxista, para que não seja por elas manipulado.
1198. Usar-se-á uma linguagem simples e adaptada a uma pedagogia que tenha presente as diferenças psicológicas do homem e da mulher e se caracterize pela mútua confiança e respeito recíproco; numa conversão ao meio em que vive e atua, para centrar assim sua missão dinâmica evangelizadora.
1199. Estimule-se a capacidade criadora dos jovens, para que eles mesmos imaginem e descubram os meios mais diversos e aptos para tornar presente, de forma construtiva, a missão que exercem na sociedade e na Igreja. Para isso, lhes sejam facilitados os meios e áreas onde ponham em prática o seu compromisso. Recomenda-se a presença missionária dos jovens em lugares especialmente necessitados.
1200. Procure-se dar aos jovens uma boa orientação espiritual a fim de que possam amadurecer a sua opção vocacional, quer leiga, quer religiosa ou sacerdotal.
1201. Recomenda-se dar a maior importância a todos os meios que favoreçam a evangelização e o crescimento na fé: retiros, jornadas, encontros, cursilhos, convivências, etc.
1202. Como tempo forte para o amadurecimento na fé que leva necessariamente a um compromisso apostólico - deve-se destacar a celebração consciente e ativa do sacramento da confirmação, precedida duma esmerada catequese e sempre de acordo com as diretrizes da Santa Sé e das Conferências Episcopais.
1203. Deve-se procurar formar com prioridade animadores juvenis qualificados (sacerdotes, religiosos ou leigos) que sejam guias e amigos da juventude, conservando sua própria identidade e prestando este serviço com madureza humana e cristã.
1204. A juventude não se pode considerar em abstrato, nem é um grupo isolado no corpo social. Por isso, ela requer uma pastoral articulada que permita uma comunicação efetiva entre os diversos períodos da juventude e uma continuidade de formação e compromisso depois, na idade adulta.
1205. Seja a pastoral juvenil uma pastoral da alegria e da esperança, que transmita a mensagem alegre da salvação a um mundo muitas vezes triste, oprimido e desesperançado, em busca da sua libertação.355
355 Cf. João Paulo II, Alocução Juventude – AAS LXXI, p. 217.
11- CARTA DO PAPA JOÃO PAULO II
AOS BISPOS DA CONFERÊNCIA EPISCOPAL
DOS BISPOS DO BRASIL -1986 http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/letters/1986/documents/hf_jp-ii_let_19860409_conf-episcopale-brasile.html consultado em 14/03/2021
5. Tendo diante dos olhos essas indeclináveis exigências do seu serviço episcopal, os Senhores tem-se esforçado, sobretudo nos últimos anos, por encontrar respostas justas aos desafios acima referidos, sempre presentes, eles também, ao seu espírito. A Santa Sé não tem deixado de acompanhá-los nestes esforços, como faz com todas as Igrejas. Manifestação e prova da atenção com que compartilha esses esforços, são os numerosos documentos publicados ultimamente, entre os quais as duas recentes Instruções emanadas pela Congregação para a Doutrina da Fé, com a minha explícita aprovação: uma, sobre alguns aspectos da teologia da libertação ; outra, sobre a liberdade crista e a libertação . Estas últimas, endereçadas à Igreja Universal, tem, para o Brasil, uma inegável relevância pastoral.
Na medida em que se empenha por encontrar aquelas respostas justas – penetradas de compreensão para com a rica experiência da Igreja neste País, tão eficazes e construtivas quanto possível e ao mesmo tempo consonantes e coerentes com os ensinamentos do Evangelho, da Tradição viva e do perene Magistério da Igreja – estamos convencidos, nós e os Senhores, de que a teologia da libertação é não só oportuna mas útil e necessária. Ela deve constituir uma nova etapa – em estreita conexão com as anteriores – daquela reflexão teológica iniciada com a Tradição apostólica e continuada com os grandes Padres e Doutores, com o Magistério ordinário e extraordinário e, na época mais recente, com o rico património da Doutrina Social da Igreja, expressa em documentos que vão da Rerum Novarum à Laborem Exercens.
Penso que, neste campo, a Igreja no Brasil possa desempenhar um papel importante e delicado ao mesmo tempo: o de criar espaço e condições para que se desenvolva, em perfeita sintonia com a fecunda doutrina contida nas duas citadas Instruções, uma reflexão teológica plenamente aderente ao constante ensinamento da Igreja em matéria social e, ao mesmo tempo, apta a inspirar uma práxis eficaz em favor da justiça social e da equidade, da salvaguarda dos direitos humanos, da construção de uma sociedade humana baseada na fraternidade e na concórdia, na verdade e na caridade. Deste modo se poderia romper a pretensa fatalidade dos sistemas – incapazes, um e outro de assegurar a libertação trazida por Jesus Cristo – o capitalismo desenfreado e o coletivismo ou capitalismo de Estado . Tal papel, se cumprido, será certamente um serviço que a Igreja pode prestar ao País e ao quase Continente latino-americano, como também a muitas outras regiões do mundo onde os mesmos desafios se apresentam com análoga gravidade.
Para cumprir esse papel é insubstituível a ação sábia e corajosa dos pastores, isto é, dos Senhores. Deus os ajude a velar incessantemente para que aquela correta e necessária teologia da libertação se desenvolva no Brasil e na América Latina, de modo homogéneo e não heterogéneo com relação à teologia de todos os tempos, em plena fidelidade à doutrina da Igreja, atenta a um amor preferencial não excludente nem exclusivo para com os pobres.
6. Neste ponto é indispensável ter presente a importante reflexão da Instrução Libertatis Conscientia sobre as duas dimensões constitutivas da libertação na sua concepção cristã: quer no nível da reflexão quer na sua práxis, a libertação é, antes de tudo, soteriológica (um aspecto da Salvação realizada por Jesus Cristo, Filho de Deus) e depois ético-social (ou ético-política). Reduzir uma dimensão à outra – suprimindo-as praticamente a ambas – ou antepor a segunda à primeira é subverter e desnaturar a verdadeira libertação crista
É dever dos Pastores, portanto, anunciar a todos os homens, sem ambiguidades, o mistério da libertação que se encerra na Cruz e na Ressurreição de Cristo. A Igreja de Jesus, nos nossos dias como em todos os tempos, no Brasil como em qualquer parte do mundo, conhece uma só sabedoria e uma só potência: a da Cruz que leva à Ressurreição . Os pobres deste País, que tem nos Senhores os seus Pastores, os pobres deste Continente são os primeiros a sentir urgente necessidade deste evangelho da libertação radical e integral. Sonegá-lo seria defraudá-los e desiludi-los.
Pôr outro lado, os Senhores – e com os Senhores toda a Igreja no Brasil – mostram-se prontos a empreender em seu setor próprio e na linha do próprio carisma, tudo aquilo que deriva, como consequência, da libertação soteriológica. É, aliás, o que a Igreja, desde os seus albores, sempre procurou fazer por meio de seus santos, seus mestres e seus pastores e por meio de seus fiéis engajados nas realidades temporais.
Permitam-me Irmãos no episcopado, que, com plena confiança, os convide a uma tarefa menos visível mas de alta relevância, além de profundamente conexa com nossa função episcopal: a de educar para a libertação, educando para a liberdade . Educar para a liberdade é infundir os critérios sem os quais essa liberdade se tornaria uma quimera, se não uma perigosa contrafaço. 12 ajudar a reconquistar a liberdade perdida ou a curar a liberdade, quando adulterada ou corrompida. Educadores na fé, como nos chama o Concílio Vaticano II, nossa tarefa consistirá também em educar para a liberdade.
12- Texto de Ratzinger antes da publciação de Libertatis Nuntius
Cardeal Joseph Ratzinger
Para esclarecer a minha tarefa e a minha intenção, com relação ao tema, parecem-me necessárias algumas observações preliminares:
1. A teologia da libertação é um fenômeno extraordinariamente complexo. É possível formar-se um conceito da teologia da libertação segundo o qual ela vai das posições mais radicalmente marxistas até aquelas que propõem o lugar apropriado da necessária responsabilidade do cristão para com os pobres e os oprimidos no contexto de uma carreta teologia eclesial, como fizeram os documentos do CELAM, de Medellín a Puebla.
Neste nosso texto, usaremos o conceito “teologia da libertação” em sentido mais restrito: sentido que compreende apenas aqueles teólogos que, de algum modo, fizeram própria a opção fundamental marxista. Mesmo aqui existem, nos particulares, muitas diferenças que é impossível aprofundar nesta reflexão geral. Neste contexto posso apenas tentar pôr em evidência algumas linhas fundamentais que, sem desconhecer as diversas matrizes, são muito difundidas e exercem certa influência mesmo onde não existe teologia da libertação em sentido estrito.
2. Com a análise do fenômeno da teologia da libertação torna-se manifesto um perigo fundamental paro a fé da Igreja. Sem dúvida, é preciso ter presente que um erro não pode existir se não contém um núcleo de verdade. De fato, um erro é tanto mais perigoso quanto maior for a proporção do núcleo de verdade assumida. Além disso, o erro não se poderia apropriar daquela parte de verdade, se essa verdade fosse suficientemente vivida e testemunhada ali onde é o seu lugar, isto é, na fé da Igreja. Por isso, ao lado da demonstração do erro e do perigo da teologia da libertação, é preciso sempre acrescentar a pergunta: que verdade se esconde no erro e como recuperá-la plenamente?
3. A teologia da libertação é um fenômeno universal sob três pontos de vista:
a) Essa teologia não pretende constituir-se como um novo tratado teológico ao lado dos outros já existentes; não pretende, por exemplo, elaborar novos aspectos da ética social da Igreja. Ela se concebe, antes, como uma nova hermenêutica da fé cristã, quer dizer, como nova forma de compreensão e de realização do cristianismo na sua totalidade. Por isto mesmo, muda todas as formas da vida eclesial: a constituição eclesiástica, a liturgia, a catequese, as opções morais;
b) A teologia da libertação tem certamente o seu centro de gravidade na América Latina, mas não é, de modo algum, fenômeno exclusivamente latino-americano. Não se pode pensá-la sem a influência determinante de teólogos europeus e também norte-americanos. Além do mais, existe também na Índia, no Sri Lanka, nas Filipinas, em Taiwan, na África – embora nesta última esteja em primeiro plano a busca de uma “teologia africana”. A união dos teólogos do Terceiro Mundo é fortemente caracterizada pela atenção prestada aos temas da teologia da libertação;
c) A teologia da libertação supera os limites confessionais. Um dos mais conhecidos representantes da teologia da libertação, Hugo Assman, era sacerdote católico e ensina hoje como professor em uma Faculdade protestante, mas continua a se apresentar com a pretensão de estar acima das fronteiras confessionais. A teologia da libertação procura criar, já desde as suas premissas, uma nova universalidade em virtude da qual as separações clássicas da Igreja devem perder a sua importância.
I. O Conceito de Teologia da Libertação e os Pressupostos de sua Gênese
Essas observações preliminares, entretanto, já nos introduziram no núcleo do tema. Deixam aberta, porém, a questão principal: o que é propriamente a teologia da libertação? Em uma primeira tentativa de resposta, podemos dizer: a teologia da libertação pretende dar nova interpretação global do Cristianismo; explica o Cristianismo como uma práxis de libertação e pretende constituir-se, ela mesma, um guia para tal práxis. Mas assim como, segundo essa teologia, toda realidade é política, também a libertação é um conceito político e o guia rumo à libertação deve ser um guia para a ação política. “Nada resta fora do empenho político. Tudo existe com uma colocação política” (Gutierrez).
1. Após o Concílio, produziu-se uma situação teológica nova:
a) Surgiu a opinião de que a tradição teológica existente até então não era mais aceitável e, por conseguinte, se deviam procurar, o partir da Escritura e dos sinais dos tempos, orientações teológicas e espirituais totalmente novas;
b) A ideia de abertura ao mundo e de compromisso no mundo transformou-se freqüentemente em uma fé ingênua nas ciências; uma fé que acolheu as ciências humanas como um novo evangelho, sem querer, reconhecer os seus limites e problemas próprios. A psicologia, a sociologia e a interpretação marxista da história foram considerados como cientificamente seguras e, a seguir, como instâncias não mais contestáveis do pensamento cristão;
c) A critica da tradição por parte da exegese evangélica moderna, especialmente o de Bultmann e da sua escola, tornou-se uma, instância teológica inamovível que barrou a estrada às formas até então válidas da teologia, encorajando assim também novas construções.
2. A situação teológica assim transformada coincidiu com uma situação da historia espiritual também ela modificada. Ao final da fase de reconstrução após a segunda guerra mundial, fase que coincidiu pouco mais ou menos com o término do Concilio, produziu-se no mundo ocidental um sensível vazio de significado, ao qual a filosofia existencialista ainda em voga não estava em condições de dar alguma resposta. Nesta situação, as diferentes formas do neo-marxismo transformaram-se em um impulso moral e, ao mesmo tempo, em uma promessa de significado que parecia quase irresistível à juventude universal. O marxismo, com as acentuações religiosas de Bloch e as filosofias dotadas de rigor científico de Adorno, Harkheimer, Habernas e Marcuse, ofereceram modelos de ação com os quais alguns pensadores acreditavam poder responder ao desafio da miséria no mundo e, ao mesmo tempo, poder atualizar o sentido correto da mensagem bíblica.
3. O desafio moral da pobreza e da opressão não se podia mais ignorar, no momento em que a Europa e a América do Norte atingiam uma opulência até então desconhecida. Este desafio exigia evidentemente nova respostas, que não se podiam encontrar na tradição existente até aquele momento. A situação teológica e filosófica mudada convidava expressamente a buscar o resposta em um cristianismo que se deixasse regular pelos modelos da esperança, aparentemente fundados cientificamente, das filosofias marxistas,
II. A Estrutura Gnoseológica Fundamental do Teologia do Libertação
Esta resposta se apresenta totalmente diversa nas formas particulares de teologia da libertação, teologia da evolução, teologia política, etc. Não pode, pois, ser apresentada globalmente, Existem, no entanto, alguns conceitos fundamentais que se repetem continuamente nas diferentes variações e exprimem comuns intenções de fundo. Antes de passar aos conceitos fundamentais do conteúdo, é necessário fazer uma observação a cerca dos elementos estruturais do teologia da libertação. Paro tal, podemos retomar o que já afirmamos acerca da situação teológica mudada após o Concilio.
Além disso, Bultmann foi importante para o desenvolvimento posterior de uma segunda palavra-chave. Ele trouxe à moda o antigo conceito de hermenêutica, conferindo-lhe uma dinâmica nova. Na palavra “hermenêutica” encontra expressão a ideia de que uma compreensão real dos textos históricos não acontece através de uma mera interpretação histórica, mas toda interpretação histórica inclui certas decisões preliminares. A hermenêutica tem a função de “atualizar”, em conexão com a determinação de dado histórico. Nela, segundo o terminologia clássica, se trata de uma “fusão dos horizontes” entre “então” [“naquele tempo”] e o “hoje”. Por conseguinte, ela suscita a pergunta: o que significa o então (“naquele tempo”), nos dias de hoje? O próprio Bultmann respondeu a esta pergunta servindo-se da filosofia de Heidegger e interpretou, deste modo, a Bíblia em sentido existencialista. Tal resposta, hoje, não apresenta mais algum interesse. Neste sentido Bultmann foi superado pela exegese atual. Mas permaneceu a separação entre a figura de Jesus da tradição clássica e a ideia de que se pode e se deve transferir essa figura ao presente, através de uma nova hermenêutica.
A este ponto, surge o segundo elemento, já mencionado, da nossa situação: o novo clima filosófico dos anos sessenta. A análise marxista da história e da sociedade foi considerada, nesse ínterim, a única dotada de caráter “científico”, isto significa que o mundo é interpretado à luz do esquema da luta de classes e que a única escolha possível é entre capitalismo e marxismo. Significa, além disso, que toda a realidade é política e que deve ser justificada politicamente. O conceito bíblico do “pobre” oferece o ponto de partida para a confusão entre a imagem bíblica da história e a dialética marxista; esse conceito é interpretado com a ideia de proletariado em sentido marxista e justifica também o marxismo como hermenêutica legítima para a compreensão da Bíblia. Ora, segundo essa compreensão, existem, e só podem existir, duas opções; por isso, contradizer essa interpretação da Bíblia não é senão expressão do esforço da classe dominante para conservar o próprio poder. Gutierrez afirma: “A luta de classes é um dado de fato e a neutralidade acerca desse ponto é absolutamente impossível”. A partir daí, torna-se impossível até a intervenção do magistério eclesiástico: no caso em que este se opusesse a tal interpretação do Cristianismo demonstraria apenas estar ao lado dos ricos e dos dominadores e contra os pobres e os sofredores, isto é, contra o próprio Jesus, e, na dialético da história, aliar-se-ia à parte negativo.
Essa decisão, aparentemente “científica” e “hermeneuticamente” indiscutível, determina por si o rumo da ulterior interpretação do Cristianismo, seja quatro às instâncias interpretativas, seja quatro aos conteúdos interpretados. No que diz respeito as instâncias interpretativas, os conceitos decisivos são: povo, comunidade, experiência, história. Se até então a Igreja, isto é, a Igreja Católica na Sua totalidade, que, transcendendo tempo e espaço, abrange os leigos (sensus fidei) e a hierarquia (magistério), fora a instância hermenêutica fundamental, hoje tornou-se a “comunidade” tal instância. A vivência e as experiências da comunidade determinam agora a compreensão e a interpretação da Escritura. De novo pode-se dizer, aparentemente de maneira muito científica, que a figura de Jesus, apresentada nos Evangelhos, constitui uma síntese de acontecimentos e interpretações da experiência de comunidades particulares, onde no entanto, a interpretação é muito mais importante do que o acontecimento, que, em si, não é mais determinável. Essa síntese original de acontecimento e interpretação pode ser dissolvida e reconstruída sempre de novo: a comunidade “interpreta” com a sua “experiência” os acontecimentos e encontra assim sua “práxis”. Esta ideia, podemos encontrá-la em modo um tanto diverso do conceito de povo, com o qual se transformou a acentuação conciliar da ideia de “povo de Deus” em mito marxista. As experiências do “povo” explicam a Escritura. “Povo” torna-se assim um conceito aposto ao de “hierarquia” e em antítese a todas as instituições indicadas como forças da opressão.
Afinal, é “povo” quem participa da “luta de classes”; a “igreja popular” acontece em oposição à Igreja hierárquica. Por fim, o conceito de “história” torna-se instância hermenêutica decisiva. A opinião, considerada cientificamente segura e irrefutável, de que a Bíblia raciocine em termos exclusivamente de história da salvação, e, portanto de maneira antimetafísica, permite a fusão do horizonte bíblico com a ideia marxista da história que procede dialeticamente como autêntica portadora de salvação. A história é a autêntica revelação e, portanto a verdadeira instância hermenêutica da interpretação bíblica. Tal dialético é apoiado, algumas vezes, pela pneumatologia. Em todo caso, também esta última, no Magistério que insiste em verdades permanentes, vê uma instância inimiga do progresso, dado que pensa “metafisicamente” e assim contradiz a “história”. Pode-se dizer que o conceito de história absorve o conceito de Deus e de revelação. A “historicidade” da Bíblia deve justificar o seu papel absolutamente predominante e, portanto, deve legitimar, ao mesmo tempo, a passagem para a filosofia materialista-marxista, na qual a história assumiu a função de Deus.
III. Conceitos fundamentais da Teologia da Libertação
Com isto, chegamos aos conceitos fundamentais do conteúdo da nova interpretação do Cristianismo. Uma vez que os contextos nos quais aparecem os diversos conceitos são diferentes, gostaria de citar alguns deles, sem a pretensão de esquematizá-los. Comecemos pela nova interpretação da fé, da esperança e da caridade. Com relação a fé, por exemplo, J. Sobrinho afirma: a experiência que Jesus tem de Deus é radicalmente histórica. “A sua fé converte-se em fidelidade”. Por isso, Sobrinho substitui fundamentalmente a fé pela “fidelidade à história” (fidelidad a la historia, 143-144). Jesus é fiel à profunda convicção de que o mistério da vida do homem … é realmente o último … (144). Aqui produz-se aquela fusão entre Deus e história que dá a Sobrinho a possibilidade de conservar para Jesus a fórmula de Calcedônia, ainda que com um sentido completamente mudado; pode-se ver como os critérios clássicos da ortodoxia não são aplicáveis à análise dessa teologia, Ignacio Ellacuria, na capa do livro sobre este assunto, afirma: Sobrinho “diz de novo … que Jesus é Deus, acrescentando, porém, imediatamente, que o Deus verdadeiro é somente aquele que se revela historicamente em Jesus e nos pobres, que continuam a sua presença. Somente quem mantém unidas essas duas afirmações, é ortodoxo…”
A esperança é interpretada como “confiança no futuro” e como trabalho pelo futuro; com isso elo é subordinado novamente ao predomínio da história das classes. “Amor” consiste na “opção pelos pobres”, isto é, coincide com a opção pela luta de classes. Os teólogos da libertação sublinham com força, diante do “falso universalismo”, a parcialidade e o cárater partidário da opção cristã; tomar partido é, segundo eles, requisito fundamental de uma correta hermenêutica dos testemunhos bíblicos. Na minha opinião, aqui se pode reconhecer muito claramente a mistura entre uma verdade fundamental do Cristianismo e uma opção fundamental não cristã, que torna o conjunto tão sedutor: o sermão da montanha é, na verdade, a escolha por parte de Deus a favor dos pobres. Mas a interpretação dos pobres no sentido da dialética marxista da história e a interpretação da escolha partidária no sentido da luta de classes é um salto “eis allo genos” (grego: para outro gênero), no qual as coisas contrárias se apresentam como idênticas.
O conceito fundamental da pregação de Jesus é o de “reino de Deus”. Este conceito encontra-se também no centro das teologia da libertação, lido porém no contexto da hermenêutica marxista. Segundo J. Sobrinho, o reino não deve ser compreendido espiritualmente, nem universalmente, no sentido de uma reserva escatologicamente abstrata. Deve ser compreendido em forma partidária e voltado para a práxis. Somente a partir da práxis de Jesus, e não teoricamente, é possível definir o que seria o reino: trabalhar na realidade histórica que nos circunda para transformá-la no reino (166). Aqui ocorre mencionar também uma ideia fundamental de certa teologia pós-conciliar que impulsionou nessa direção. Muitos apregoaram que, segundo o Concílio, se deveriam superar todas as formas de dualismo: o dualismo de corpo e alma, de natural e sobrenatural, de imanência e transcendência, de presente e futuro. Após o desmantelamento desses dualismos, resta apenas a possibilidade de trabalhar por um reino que se realize nesta história e em sua realidade político-econômica.
Mas justamente dessa forma deixou-se de trabalhar pelo homem de hoje e se começou a destruir o presente, a favor de um futuro hipotético: assim produziu-se imediatamente o verdadeiro dualismo.
Neste contexto gostaria de mencionar também a interpretação, impressionante e definitivamente espantosa, que Sobrinho dá da morte e da ressurreição. Antes do mais, ele estabelece, contra as concepções universalistas, que a ressurreição é, em primeiro lugar, uma esperança para aqueles que são crucificados; estes constituem a maioria dos homens: todos aqueles milhões aos quais a injustiça estrutural se impõe como uma lenta crucifixão (176 e seguintes). O crente, no entanto, participa também do senhorio de Jesus sobre a história, através da edificação do reino, isto é, na luta pela justiça e pela libertação integral, na transformação das estruturas injustas em estruturas mais humanas. Esse senhorio sobre a história é exercitado ao se repetir o gesto de Deus que ressuscita Jesus, isto é, dando novamente vida aos crucificados da história (181). O homem assumiu o gesto de Deus e aqui a transformação total da mensagem bíblica se manifesta de maneiro quase trágica, se se pensa em como essa tentativa de imitação de Deus se desenvolveu e se desenvolve ainda.
Gostaria de citar apenas alguns outros conceitos: o êxodo se transforma em uma imagem central da história da salvação; o mistério pascal é entendido como um símbolo revolucionário e, portanto, a Eucaristia é interpretada como uma festa de libertação no sentido de uma esperança político-messiânica e da sua práxis. A palavra redenção é substituída geralmente por libertação, a qual, por sua vez, é compreendida, no contexto da história e da luta de classes, como processo de libertação que avança; por fim, é fundamental também a acentuação da práxis: a verdade não deve ser compreendida em sentido metafísico; trata-se de “idealismo”. A verdade realiza-se na história e na práxis. A ação é a verdade. Por conseguinte, também as ideias que se usam para ação, em última instância são intercambiáveis. A única coisa decisiva é a práxis. A práxis torna-se, assim, a única e verdadeira ortodoxia. Desta forma, justifica-se um enorme afastamento dos textos bíblicos: a crítica histórica liberta da interpretação tradicional, que aparece como não científica. Com relação à tradição, atribui-se importância ao máximo rigor científico na linha de Bultmann. Mas os conteúdos da Bíblia, determinados historicamente, não podem, por sua vez, ser vinculantes de modo absoluto. O instrumento para a interpretação não é, em última análise, a pesquisa histórica, mas, sim, a hermenêutica da história, experimentada na comunidade, isto é, nos grupos políticos, sobretudo dado que a maior parte dos próprios conteúdos bíblicos deve ser considerada como produto de tal hermenêutica comunitária.
Quando se tenta fazer um julgamento geral, deve-se dizer que, quando alguém procura compreender as opções fundamentais da teologia da libertação não pode negar que o conjunto contém uma lógica quase incontestável. Com as premissas da critica bíblica e da hermenêutica fundada na experiência, de um lado, e da análise marxista da história, de outro, conseguiu-se criar uma visão de conjunto do cristianismo que parece responder plenamente tanto às exigências da ciência, quanto aos desafios morais dos nossos tempos. E, portanto, impõe-se aos homens de modo imediato a tarefa de fazer do Cristianismo um instrumento da transformação concreta do mundo, o que pareceria uni-lo a todas as forças progressistas da nossa época. Pode-se, pois, compreender como esta nova interpretação do Cristianismo atraia sempre mais teólogos, sacerdotes e religiosos, especialmente no contexto dos problemas do terceiro mundo. Subtrair-se a ela deve necessariamente aparecer aos olhos deles como uma evasão da realidade, como uma renúncia à razão e à moral. Porém, de outra parte, quando se pensa o quanto seja radical a interpretação do Cristianismo que dela deriva, torna-se ainda mais urgente o problema do que se possa e se deva fazer frente a ela.
À guisa de comentário, parece oportuno salientar os seguintes pontos:
1. A Teologia da Libertação não é um novo tratado teológico ao lado de outros já existentes, mas é uma nova interpretação do Cristianismo, que revira radicalmente as verdades da fé, a constituição da Igreja, a Liturgia, a Catequética e as opções morais.
2. Todos os valores e toda a realidade são considerados do ponto de vista político. Uma teologia que não seja essencialmente política, é encarada como fator de conservação dos apressares no poder.
3. A dificuldade de se perceber esse caráter subversivo da Teologia da Libertação está, em grande parte, no fato de que os seus arautos continuam a usar a linguagem ascética e dogmática da Igreja, embora em chave nova. Isto dá aos observadores a impressão de que estão diante do patrimônio da fé acrescido de algumas afirmações religiosas que não podem ser perigosas.
4. A gravidade da Teologia da Libertação não é suficientemente avaliada; não entra em nenhum esquema de heresia até hoje existente.
5. O cristão não pode ser, de forma alguma, insensível à miséria dos povos do Terceiro Mundo. Todavia, para acudir cristãmente a tal situação, não lhe é necessário adotar um sistema de pensamento que é anticristão como a Teologia da Libertação. Existe a Doutrina Social da Igreja, desenvolvida pelos Papas desde Leão XIII até João Paulo II de maneira cada vez mais incisiva e penetrante. Se fosse posta em prática, eliminaria graves males de que sofrem os homens, sem disseminar o ódio e a luta de classes.
13- Discurso João Paulo II sobre invasão de terras:
1 – DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II AOS BISPOS DO BRASIL DO REGIONAL SUL I
EM VISITA "AD LIMINA APOSTOLORUM" Terça-feira, 21 de Março de 1995
Não se pode tratar com superficialidade o tema da ocupação da terra e da sua propriedade. Não basta dar terra a quem quer trabalhar. O importante é garantir o acesso à terra a quem quer e tem efetivamente condições de fazê-la produzir, quando ela está ociosa e improdutiva (cf. Homilia, Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XIV/2 [1991] 844; Encíclica Mater et Magistra, 134-136). Ocorre, para tal fim, a colaboração esclarecida e permanente com o poder público a quem cabe a condução do processo para a implementação de uma nova política fundiária que melhore a distribuição de terras e crie condições efetivas de um trabalho produtivo e compensador para o produtor rural e o homem do campo. Por outro lado, é necessário recordar a doutrina tradicional de que a posse da terra “é ilegítima quando não é valorizada ou quando serve para impedir o trabalho dos outros, visando somente obter um ganho que não provém da expansão global do trabalho humano e da riqueza social, mas antes de sua repressão, da exploração ilícita, da especulação e da ruptura da solidariedade no mundo do trabalho” (Centesimus Annus 43). Mas recordo, igualmente, as palavras do meu predecessor Leão XIII quando ensina que “nem a justiça, nem o bem comum consentem danificar alguém ou invadir a sua propriedade sob nenhum pretexto”(Rerum Novarum, 30). A Igreja não pode estimular, inspirar ou apoiar as iniciativas ou movimentos de ocupação de terras, quer por invasões pelo uso da força, quer pela penetração sorrateira das propriedades agrícolas. http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/speeches/1995/march/documents/hf_jp-ii_spe_19950321_brasile-ad-limina.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário