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segunda-feira, 31 de maio de 2021

Antropologia Introdução



Esse texto é tirado do livro abaixo e mostra dentre muitas coisas o erro em teorizar um evolucionismo da religião que começa de formas simples como  totem e animismo, passado por politeísmo, monolatria (henoteísmo) até chegar no monoteísmo

Livro texto:

Aprender Antropologia. François Laplantine. São Paulo: Brasiliense, 2000.

 Conceito de Antropologia

 a) o estudo do homem inteiro; 

b) o estudo do homem em todas as sociedades, sob todas as latitudes em todos os seus estados e em todas as épocas. p. 16 


A antropologia não é apenas o estudo de tudo que compõe uma sociedade. Ela é o estudo de todas as sociedades humanas (a nossa inclusive 5 ), ou seja, das culturas da humanidade como um todo em suas diversidades históricas e geográficas. p. 20


Áreas da Antropologia

Só pode ser considerada como antropológica uma abordagem integrativa que objetive levar em considerar as múltiplas dimensões do ser humano em sociedade. Certamente, o acúmulo dos dados colhidos a partir de observações diretas, bem como o aperfeiçoamento das técnicas de investigação, conduzem necessariamente a uma especialização do saber. Porém, uma das vocações maiores de nossa abordagem consiste em não parcelar o homem mas, ao contrário, em tentar relacionar campos de investigação frequentemente separados. 

Ora, existem cinco áreas principais da antropologia, que nenhum pesquisador pode, evidentemente, dominar hoje em dia, mas `as quais ele deve estar sensibilizado quando trabalha de forma profissional em algumas delas, dado que essas cinco áreas mantém relações estreitas entre si. p.16

A antropologia biológica (designada antigamente sob o nome de antropologia física) consiste no estudo das variações dos caracteres biológicos do homem no espaço e no tempo. Sua problemática é a das relações entre o patrimônio genético e o meio (geográfico, ecológico, social), ela analisa as particularidades morfológicas e fisiológicas ligadas a um meio ambiente, bem como a evolução destas particularidades. O que deve, especialmente, a cultura a este patrimônio, mas também, o que esse patrimônio (que se transforma) deve `a cultura? Assim, o antropólogo biologista levará em consideração os fatores culturais que influenciam o crescimento e a maturação do indivíduo.


Ele se perguntará, por exemplo: por que o desenvolvimento psicomotor da criança africana ´e mais adiantado do que o da criança europeia? Essa parte da antropologia, longe de consistir apenas no estudo das formas de crânios, mensurações do esqueleto, tamanho, peso, cor da pele, anatomia comparada as raças c dos sexos, interessa-se em especial - desde os anos 50 - pela genética das populações, que permite discernir o que diz respeito ao inato e ao adquirido, sendo que um e outro estão interagindo continuamente. Ela tem, a meu ver, um papel particularmente importante a exercer para que não sejam rompidas as relações entre as pesquisas das ciências da vida e as das ciências humanas. p.17


A antropologia pré-histórica é o estudo do homem através dos vestígios materiais enterrados no solo (ossadas, mas também quaisquer marcas da atividade humana). Seu projeto, que se liga `a arqueologia, visa reconstituir as sociedades desaparecidas, tanto em suas técnicas e organizações sociais, quanto em suas produções culturais e artísticas. Notamos que esse ramo da antropologia trabalha com uma abordagem idêntica `as da antropologia histórica e da antropologia social e cultural de que trataremos mais adiante. O historiador é antes de tudo um historiógrafo, isto é, um pesquisador que trabalha a partir do acesso direto aos textos. O especialista em pré-história recolhe, pessoalmente, objetos no solo. Ele realiza um trabalho de campo, como o realizado na antropologia social na qual se beneficia de depoimentos vivos.3 


A antropologia linguística. A linguagem é, com toda evidencia, parte do patrimônio cultural de uma sociedade. E através dela que os indivíduos ´ que compõem uma sociedade se expressam e expressam seus valores, suas preocupações, seus pensamentos. Apenas o estudo da língua permite compreender:

  •  o como os homens pensam o que vivem e o que sentem, isto ´e, suas categorias psicoafetivas e psicocognitivas (etnolinguistica); 
  •  como eles expressam o universo e o social (estudo da literatura, não apenas escrita, mas também de tradição oral); 
  •  como, finalmente, eles interpretam seus próprios saber e saber-fazer (área das chamadas etnociências). p. 18


A antropologia linguística, que ´e uma disciplina que se situa no encontro de várias outras, 4 não diz respeito apenas, e de longe, ao estudo dos dialetos (dialetologia). Ela se interessa também pelas imensas ´áreas abertas pelas novas técnicas modernas de comunicação (mass media e cultura do audiovisual). p.19


A antropologia psicológica. Aos três primeiros polos de pesquisa que foram mencionados, e que são habitualmente os únicos considerados como constitutivos (com antropologia social e a cultural, das quais falaremos a seguir) do campo global da antropologia, fazemos questão pessoalmente de acrescentar um quinto polo: o da antropologia psicológica, que consiste no estudo dos processos e do funcionamento do psiquismo humano. De fato, o antropólogo é em primeira instancia confrontado não a conjuntos sociais, e sim a indivíduos. Ou seja, somente através dos comportamentos - conscientes e inconscientes - dos seres humanos particulares podemos apreender essa totalidade sem a qual não ´e antropologia. E a razão pela qual a dimensão psicológica (e também ´ psicopatológica) é absolutamente indissociável do campo do qual procuramos aqui dar conta. Ela é parte integrante dele. 


A antropologia social e cultural (ou etnologia). Assim sendo, toda vez que utilizarmos a partir de agora o termo antropologia mais genericamente, estaremos nos referindo `a antropologia social e cultural (ou etnologia), mas procuraremos nunca esquecer que ela é apenas um dos aspectos da antropologia. Um dos aspectos cuja abrangência é considerável, já que diz respeito a tudo que constitui uma sociedade: seus modos de produção econômica, suas técnicas, sua organização política e jurídica, seus sistemas de parentesco, seus sistemas de conhecimento, suas crenças religiosas, sua língua, sua psicologia, suas criações artísticas. Isso posto, esclareçamos desde já que a antropologia consiste menos no levantamento sistemático desses aspectos do que em mostrar a maneira particular com a qual estão relacionados entre si e através da qual aparece a especificidade de uma sociedade. E precisamente esse ponto de vista da totalidade, é  o fato de que o antropólogo procura compreender, como diz Lévi-Strauss, aquilo que os homens ”não pensam habitualmente em fixar ria pedra ou no papel”(nossos gestos, nossas trocas simbólicas, os menores detalhes dos nossos comportamentos), que faz dessa abordagem um tratamento fundamentalmente diferente dos utilizados setorial- mente pelos geógrafos, economistas, juristas, sociólogos, psicólogos. . .


História da Antropologia


A reflexão do homem sobre o homem e sua sociedade, e a elaboração de um saber são, portanto, tão antigos quanto a humanidade, e se deram tanto na Ásia como na  África, na América, na Oceania ou na Europa. Mas o projeto ´ de fundar uma ciência do homem - uma antropologia - é, ao contrário, muito recente. De fato, apenas no final do século XVIII ´e que começa a se constituir um saber científico (ou pretensamente científico) que toma o homem como objeto de conhecimento, e não mais a natureza; apenas nessa ´época ´e que o espírito científico pensa, pela primeira vez, em aplicar ao próprio homem os m´métodos até então utilizados na ´área física ou da biologia. p. 13


 Será preciso esperar o século XVIII para que se constitua o projeto de fundar uma ciência do homem, isto ´e, de um saber não mais exclusivamente especulativo, e sim positivo sobre o homem. Enquanto encontramos no século XVI elementos que permitem compreender a pré-história da antropologia, enquanto o século XVII (cujos discursos não nos são mais diretamente acessíveis hoje) interrompe nitidamente essa evolução, apenas no século XVIII ´e que entramos verdadeiramente, como mostrou Michel Foucault (1966), na modernidade. Apenas nessa ´época, e não antes, ´e que se pode apreender as condições históricas, culturais e epistemológicas de possibilidade daquilo que vai se tornar a antropologia p. 54


O final do século XVIII teve um papel essencial na elaboração dos fundamentos de uma ”ciência humana”. Não podia ir mais longe, e não poderíamos creditá-lo aquilo que só será possível um século depois. p. 60

Ora, no século XIX, o contexto geopolítico é totalmente novo: é o período da conquista colonial, que desembocará em especial na assinatura, em 1885, do Tratado de Berlim, que rege a partilha da África entre as potencias europeias ´ e põe um fim `as soberanias africanas p. 64


E no movimento dessa conquista que se constitui a antropologia moderna,  o antropólogo acompanhando de perto, como veremos, os passos do colono. Nessa época, a África, a Índia, a Austrália, a Nova Zelândia passam a ser ´ povoadas de um número considerável de emigrantes europeus; não se trata mais de alguns missionários apenas, e sim de administradores. Uma rede de informações se instala. São os questionários enviados por pesquisadores das metrópoles (em especial da Grã-Bretanha) para os quatro cantos do mundo,1 e cujas respostas constituem os materiais de reflexão das primeiras grandes obras de antropologia que se sucederão em ritmo regular durante toda a segunda metade do século. Em 1861, Maine publica Ancient Law, em 1861, Bachofen, Das Mutterrecht; em 1864, Fustel de Coulanges, La Cit´e Antique; em .1865, MacLennan, O Casamento Primitivo; em 1871, Tylor, A Cultura Primitiva-, em 1877, Morgan, A Sociedade Antiga; em 1890, Frazer, os primeiros volumes do Ramo de Ouro. Todas essas obras, que têm uma ambição considerável – seu objetivo não ´e nada menos que o estabelecimento de um verdadeiro corpus etnográfico da humanidade – caracterizam-se por uma mudança radical de perspectiva em relação `a época das ”luzes” o indígena das sociedades extra-europeias não ´e mais o selvagem do século XVIII, tornou-se o primitivo, isto ´e, o ancestral do civilizado, destinado a reencontrá-lo. A colonização atuará nesse sentido. 

Assim a antropologia, conhecimento do primitivo, fica indissociavelmente ligada ao conhecimento da nossa origem, isto ´e, das formas simples de organização social e de mentalidade que evoluíram para as formas mais complexas das nossas sociedades. Procuremos ver mais de perto em que consiste o pensamento teórico dessa antropologia que se qualifica de evolucionista. Existe uma espécie humana idêntica, mas que se desenvolve (tanto em suas formas tecnoeconômicas como nos seus aspectos sociais e culturais) em ritmos desiguais, de acordo com as populações, passando pelas mesmas etapas, para alcançar o n´nível final que ´e ´o da ”civilização”. A partir disso, convém procurar determinar cientificamente a sequencia dos estágios dessas transformacões. p. 65

O evolucionismo encontrará sua formulação mais sistemática e mais elaborada na obra de Morgan 2 e particularmente em Ancient Society, que se tornará o documento de referencia adotado pela imensa maioria dos antropólogos do final do século XIX, bem como na lei de Haeckel. Enquanto para de Pauw ou Hegel as populações ”não civilizadas” são populações que, além de se situarem enquanto espécies fora da História, não têm história em sua existência individual (não são crianças que se tornaram adultos atrasados, e sim crianças que permanecerão inexoravelmente crianças), Haeckel afirma rigorosamente o contrário: a ontogênese reproduz a filogênese; ou seja, o indivíduo atravessa as mesmas fases que a história das espécies. Disso decorre a identificação – absolutamente incontestada tanto pela primeira geração de marxistas quanto pelo fundador da psicanálise –dos povos primitivos aos vestígios da infância da humanidade3 O que é também muito característico dessa antropologia do século XIX, que pretende ser científica, ´e a considerável atenção dada: 

1) a essas populações que aparecem como sendo as mais ”arcaicas" do mundo: os aborígines australianos, 

2) ao estudo do ”parentesco”, 

3) e ao da religião. 

3Se o evolucionismo antropológico tende a aparecer hoje como a transposição ao nível das ciências humanas do evolucionismo biológico (A Origem das Espécies, de Darwin, 1859) que teria servido de justificação ao primeiro, notemos que o primeiro ´e bem anterior ao segundo. Vico elabora sua teoria das três idades (que anuncia Condorcet, Comte, Morgan, Frazer) no século XVIII, e Spencer. fundador da forma mais radical de evolucionismo sociológico, publica suas próprias teorias antes de ter lido A Origem das Espécies. 


Parentesco e religião são, nessa época, as duas grandes áreas da antropologia, ou, mais especificamente, as duas vias de acesso privilegiadas ao conhecimento das sociedades não ocidentais; elas permanecem ainda, notamo-lo, os dois n´núcleos resistentes da pesquisa dos antropólogos contemporâneos. 

1) A Austrália ocupa um lugar de primeira importância na própria constituição da nossa disciplina (cf. Elkin, l967), pois é lá que se pode apreender o que foi a origem absoluta das nossas próprias instituições.4 

2) No estudo dos sistemas de parentesco, os pesquisadores dessa época procuram principalmente evidenciar a anterioridade histórica dos sistemas de filiação matrilinear sobre os sistemas patrilineares. Por deslize do pensamento, imagina-se um matriarcado primitivo, ideia que exerceu tal Influencia que ainda hoje alguns continuam inspirando-se nela (cf. em especial Evelyn Reed, Feminismo e Antropologia, (trad. franc. 1979), um dos textos de referencia do movimento feminista nos Estados Unidos). 

3) A ´área dos mitos, da magia e da religião deterá mais nossa atenção, pois parece-nos reveladora ao mesmo tempo da abordagem e do espírito do evolucionismo. Notemos em primeiro lugar que a maioria dos antropólogos desse período, absolutamente confiantes na racionalidade científica triunfante, são não apenas agnósticos mas também deliberadamente anti-religiosos. Morgan, por exemplo, não hesita em escrever que ”todas as religiões primitivas são grotescas e de alguma forma ininteligíveis”, e Tylor deve parte de sua vocação a uma reação visceral contra o espiritualismo de seu meio. Mas ´e certamente o Ramo de Ouro, de Frazer (trad. fr. 1981-1984),5 que realiza a melhor síntese de todas as pesquisas do século XIX sobre as ”crenças” e ”superstições” p. 65-68

Nessa obra gigantesca, publicada em doze volumes de 1890 a 1915 e que ´e uma das obras mais célebres de toda a literatura antropol´ogica,6 Frazer retraça o processo universal que conduz, por etapas sucessivas, da magia `a religião, e depois, da religião `a ciência.A magia”, escreve Frazer, ”representa uma fase anterior, mais grosseira, da história do espírito humano, pela qual todas as raças da humanidade passaram, ou estão passando, para dirigir-se para a religião e a ciência”. Essas crenças dos povos primitivos permitem compreender a origem das ”sobrevivências”(termo forjado por Tylor) que continuam existindo nas sociedades civilizadas. Como Hegel, Frazer considera que a magia consiste num controle ilusório da natureza, que se constitui num obstáculo `a razão. Mas, enquanto para Hegel, a primeira ´e um impasse total, Frazer a considera como religião em potencial, a qual dará lugar por sua vez `a ciência que realizará (e está até começando a realizar) o que tinha sido imaginado no tempo da magia. * * *

 O pensamento evolucionista aparece, da forma como podemos vê-lo hoje, como sendo ao mesmo tempo dos mais simples e dos mais suspeitos, e as objeções de que foi objeto podem organizar-se em torno de duas séries de críticas:

 1) mede-se a importância do ”atraso "das outras sociedades destinadas, ou melhor, compelidas a alcançar o pelotão da frente, em relação aos ´únicos critérios do Ocidente do século XIX, o progresso t´técnico e econômico da nossa sociedade sendo considerado como a prova brilhante da evolução histórica da qual procura-se simultaneamente acelerar o processo e reconstituir os estágios. Ou seja, o ”arcaísmo” ou a ”primitividade” são menos fases da História do que a vertente simétrica e inversa da modernidade do Ocidente; o qual define o acesso entusiasmante `a civilização em função dos valores da ´época: produção econômica, religião monoteísta, propriedade privada, família monogâmica, moral vitoriana 

2) o pesquisador, efetuando de um lado a definição de seu objeto de pesquisa através do campo empírico das sociedades ainda não ocidentalizadas, e, de outro, identificando-se `as vantagens da civilização `a qual pertence, o evolucionismo aparece logo como a justificação teórica de uma prática: o colonialismo. Livingstone, missionário que, enquanto branco, isto é, civilizado, não dissocia os benefícios da t´técnica e os da religião, pode exclamar: ”Viemos entre eles enquanto membros de uma raça superior e servidores de um governo que deseja elevar as partes mais degradadas da família humana”.

A antropologia evolucionista, cujas ambições nos parecem hoje desmedidas, não hesita em esboçar em grandes traços afrescos imponentes, através dos quais afirma com arrogância julgamentos de valores sem contestação possível. A convicção da marcha triunfante do progresso é tal que, juntando e interpretando fatos provenientes do mundo inteiro (`a luz justamente dessa hipótese central), julga-se que será possível extrair as leis universais do desenvolvimento da humanidade. Assim, encontramo-nos frente a reconstituições conjunturais que têm, pelo volume dos fatos relatados, a aparência de um corpus científico, mas assemelham-se muito, na realidade, `a filosofia do século anterior; a qual não tinha porém a preocupação de fundamentar sua reflexão na documentação enorme que será pela primeira vez reunida pelos homens do século XIX. 

Essa preocupação de um saber cumulativo visa na realidade a demonstrar a veracidade de uma tese mais do que a verificar uma hipótese, os exemplos etnográficos sendo frequentemente mobilizados apenas para ilustrar o processo grandioso que conduz as sociedades primitivas a se tornarem sociedades civilizadas. Assim, esmagados sob o peso dos materiais, os evolucionistas consideram os fenômenos recolhidos (o totemismo, a exogamia, a magia, o culto aos antepassados, a filiação matrilinear. . .) como costumes que servem para exemplificar cada estágio. E quando faltam documentos, alguns (Frazer) fazem por intuição a reconstituição dos elos ausentes; procedimento absolutamente oposto, como veremos mais adiante, ao da etnografia contemporânea, que procura, através da introdução de fatos minúsculos recolhidos em uma ´única sociedade, analisar a significação e a função de relações sociais. Isso colocado, como ´e fácil – e até irrisório – desacreditar hoje todo o trabalho que foi ralizado pelos  pesquisadores - eruditos da época evolucionista. Não custa muito denunciar o etnocentrismo que eles demonstraram em ralção aos povos 'atrasados' 68-71

Os Pais Fundadores Da Etnografia: Boas e Malinowski

Se existiam no final do século XIX homens (geralmente missionários e administradores) que possuíam um excelente conhecimento das populações no meio das quais viviam – ´e o caso de Codrington, que publica em 1891 uma obra sobre os melanésios, de Spencer e Gillen, que relatam em 1899 suas observações sobre os aborígines australianos, ou de Junod, que escreve A Vida de uma Tribo Sul-africana (1898) – a etnografia propriamente dita só começa a existir a partir do momento no qual se percebe que o pesquisador deve ele mesmo efetuar no campo sua própria pesquisa, e que esse trabalho de observação direta ´e parte integrante da pesquisa. 

A revolução que ocorrerá da nossa disciplina durante o primeiro terço do século XX é considerável: ela põe fim `a repartição das tarefas, até então habitualmente divididas entre o observador (viajante, missionário, administrador) entregue ao papel subalterno de provedor de informações, e o pesquisador erudito, que, tendo permanecido na metrópole, recebe, analisa e interpreta – atividade nobre! – essas informações. O pesquisador compreende a partir desse momento que ele deve deixar seu gabinete de trabalho para ir compartilhar a intimidade dos que devem ser considerados não mais como informadores a serem questionados, e sim como hóspedes que o recebem e mestres que o ensinam. Ele aprende então, como aluno atento, não apenas a viver entre eles, mas a viver como eles, a falar sua língua e a pensar nessa língua, a sentir suas próprias emoções dentro dele mesmo. Trata-se, como podemos ver, de condições de estudo radicalmente diferentes das que conheciam o viajante do século XVIII e até o missionário ou o administrador do século XIX, residindo geralmente fora da sociedade indígena e obtendo informações por intermédio de tradutores e informadores: este ´ultimo termo merece ser repetido. Em suma, a antropologia se torna pela primeira vez uma atividade ao ar livre, levada, como diz Malinowski, ”ao vivo”, em uma ”natureza imensa, virgem e aberta”. 75-76


Os Primeiros Teóricos Da Antropologia: Durkheim e Mauss


Boas e Malinowski, nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, fundaram a etnografia. Mas o primeiro, recolhendo com a precisão de um naturalista os fatos no campo, não era um teórico. Quanto ao segundo, a parte teórica de suas pesquisas é provavelmente, como acabamos de ver, o que há de mais contestável em sua obra. A antropologia precisava ainda elaborar instrumentos operacionais que permitissem construir um verdadeiro objeto científico. E precisamente nisso que se empenharam os pesquisadores franceses dessa época, que pertenciam `a chamada ”escola francesa de sociologia”. Se existe uma autonomia do social, ela exige, para alcançar sua elaboração científica, a constituição de um quadro teórico, de conceitos e modelos que sejam próprios da investigação do social, isto é, independentes tanto da explicação histórica (evolucionismo) ou geográfica (difusionismo), quanto da explicação biológica (o funcionalismo de Malinowski) ou psicológica (a psicologia clássica e a psicanálise principiante). p. 87-88

Durkheim e Mauss, ...– que forneceram `a antropologia o quadro teórico e os instrumentos que lhe faltavam ainda. 

Durkheim, nascido em 1858, o mesmo ano que Boas, mostrou em suas primeiras pesquisas preocupações muito distantes das da etnologia, e mais ainda da etnografia. Em As Regras do Método Sociológico (1894), ele opõe a ”precisão” da história `a ”confusão” da etnografia, e se dá como objeto de estudo ”as sociedades cujas crenças, tradições, hábitos, direito, incorporaram-se em movimentos escritos e autênticos”. Mas, em As Formas Elementares da Vida Religiosa (1912), ele revisa seu julgamento, considerando que é não apenas importante, mas também necessário estender o campo de investigação da sociologia aos materiais recolhidos pelos etnólogos nas sociedades primitivas. Sua preocupação maior é mostrar que existe uma especificidade do social, e que convém consequentemente emancipar a sociologia, ciência dos fenômenos sociais, dos outros discursos sobre o homem, e, em especial, do da psicologia. Se não nega que a ciência possa progredir por seus confins, considera que na sua ´época ´e vantajoso para cada disciplina avançar separadamente e construir seu próprio objeto. ”A causa determinante de um fato social deve ser buscada nos fatos sociais anteriores e não nos estados da consciência individual”

Durkheim não procura de forma alguma questionar a existência desta, nem a pertinência da psicologia. Mas opõe-se `as explicações psicológicas do social (sempre ”falsas”, segundo sua expressão). Assim, por exemplo, a questão da relação do homem com o sagrado não poderia ser abordada psicologicamente estudando os estados afetivos dos indivíduos, nem mesmo através de alguma psicologia ”coletiva”. Da mesma forma , que a linguagem, também fenômeno coletivo, não poderia encontrar sua explicação na psicologia dos que a falam, sendo absolutamente independente da criança que a aprende, ´é-lhe exterior, a precede e continuará existindo muito tempo depois de sua morte. Essa irredutibilidade do social aos indivíduos (que ´e a pedra-de-toque de qualquer abordagem sociológica) tem para Durkheim a seguinte consequência: os fatos sociais são ”coisas” que só podem ser explicados sendo relacionados a outros fatos sociais. Assim, a sociologia conquista pela primeira vez sua autonomia ao constituir um objeto que lhe ´e próximo, por assim dizer arrancado ao monopólio das explicações históricas, geográficas, psicológicas, biológicas. . . da época. Esse pensamento durkheimiano – que, observamos, é tão funcionalista quanto o de Malinowski, mas não deve nada ao modelo biológico – vai através de suas novas exigências metodológicas, renovar profundamente a epistemologia das ciências humanas da primeira metade do século XX, ou, mais exatamente, das ciências sociais destinadas a se separar destas. Vai exercer uma influência considerável sobre a pesquisa antropológica, particularmente na Inglaterra e evidentemente na França, o país de Durkheim, onde, ainda hoje. nossa disciplina não se emancipou realmente da sociologia. p. 88-89

Marcel Mauss (1872-1950) nasceu, como Durkheim, em Epinal, quatorze anos após este, de quem é sobrinho. Suas contribuições teóricas respectivas na constituição da antropologia moderna são ao mesmo tempo muito próximas e muito diferentes. Se Mauss faz, tanto quanto Durkheim, questão de fundar a autonomia do social, separa-se muito rapidamente do autor de As Regras do Método Sociológico a respeito de dois pontos essenciais: o estatuto que convém atribuir `a antropologia, e uma exigência epistemológica que hoje qualificaríamos de pluridisciplinar. Durkheim considerava os dados recolhidos pelos etnólogos nas sociedades ”primitivas” sob o ângulo exclusivo da sociologia, da qual a etnologia (ou antropologia) era destinada a se tornar uma ramo. 

Mauss vai trabalhar incansavelmente, durante toda sua vida (com Paul Rivet), para que esta seja reconhecida como uma ciência verdadeira, e não como uma disciplina anexa. Em 1924, escreve que ”o lugar da sociologia” está ”na antropologia” e não o inverso,. Um dos conceitos maiores forjados por Mareei Mauss é o do fenômeno social total, consistindo na integração dos diferentes aspectos (biológico, econômico, jurídico, histórico, religioso, estético. . .) constitutivos de uma dada realidade social que convém apreender em sua integralidade. ”Após ter forçosamente dividido um pouco exageradamente”, escreve ele, ”´e preciso que os sociólogos se esforcem em recompor o todo”. Ora, prossegue Mauss, os fenômenos sociais são ”antes sociais, mas também conjuntamente e ao mesmo tempo fisiológicos e psicológicos”. Ou ainda: ”O simples estudo desse fragmento de nossa vida que ´e nossa vida em sociedade não basta”. Não se pode, ainda, afirmar que todo fenômeno social ´e também um fenômeno mental, da mesma forma que todo fenômeno mental ´e também um fenômeno social, devendo as condutas humanas ser apreendidas em todas as suas dimensões, e particularmente em suas dimensões sociológica, histórica e psicofisiológica.


Cinco polos teóricos da Antropologia Contemporânea

1) A antropologia simbólica. 

Seu objeto ´e essa região da linguagem que chamamos símbolo e que ´e o lugar de m´múltiplas significações,5 que se expressam em especial através das religiões, das mitologias e da percepção imaginária do cosmos. Esse primeiro eixo da pesquisa caracteriza-se mais, como veremos, por um tipo de preocupações do que por um método propriamente dito. Trata-se de apreender o objeto que se pretende estudar do ponto de vista do sentido. O que significam as instituições ou os comportamentos que encontramos em tal sociedade? O que se pode dizer a respeito daquilo que uma sociedade expressa através da lógica de seus discursos? p. 105


Foi a antropologia que se empenhou essencialmente em mostrar a lógica precisa dos sistemas de pensamento mitológicos, teológicos, cosmológicos, que são os das sociedades qualificadas de ”tradicionais”. Toda uma corrente de pesquisas aparece na França, particularmente representativa dessas preocupações: ´e a que, a partir dos anos 30, leva Mareei Griaule e seus colaboradores a efetuar estudos sistemáticos, primeiro da mitologia dos Dogons, e depois, da religião dos Bambaras. Esses trabalhos1 vão marcar duradouramente, não apenas o africanismo francês, mas também a prática etnológica dos pesquisadores franceses.p. 111

Como estamos longe do tempo era que Morgan considerava que ”todas as religiões primitivas são grotescas e de alguma forma ininteligíveis”. Mas como estamos longe também das apreciações que são no entanto as de muitos pesquisadores contemporâneos de Griaule. De Frazer, por exemplo, que, interrogando-se sobre os mitos e as práticas rituais aos quais havia no entanto dedicado sua vida, escreve: ”loucuras, vãos esforços, tempo perdido, esperanças frustradas”. Ou de L´evy-.Bruhl, que anota em seus Carnets: os mitos são ”estórias estranhas, para não dizer absurdas e incompreensíveis”, e acrescenta: ”É preciso um esforço para se interessar por eles”. p. 113


Toda essa tendência do pensamento antropológico de que procuramos aqui dar conta coloca-se (a partir de observações minuciosas) contra esses julgamentos. Da mesma forma, opõe-se totalmente `a busca de uma determinação pela economia, que explicaria a função dos mitos dentro do sistema social. As práticas simbólicas em questão não tem de ser fundamentadas sociologicamente, pois são, pelo contrário, fundadoras da ordem cósmica e social. São elas que devem ser tomadas como fundamentais, se aceitarmos finalmente compreende-las de dentro, impregnando-nos de sua sabedoria, recolhendo o mais fielmente possível o discurso dos iniciados, e não projetando, de fora, categorias caracteristicamente ocidentais. Percebe-se então que o conjunto do edifício das sociedades africanas baseia-se numa filosofia (cf., por exemplo, Tempels, 1949) e até numa ”ontologia” que comanda a concepção toda que se tem do mundo e das relações dos homens na sociedade. p. 114


2) A antropologia social. Seu objeto situa-se claramente no campo epistemológico oriundo da economia (cf. acima M. Foucault). Nada distingue realmente seu território do território do sociólogo. Um dos conceitos operatórios a partir do qual essa perspectiva de início se instaurou, ´e o de função (Malinowski, mas também Durkheim), frequentemente ligado ao estudo dos processos de normalização destas funções (= as instituições). E um eixo ´ de pesquisa que não se interessa diretamente para as maneiras de pensar, conhecer, sentir, expressar-se, em si, e mais para a organização interna dos grupos, a partir da qual podem ser estudados o pensamento, o conhecimento, a emoção, a linguagem. Qual a finalidade de tal instituição? Para que serve tal costume? A que classe social pertence aquele que tem tal discurso, e qual ´e o n´nível de integração dessa classe na sociedade global?  p. 106

Uma outra característica desse segundo eixo de pesquisa, estreitamente vinculada ao que acabamos de dizer, merece ser sublinhada: um certo número de autores, e não dos menores (Radcliffe-Brown (1968), Evans-Pritchard (1969), ou ainda na Franca, para o período contemporâneo, Rogei Bastide (1970), Henri Desroche (1973), Georges Balandier (1974), Louis-Vincent Thomas (1975)), recusam-se a conceder uma pertinência `a distinção entre a antropologia social e a sociologia. A antropologia social não ´e profundamente diferente da sociologia, considera Radcliffe-Brown. E uma ”sociologia comparativa”.p. 116-117 

3) A antropologia cultural. Seja o modelo utilizado, biológico, psicológico (Kardiner, 1970), ou linguístico (Sapir, 1967), ´e uma antropologia frequentemente empírica, que se situa do lado da função ou, mais ainda, do sentido, em detrimento da norma e do sistema. Mas o que permite essencialmente caracterizar essa tendência de nossa disciplina ´e o critério da continuidade ou descontinuidade entre a natureza e a cultura de um lado, e entre as próprias culturas, de outro.

 a) Enquanto autores como Bateson ou Lévi-Strauss, de quem falaremos adiante, esforçam-se em pensar a continuidade (ou, mais exatamente, no caso de Lévi-Strauss, a articulação) entre a ordem da natureza e a da cultura, os que chamamos ”aculturalistas”, com autores de quem estão, no que diz respeito ao essencial, muito afastados, como Evans-Pritchard ou Devereux, privilegiam claramente a solução da descontinuidade.

 b) Enquanto um grande número de antropólogos salienta a universalidade da cultura (para Morgan, as sociedades só são pensáveis porque pertencem a um tronco comum, para Malinowski, há uma permanência das funções, e para Devereux uma ”universalidade da cultura”), os culturalistas mais uma vez, sobretudo a respeito disso, privilegiam a descontinuidade, isto ´e a coerência interna e a diferença irredutível de cada cultura.p. 106

A passagem da antropologia social (particularmente desenvolvida na França e mais ainda na Inglaterra) para a antropologia cultural (especialmente americana) corresponde a uma mudança fundamental de perspectiva. De um lado, a antropologia se torna uma disciplina autônoma, totalmente independente da sociologia. De outro, dedica-se uma atenção muito grande menos ao funcionamento das instituições do que aos comportamentos dos próprios indivíduos, que são considerados reveladores da cultura `a qual pertencem p.119


A antropologia social e a antropologia cultural têm portanto um mesmo  campo de investigação. Além disso, utilizam os mesmos m´métodos (etnográficos) de acesso a este objeto. Finalmente, são animadas por um objetivo e uma ambição idênticos: a análise comparativa.1 Mas, o que se compara no primeiro caso ´e o social enquanto sistema de relações sociais, sendo que, no segundo, trata-se do social tal como pode ser apreendido através dos comportamentos particulares dos membros de um determinado grupo: nossas maneiras específicas, enquanto homens e mulheres de uma determinada cultura, de pensar, de encontrar, trabalhar, se distrair, reagir frente aos acontecimentos (por exemplo, o nascimento, a doença, a morte).p. 120 

1) A antropologia cultural estuda os caracteres distintivos das condutas dos seres humanos pertencendo a uma mesma cultura, considerada como uma totalidade irredutível `a outra. Atenta `as descontinuidades (temporais, mas sobretudo espaciais), salienta a originalidade de tudo que devemos `a sociedade `a qual pertencemos. 

2) Ela conduz essa pesquisa a partir da observação direta dos comportamentos dos indivíduos, tais como se elaboram em interação com o grupo e o meio no qual nascem e crescem estes indivíduos. Procurando compreender a natureza dos processos de aquisição e transmissão, pelo indivíduo, de uma cultura, sempre singular (a forma como esta não apenas informa, mas modela o comportamento dos indivíduos, sem que estes o percebam), encontra várias preocupações comuns aos psicólogos, psicanalistas e psiquiatras. Utiliza portanto frequentemente os modelos conceituais destes, bem como suas t´técnicas de investigação (por exemplo, os testes projetivos, utilizados pela primeira vez em etnologia por Cora du Bois). Assim, esse campo de pesquisa, designado pela expressão ”cultura e personalidade”, extremamente desenvolvido nos Estados Unidos e relativamente negligenciado na França e Gr˜a-Bretanha, impõe-se, a partir dos anos 30, como uma das ´areas da antropologia na qual a colaboração pluridisciplinar se torna sistemática. 

3) Finalmente, a antropologia cultural estuda o social em sua evolução, e particularmente sob o ângulo dos processos de contato, difusão, interação e aculturação, isto ´e, de adoção (ou imposição) das normas de uma cultura por outra. p. 121-122


 4) A antropologia estrutural e sistêmica. 


Para a antropologia cultural, cada cultura particular, caracterizada por um conjunto de tendências tais como aparecem empiricamente ao observador, ´e um pouco comparável `as peças de um quebra-cabeça. São entidades parceladas, frutos de uma prática parceladora. E nessas condições, a cultura é concebida como uma espécie de mosaico, um traje de Arlequim. Na perspectiva na qual nos situaremos agora, as culturas são apreendidas, ou melhor, tratadas, em um nível que não é mais dado, e sim construído: o do sistema. Não se trata mais de estudar tal aspecto de uma sociedade em si, relacionando-o ao conjunto das relações sociais (antropologia social),’e muito menos tal cultura particular na lógica que lhe é própria (antropologia cultural, mas também simbólica): trata-se de estudar a lógica da cultura. Ou seja, além da variedade das culturas e organizações sociais, procuraremos explicar a variabilidade em si da cultura: o que dizem e inventem os homens deve ser compreendido como produções do espírito humano, que se elaboram sem que estes tenham consciência disso. p. 129


Estudaremos aqui não só uma, mas várias correntes do pensamento antropológico. Uns utilizam um modelo psicanalítico; outros um modelo proveniente do que Foucault designa como o campo epistemológico da economia (Mauss elabora, como vimos, as regras explicativas da troca); outros finalmente, os mais numerosos, escolhem um modelo linguístico, matemático, cibernético (L´evi-Strauss, Bateson). Mas qualquer que seja o modelo adotado, ele realiza uma passagem do consciente para o inconsciente: passagem da função para a norma (Roheim), do conflito para a regra (Mauss), do sentido para o sistema (Lévi-Strauss). 

Enquanto nos situávamos por exemplo do lado da função, o alteridade sempre corria o risco de ser considerada (e rejeitada) no espaço da extraterritorialidade: ao lado, fora. isto ´e, para sempre diferente. Assim, para a psicologia pre-freudiana, o normal e o anormal não têm nada em comum. Para a etnologia de L´evy-Bruhl (1933), existe uma ”mentalidade primitiva” exclusiva de tudo que ´e próprio do homem da lógica. Para Griaule, finalmente (1966), `as instituições e mitologias plenamente significantes da África tradicional,  opõe-se a insignificância do Ocidente industrial. Inversão de perspectiva neste caso, em relação ao anterior, mas que se inscreve no mesmo horizonte epistemológico. Ao contrário, quando a atividade epistemológica começa a situar-se do lado da norma (e não mais da função), da regra (e não mais do conflito), do sistema (e não mais do sentido), não ´e mais possível pensar que os doentes mentais são ”loucos”, a ”mentalidade primitiva”, ”absurda”, e os mitos ”insignificantes”. O que desmorona, então, é a pertinência dos pares antinômicos do normal e do patológico, do lógico e do ilógico, do sentido e do não sentido. Se insistimos tanto desde já sobre esse quarto polo da pesquisa, ´e porque, com ele, o campo epistemológico do sabei sobre o homem muda radicalmente pela segunda vez desde o final do século XVIII (cf. p. 53 deste livro). E ´e, de fato, em torno das obras de Freud (o inconsciente explicativo do consciente), Saussure, e depois Jakobson (a língua explicativa da palavra), de Lévi-Strauss e dos estruturalistas (a prioridade dada ao sistema sobre o sentido), que se reorganizará o conhecimento antropológico contemporâneo. 

Na antropologia psicanalítica, como na antropologia estrutural, estima-se que além da surpreendente diversidade das formações psicológicas ou das produções culturais localizadas a nível empírico existe o que Bastian já chamava de ”unidade psíquica da humanidade”. Mas esta deve doravante ser pensada, não mais ao nível das significações vividas, mas ao nível do sistema (inconsciente). Uma das principais questões que se colocará então ´éa seguinte: quais são as estruturas inconscientes do espírito que atuam, tanto nas formas elementares e complexas do parentesco, quanto no mito, na obra de arte?. . . p. 107-108



5) A antropologia dinâmica. Reunimos nesse termo um eixo da pesquisa antropológica contemporânea que se situa no horizonte do que Foucault6 chama de campo sociológico, e que procura estudar as relações de poder.

As interrogações dos autores dos quais trataremos não estão distantes das da sociologia, e alguns inclusive preferem qualificar-se de sociólogos. Uma das características de suas contribuições para a antropologia do século XX, e mais especificamente, da segunda metade do século XX, consiste, a meu ver, em reorientar a antropologia social, operando uma ruptura total com o funcionalismo em seus pressupostos, ao mesmo tempo a históricos (sociedades imóveis que podem ser estudadas como se a colonização não existisse) e finalistas (instituições visando satisfazer as necessidades). Para esses autores, pelo contrário, convém não isolar essa ´área particular do homem que seria a história. Esta ´e parte integrante do campo antropológico. Por isso, as questões colocadas são as seguintes: qual é a dinâmica de tal sistema social? De onde vem? Quais são as modalidades atuais de suas transformações? Esses cinco polos em torno dos quais se organiza a antropologia contemporânea não têm nada de exclusivo. São convém de pesquisa que podem coexistir dentro de uma mesma escola de pensamento, ou mesmo de um ´único pesquisador.7


O que caracteriza essencialmente as diferentes tendências dessa antropologia que qualificamos aqui de dinâmica, é sua reação comum frente `a orientação, do seu ponto de vista conservadora, que pode ser encontrada dentro dos quatro polos de pesquisa que, para maior clareza, acabamos de distinguir. Praticamente, de fato, todas as perspectivas etnológicas que se elaboram a partir dos anos 30 (a antropologia social, simbólica, cultural) e que conhecem, para muitas, uma renovação durante os anos 50, com o impulso particularmente da análise estrutural, estão animadas por uma abordagem claramente antievolucionista. p. 141

https://pedropeixotoferreira.files.wordpress.com/2010/03/laplantine_aprender-antropologia.pdf