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segunda-feira, 14 de novembro de 2022

10 critérios para se analisar uma obra de arte

 





1-Ponto de vista factual: 

Sob o ponto de vista factual, o conteúdo da obra de arte é aquilo que ela representa, ou seja, aquilo que ela objetivamente exibe. Em um quadro cujo tema for uma paisagem, o conteúdo factual se comporá das árvores que ele mostra, das construções rurais, das montanhas, etc. O conhecidíssimo muralA Última Ceia ou, no título italiano, II Cenacolo, de Leonardo da Vinci, tem, como conteúdo factual, treze homens em diferentes atitudes sentados atrás de uma mesa.... Em se tratando de música, o conteúdo factual se compõe dos sons que ela nos faz ouvir. Num bailado, o conteúdo factua l é aquilo que se encontra em cena: os corpos dos bailarinos com seus movlme.ntos.e a música ouvida. E assim por diante. 

A apreensão do conteúdo factual se concretiza simples e tão somente pela identificação, em nível meramente descritivo, dos elementos que compõem a obra A operação mental exigida para essa Isto é, as cenas e objetos representados em um quadro, os sons em uma música, a coreografia em um bailado, assim em diante. Essa apreensão do conteúdo se realiza descritivamente, levando-se em consideração os elementos constitutivos de determinada obra. 


2-Ponto de vista expressional: 

Podemos defini-lo como a parcela da obra que “mexe” com o sentimento do observador. É um atributo que está presente na obra e que afeta o observador, visto que as reações deste não são produzidas aleatoriamente. A habilidade do artista induz sensações e sentimentos que promovem essas reações de maneira quase unânime. Assim, Guernica, de Picasso, é um quadro incômodo quando analisado com atenção. Assim como o filme Dançando no escuro, de Lars Von Triers, tornou-se insuportavelmente doloroso para a maioria daqueles que o assistiram. 


O conteúdo expressional é atributo da obra, e não do observador, porque as reações deste último não são fruto do acaso. É o artista, com sua competência, que consegue induzir no observador um sentimento escolhido e habilmente desencadeado. Por exemplo: Os Fuzilamentos do 3 de Maio, de Francisco Goya y Lucientes (Saragoza, 1746 - Bordeaux, 1828). 


3- Ponto de vista técnico: 

a obra é fruto dos elementos materiais e imateriais utilizados pelo artista para realizá-Ia. É a tela e a competência necessária para pintar, é a madeira e a habilidade do escultor, é o piano e o engenho musical, é a palavra e o estro poético ... É, enfim, o material utilizado - seja tela, madeira, piano ou palavra - e o conhecimento da teoria, isto é, das regras e até segredos , que permitem o bom uso dos materiais escolhidos. 

 Se o observador conhece um pouco das questões técnicas envolvidas na produção de uma obra, certamente possuirá uma gama maior de elementos que permitirão compreendê-la. Por exemplo, quando um fotógrafo escolhe certo ângulo de composição, na verdade, ele está direcionando o olhar do espectador para algo que lhe chamou a atenção, valendo-se da luz, do motivo e dos recursos técnicos que seu equipamento lhe permite.


Sob o ponto de vista técnico, portanto, a apreciação da obra de arte diz respeito, simultaneamente, à competência do artista e às qualidades do material. Enquanto os enfoques factual e expressional, salvo exceções, não exigem conhecimentos especiais do observador, o conteúdo técnico impõe-lhe uma bagagem especializada de informações. A apreensão do conteúdo técnico será bem menor sem tal bagagem. Há uma disparidade considerável entre o que vê na obra o espectador desprevenido e aquilo que descobre nela o especialista. 


4-Ponto de vista convencional: 

Durante a apreciação da obra de arte, a absorção de seu conteúdo convencional pode, portanto, exigir o concurso de variadas fontes para a compreensão de símbolos pelos quais se identificam divindades mitológicas, santos católicos ou muitas outras entidades e representações de convenções socialmente adotadas. A descrição dessas figuras é tarefa da Iconografia, preciosa auxiliar da História da Arte. Sem as informações iconográficas também é possível fruir a obra. Com elas, porém, a fruição aumenta de intensidade. Para evitar confusões, tentemos deixar tão clara, quanto possível a fronteira entre o conteúdo factual e o conteúdo convencional da obra de arte. Em ambos há, em essência, um ato de identificação de objetos. No entanto, essa identificação se faz em níveis diferentes. Tomemos novamente a cruz. O índio a vê como estranho tronco de madeira e eu, como cruz e símbolo cristão. O índio não lhe alcança nem o aspecto factual, nem o convencional, enquanto eu apreendo ambos....Pois bem. O romano do ano 21, embora identificando o conteúdo factual da imagem, isto é, vendo nele uma cruz como objeto de seu mundo judiciário penal, não poderia imaginar o conteúdo convencional hoje identificado por um cristão. Faltavam ainda alguns anos para que ocorresse a crucificação de Cristo e, só depois dessa execução, a cruz viria a ser adotada, como seu símbolo, pelos cristãos.

 “O conteúdo factual da obra de arte diz respeito aos objetos pelo que eles são, enquanto o conteúdo convencional interessa-se por eles como símbolos” . 


5- Ponto de vista estilístico: 

A pluralidade de culturas explica a pluralidade de estilos artísticos, já que cada obra de arte é sempre parte integrante do mundo cultural de um povo. A obra não é peça isolada. É fração de uma cadeia de fatos à qual se integra. Ao observarmos a obra sob o ponto de vista estilístico, colocamos mentalmente em relevo a ligação que existe entre a obra e a corrente cultural dentro da qual foi engendrada. No entanto, a noção de conteúdo estilístico não se esgota na identificação da corrente artística à qual a obra pertence. Além desse conteúdo estilístico coletivo, fruto da ambiência social, há que se considerar o conteúdo estilístico individual, resultante da personalidade do artista criador. A obra sempre é relacionada a uma cultura, mas seu autor é um indivíduo. Se é bem verdade que os valores e padrões do mundo cultural do artista criador, armazenados em sua mente, influenciam a criação da obra, é inconteste que dessa mesma mente romana.a marca de uma personalidade, a qual também se transmite à obra. Esse cunho pessoal é o estilo individual do artista e também integra aqui lo que denominamos conteúdo estilístico. ...


Vamos fazer uma comparação entre o Cristo em mosaico da cúpula da Igreja de Dafne, do século onze; o Cristo da Transfiguração de Rafael Sanzio (Urbino, 1483 - Roma, 1520), do século dezesseis; e o Cristo e sua Cruz, do mexicano José Orozco (Zapotlán, 1883 - Cidade do México, 1949), do nosso século. Embora os três representem a mesma figura, identificável por qualquer pessoa minimamente informada sobre o Cristianismo, salta aos olhos a diferença entre eles. 


 

6-Ponto de vista atualizado:

As pinturas executadas nas paredes das mastabas e de outros tipos de túmulos do Egito antigo, assim como os demais objetos neles encontrados, tinham originalmente função utilitária, serviriam ao morto em sua vida futura. No entanto, hoje, essas criações são apreciadas em museus não mais como utensílios sacros ou apenas de interesse histórico, mas também por seu aspecto artístico. Os artistas do Egito helenizado que costumavam pintar numa tábua o retrato do morto, para aplicá-Ia sobre a cabeça da respectiva múmia, e deixaram para os milênios posteriores exemplares da hoje raríssima pintura à encáustica, técnica de pintar com cera derretida, não pretendiam que tais obras viessem a ser objeto de degustação estética por parte de turistas do mundo inteiro. Esses retratos fúnebres foram concebidos para permanecer na escuridão dos túmulos, bem longe de olhares profanos. Quando observamos tais produções egípcias, nós, homens de hoje, as vemos com seu conteúdo mentalmente alterado ou, se preferirem, mentalmente atualizado, isto é, adaptado aos valores atuais

A obra de arte não se limita apenas àquilo que ela mostra ou simboliza, nem tampouco ao seu enquadramento estilístico. Muitas vezes, a obra de arte se "completa" com aquilo que nela vemos. A fruição artística pressupõe sempre, além da obra em si, a existência de um observador. O aparato mental desse observador deve ser levado em conta. Envelhecida pelos séculos ou levada de um lugar para outro, a obra de arte deslocada no tempo e no espaço pode acabar sendo vista de maneira diversa daquela como a viam os homens de seu tempo ou lugar. Seus contemporâneos ou seus conterrâneos a viam sob a mesma óptica do seu criador. Passado o tempo ou mudado o lugar, um novo espectador, pertencente a outro universo cultural, pode fazer ajuizamento diferente da obra e, até mesmo, tirar dela um desfrute antes insuspeitado. 

 

7-  Ponto de vista institucional: 

 Se um importante museu expõe a obra do artista X e não a do artista Y, posso ser levado a crer que o artista X é mais importante do que o artista Y. Se a mais categorizada editora do país edita o romance de determinado escritor, fico propenso a imaginar que ele não deve ser tão medíocre como diziam. Se a programação do Teatro Municipal inclui determinadas músicas, julgarei razoável supor que elas sejam valiosas. Se o crítico de cinema do jornal condena certo filme, talvez nem me arrisque a assisti-lo. Essas instituições todas e outras equivalentes hierarquizam as obras de arte e lhes atribuem um valor que denominaremos institucional.

A visão in~titucional da obra é gerada de maneira formal, enquanto a simples atualização se de envolve por estímulos sociais espontâneos, nem sempre controláveis, geralmente livres e, com freqüência, até contraditório. Entre uma e outra vai a mesma diferença que separa o aprendizado infornal do aprendizado escolar. Todas as pessoas aprendem a falar graças ao convívio social. É somente depois, na escola, que vão descobrir oficialmente as regras da gramática.

 

8-Ponto de vista comercial: 

“como qualquer objeto material, a obra de arte tem um preço. O valor comercial de uma obra resulta da soma de vários fatores, tais como a matéria-prima empregada, a mão-de-obra necessária, as características finais do produto, a raridade da peça, eventualmente a notoriedade do artista, etc.”


9- Ponto de vista neofactual: 

Nada é infenso ao passar do tempo. O correr dos anos, dos séculos, dos milênios desgasta, recobre, corrói, sedimenta, transforma todas as coisas e, dentre elas, também as obras de arte. Quando alguém observa uma tela antiga em um museu, na verdade está vendo a obra mais o escurecimento provocado pelo verniz envelhecido. Os vernizes aplicados como proteção têm o inconveniente de escurecer com o decorrer de longos períõdos. Muitos quadros que nos mostram hoje cenas mal iluminadas, bruxuleantes, ostentaram, quando novos, cores vivas e luminosas. 

Por outro lado, quando se promove a restauração da obra, tentando fazê-Ia voltar a sua feição original, pode ocorrer o problema inverso. Em décadas remotas, houve restauradores que se notabilizaram-põr ·" Iavar" de modo tão radical os quadros que, junto com os vernizes, removeram também as veladuras. Para harmonizar as cores, muitos artistas lançaram mão do recurso da veladura, isto é, aplicaram na fase final do trabalho uma demão de tinta transparente, mas colorida, lançando assim uma tênue película uniformemente colorida por sobre todas as cores utilizadas na obra. Essa cor comum, aplicada assim em veladura (de "velar", cobrir), tem a função de harmonizar o conjunto, pois as tintas todas, ao transparecerem, mostram-se igualmente tingidas pela cor da veladura. Pois bem, os restauradores mencionados, ao removerem os vernizes envelhecidos, arrancavam junto a veladura, adulterando a obra original e expondo cruamente à vista cores que o autor antes amenizara. É como se mostrassem o quadro em uma fase anterior ao seu término pelo artista.

Essa mudança material sofrida pelo objeto artístico denominamos, na edição anterior deste livro, conteúdo acrescido. Preferimos, aqui e doravante, denominá-lo conteúdo neofactual. Qualquer que seja o nome usado, o que se quer ressaltar sob este ponto de vista é que a obra passa a exibir algo originalmente não previsto pelo artista. 

O elemento neofactual pode impregnar de tal modo a obra que o observador relutará, às vezes, em acreditar tenha ela sido no passado diferente do que é agora. 

Por exemplo. Proponho ao leitor o seguinte: "- Imagine um templo grego". Seguramente se formará na mente de todos os leitores a imagem de uma construção guarnecida por altas colunas e encimada por um frontão de tímpano triangular. Esse edifício será imaginado em cor de pedra clara, provavelmente de mármore branco. Essa é a idéia que fazemos a propósito de templos gregos, porque os que nos restaram, ainda que em ruínas, são assim. Por isso, os leitores pensarão de acordo com esse estereótipo, até mesmo aqueles que sabem que os gregos pintavam suas construções e pintavam-nas com cores vivas e estridentes: vermelhos, azuis, dourados ... Fica difícil admitir que o Partenon, no século quarto antes de Cristo, quase não exibisse a cor de suas pedras, tão coberto de tinta se encontrava. 


10-Ponto de vista estético:

A apreensão do conteúdo estético é uma forma de conhecimento que se faz através dos sentidos, mas opera antes de atingir o nível da razão. No dizer muito apropriado de Harold Osborne, "a experiência estética é um modo de cognição através da apreensão direta ( ... ) é uma ampliação e uma intensificação da percepção sensorial" (A apreciação da arte, São Paulo, Cultrix, 1978, p. 206). É num relance que o observador absorve boa parte do conteúdo estético da obra, um relance "gestáltico"*, um relance no qual percebe o conjunto da obra e, simultaneamente, apreende também os pormenores. A apreensão do conteúdo estético opera como se fosse uma sucção mental. 

COSTELLA, A. F. Para apreciar a arte: roteiro didático. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2001.