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terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Democracia - igualdade -educação uso dessa tríade a favor do reino das trevas- Quando a democracia assume o papel das ditaduras. C. S Lewis

O cenário é o Inferno, no jantar anual da Academia de Treinamento de Tentadores para jovens demônios, o diretor, Dr. Remeleca, acabou de brindar à saúde dos seus convidados.

Discurso de um demônio:

Democracia é a palavra que vocês devem usar para mantê-lo no cabresto. O ótimo trabalho de corrupção da língua humana que nossos especialistas em Filologia já fizeram torna desnecessário alertá-los para o fato de que eles nunca poderão dar a essa palavra um sentido claro e definível. Aliás, eles não o teriam de qualquer maneira. Jamais lhes ocorrerá que a democracia é propriamente o nome de um sistema político de votação e que isso tem apenas uma conotação muito tênue e remota com o que vocês estão tentando lhes vender. Nem, é claro, jamais deverão receber a permissão para levantar a questão de Aristóteles: Se o “comportamento democrático” significa o comportamento preferido pelas democracias ou o comportamento que vai preservar a democracia. Pois, se eles o fizerem, dificilmente lhes deixará de ocorrer que essas coisas não têm que ser iguais. Vocês devem usar a palavra como se fosse puramente mágica; caso prefiram, usem-na apenas pelo seu poder mercadológico. Trata-se de um nome que eles veneram. E é claro que está associado ao ideal político de que os homens devam ser tratados com igualdade. E vocês, então, deveriam fazer uma transição furtiva na mente deles, desse ideal político para uma crença objetiva de que todos os homens são realmente iguais. Especialmente aqueles homens que vocês estiverem manipulando. 


Consequentemente, vocês podem usar a palavra Democracia para sancionar o mais degradante (e também o menos apreciável) de todos os sentimentos humanos. Podem fazê-lo assumir um tipo de conduta não apenas descarada, mas até com certo brilho positivo de autoaceitação, que, se não for defendida pela palavra mágica, será ridicularizada por todos. O sentimento a que me refiro, obviamente, é aquele que predispõe uma pessoa a dizer “eu sou tão bom quanto você”. A primeira e mais óbvia vantagem disso é que, dessa forma, vocês o induzem a fazer de uma bela e deslavada mentira o centro de sua vida. Não quero dizer com isso apenas que o que afirmam seja pura e simplesmente falso, que eles não se equiparam em termos de bondade, honestidade e bom senso aos outros mais do que nas suas medidas de peso e altura ou na largura de sua cintura.

 Quero dizer que nem mesmo eles acreditam nisso. Nenhuma pessoa que diga “Eu sou tão bom quanto você” acredita nisso, e ele não o diria se acreditasse. O cão São Bernardo jamais dirá isso para um cachorro de brinquedo, nem o estudioso para o ignorante, nem a pessoa que tem um emprego para um mendicante, nem a mulher bonita para aquela de aparência mediana. A reivindicação de igualdade, fora do campo estritamente político, é feita apenas por aqueles que se sentem, de uma forma ou de outra, inferiores. O que ela expressa são precisamente a coceira, a esperteza, a consciência distorcida de uma inferioridade que o paciente se recusa a aceitar. E, por isso, ele se sente ofendido. Sim, e, portanto, se ressente de qualquer tipo de superioridade nos outros; passa a caluniá-la e a desejar o seu aniquilamento. Na verdade, suspeita que a mera diferença seja uma reivindicação de superioridade. Ninguém deve ser diferente dele na voz, nas roupas, nas maneiras, nas recreações, nas preferências de comida. “Lá vai alguém que fala inglês de modo mais claro e agradável aos ouvidos do que eu — deve ser uma afetação vil, arrogante, cheia de pompa. Aqui está um camarada que diz que não gosta de cachorros — sem dúvida pensa que é bom demais para eles. Lá vai outro que não pôs uma moeda no jukebox — deve ser um daqueles eruditos que faz tudo para ser notado. Se eles fossem o tipo certo de sujeito, seriam iguaizinhos a mim. Não têm o direito de ser diferentes. É antidemocrático”. Agora, esse fenômeno útil não é nenhuma novidade. Tornou-se público e notório pelo nome de inveja, coisa que já era conhecida dos seres humanos há milhares de anos. Mas, até aqui, eles sempre a consideraram o vício mais odioso e também o mais cômico de todos. Os que estavam conscientes de sentir inveja tinham vergonha disso; aqueles que tinham a consciência dela não a perdoavam nos outros. A novidade prazerosa da situação presente é que vocês podem sancioná-la — torná-la respeitável ou até louvável pelo uso encantatório da palavra mágica democrático.


Sob a influência desse encantamento, aqueles que são, de um modo ou de outro, inferiores podem se dedicar de forma mais intensa e com mais sucesso do que nunca a puxar para baixo todo o restante do mundo, trazendo-os ao seu próprio nível. Mas isso não é tudo. Sob a mesma influência, aqueles que chegaram ou puderam chegar mais perto da humanidade no sentido mais genuíno, na verdade se afastaram dela, precisamente por medo de serem antidemocráticos. Fui informado, a partir de fontes seguras, de que os jovens de hoje muitas vezes suprimem um gosto incipiente por música clássica ou boa literatura porque isso os impediria de serem iguais a todo o mundo, e que as pessoas que realmente desejassem ser, e recebem a graça que os capacita para ser honestas, castas ou temperantes, a recusam, pois aceitá-la poderia torná-las diferentes, ofender novamente a “normalidade das coisas”, tirá-las do círculo da “irmandade”, prejudicar sua integração com o grupo. Elas poderiam tornar-se indivíduos (que horror!). 

Tudo está resumido na prece que supostamente uma jovem pronunciou recentemente: “Oh Deus, faça de mim uma garota normal do século vinte!” Graças aos nossos esforços, isso vai significar cada vez mais: “Faça de mim uma devassa, uma débil mental, uma parasita”. Nesse meio-tempo, como um efeito colateral bem-vindo, os poucos (cada vez menos) que não se encaixam na normalidade, tornando-se “como todo o mundo” de forma regular, homogênea e integrada, tendem cada vez mais a se tornarem os verdadeiros pedantes, excêntricos que todo o mundo de qualquer forma já achava que eles eram. Pois a suspeita muitas vezes gera a coisa suspeitada. (“Já que, independente do que eu faça, os vizinhos vão me achar uma bruxa ou um agente comunista, aquilo de que me rotularem, irei acabar me tornando”.) Em consequência disso, temos agora uma intelligentsia que, embora seja muito pequena, é muito útil à causa do Inferno. 


Mas isso não passa de um efeito colateral. Gostaria de fixar a sua atenção no movimento vasto, completo, rumo ao descrédito, e, finalmente, à eliminação de todo o tipo de excelência humanamoral, cultural, social ou intelectual. E não é lindo ver como a Democracia (no sentido mágico) está agora fazendo para nós todo o trabalho outrora feito pelas ditaduras mais antigas e pelos mesmos métodos? Vocês se lembram da história de como um dos ditadores gregos (eles os chamavam de “tiranos” na época) enviou um mensageiro a outro ditador para solicitar o seu conselho sobre os princípios do governo. O segundo ditador conduziu o mensageiro a um milharal e lá cortou com sua foice todas as hastes que estivessem um centímetro acima do nível das outras. A moral da história é simples: Não admita que ninguém entre os seus súditos se destaque, não deixe sobreviver ninguém que seja mais sábio, melhor, mais famoso ou até mesmo mais bonito que a massa. Passe a régua em todos para ficarem no mesmo nível; todos escravos, todos números, todos zé-ninguém. Todos iguais. Assim, os tiranos podem, em certo sentido, praticar a “democracia”.


Mas agora a “democracia” é capaz de fazer o mesmo trabalho sem qualquer outra tirania que não seja a sua própria. Ninguém agora necessita passar pelo campo com uma foice. As hastes menores vão agora passar a cortar fora as pontas das mais altas. As grandes começarão a cortar as suas próprias pontas pelo desejo de serem como todo o mundo. Já disse que garantir a danação dessas almazinhas, dessas criaturas que quase deixaram de ser indivíduos, é uma tarefa árdua e ardilosa. Mas, se vocês fizerem o esforço necessário e empregarem suas habilidades, poderão prever, com certo grau de certeza, o resultado. Os grandes pecadores parecem uma presa mais fácil de capturar. Mas acontece que eles são imprevisíveis. Mesmo depois de vocês os terem manipulado por setenta anos, o Inimigo poderá muito bem arrancá-los das suas garras no ano seguinte. Vejam bem, eles são capazes de um arrependimento verdadeiro. Eles têm uma consciência da culpa verdadeira. Se as coisas tomarem o rumo errado, estarão tão prontos a desafiar as pressões sociais em nome do Inimigo quanto estavam para desafiá-las em nosso nome. De certa forma, é mais trabalhoso rastrear e golpear uma mosca que foge rapidamente do que atirar a pouca distância num elefante selvagem. Mas o elefante dará mais trabalho se vocês não forem bons de mira. A minha experiência, como já disse, deu-se no setor inglês, e ainda recebo mais notícias a respeito dele do que dos outros setores. Assim, o que eu vou dizer agora poderá não se aplicar totalmente aos setores onde alguns de vocês vão atuar. Mas vocês poderão fazer as adaptações necessárias quando chegarem lá. Apesar disso, quase que com certeza, o que direi terá alguma aplicação. Se ela for muito pequena, vocês deverão trabalhar para fazer com que o país de que estiverem encarregados se torne mais parecido com aquilo em que a Inglaterra já se tornou.


 Naquela terra promissora, o espírito do eu sou tão bom quanto você já passou a ser mais do que uma influência puramente social e começa a se infiltrar no sistema educacional. Não sei dizer com certeza até onde ele chegou no presente momento, e isso não importa. Uma vez que tenham entendido qual é a tendência, poderão facilmente prever seus desdobramentos futuros; especialmente se nós mesmos desempenharmos um papel nesses desdobramentos. O princípio básico da nova educação é que os alunos ignorantes e vagabundos não devem sentir-se inferiores aos alunos inteligentes e esforçados. Isso seria “antidemocrático”. Essas diferenças entre os alunos — porque se trata, muito obviamente, de diferenças flagrantemente individuais — precisam ser disfarçadas. Isso pode ser feito em vários níveis. 

Nas universidades, as provas devem ser elaboradas de tal forma que quase todos os alunos obtenham boas notas. Os vestibulares devem ser feitos para que todos ou quase todos os cidadãos possam entrar nas universidades, quer tenham a capacidade (ou o desejo) de se beneficiarem com uma educação superior, quer não. Nas escolas, as crianças que forem muito estúpidas ou preguiçosas demais para aprender línguas, matemática e ciências podem ser levadas a fazer aquilo que as crianças costumavam fazer em seu tempo livre. É possível deixá-las, por exemplo, fazer bonequinhos de lama e dar a isso o nome de modelagem. Mas, em todo esse tempo, em nenhum momento deve-se mencionar o fato de elas serem inferiores às crianças que estão empenhadas. 

Não importa qual seja a bobagem em que estiverem envolvidas, a nova educação deve contemplar — penso que os ingleses já estejam usando essa expressão — a “igualdade de valor”. E é possível conceber um esquema ainda mais drástico. As crianças que estiverem aptas a passarem para uma classe mais adiantada podem ser mantidas na classe anterior usando métodos artificiais, com a justificativa de que as outras poderiam contrair algum tipo de trauma — por Belzebu, que palavra mais útil! — por serem deixadas para trás. Assim, o aluno mais inteligente permanecerá democraticamente acorrentado a seus colegas da mesma idade por toda a sua carreira escolar, e um menino capaz de compreender Ésquilo ou Dante será obrigado a ficar sentado, ouvindo seus contemporâneos tentando soletrar “Vovô viu a uva”. Em uma palavra, não seria absurdo esperar pela extinção virtual da educação quando o espírito do Eu sou tão bom quanto você tiver terminado de abrir seu caminho. Todos os incentivos para aprender e todas as penalidades por não se querer aprender vão desaparecer. Os poucos que possam querer aprender serão pervertidos; afinal, quem são eles para querer se destacar de seus colegas? De qualquer forma, os professores — ou devo dizer as babás? — estarão muito ocupados dando assistência aos ignorantes e tapinhas nas suas costas para gastar o seu tempo com o ensino de verdade. Não temos mais que planejar e trabalhar duro para espalhar prepotência imperturbável e ignorância incurável entre os homens. Os pequenos vermes mesmos farão isso por nós. É claro que isso só aconteceria se toda a educação se tornasse estatal. E é isso mesmo que vai acontecer, pois faz parte do mesmo movimento. 

Os impostos, designados para esse propósito, estão liquidando a classe média, a classe que estava preparada para salvar, gastar e fazer sacrifícios a fim de dar educação para seus filhos em escolas particulares. A extinção dessa classe, além de se associar à extinção da educação felizmente, é um efeito inequívoco do espírito que diz “eu sou tão bom quanto você”. Foi esse, afinal de contas, o grupo social que deu aos humanos a maioria absoluta dos seus cientistas, médicos, filósofos, teólogos, poetas, artistas, compositores, arquitetos, juristas e administradores. Se algum dia houve um feixe de trigo que necessitava que suas pontas fossem cortadas, com certeza era esse. Como um político inglês observou não muito tempo atrás: “Uma democracia não deseja grandes homens”. Seria despropositado perguntar a essa criatura se por desejar ela quer dizer “necessitar” ou “gostar de”. Mas é melhor deixar as coisas claras, pois aqui a questão de Aristóteles surge de novo. 

Nós, no Inferno, daríamos as boas-vindas ao desaparecimento da Democracia no senso estrito da palavra, o tal sistema político. Como todas as outras formas de governo, a democracia trabalha muitas vezes a nosso favor; mas, de uma maneira geral, ela está menos do nosso lado do que as outras formas. E o que temos de nos dar conta é que a “democracia” no sentido diabólico (eu sou tão bom quanto você, ser como todo o mundo, pertença ao grupo) é o instrumento mais refinado que podemos ter para extirpar as democracias políticas da face da terra. Pois a “democracia” ou o “espírito democrático” (no sentido diabólico) produz uma nação desprovida de grandes homens, uma nação composta essencialmente de analfabetos, seres moralmente frouxos pela falta de disciplina na juventude, cheios de autoconfiança que as bajulações criaram em cima da ignorância, e molengas em virtude de toda uma vida de mimos. E é nisso que o Inferno deseja que todas as pessoas democráticas se tornem.

 Pois quando uma nação assim entra em conflito com uma nação em que os filhos foram postos para estudar, onde o talento é colocado em um alto patamar, e onde a massa ignorante não é autorizada a ter nenhuma voz em assuntos públicos, apenas um resultado é possível. Recentemente, uma democracia surpreendeu-se ao descobrir que a Rússia a havia superado no avanço científico. Que exemplar delicioso de cegueira humana! Se toda aquela sociedade tem a tendência de se opor a qualquer tipo de excelência, como é que esperava que seus cientistas fossem excelentes? Nossa função é encorajar o comportamento, as maneiras, toda a disposição mental que as democracias naturalmente preferem e apreciam, porque são precisamente as coisas que, se descontroladas, irão destruir a democracia. Vocês podem até mesmo perguntar-se por que os próprios humanos não enxergam isso. Mesmo que não tenham lido Aristóteles (isso seria antidemocrático), era de se esperar que a Revolução Francesa lhes tivesse ensinado que o comportamento que os aristocratas apreciam naturalmente não é o comportamento que preserva a aristocracia. Então, eles poderiam ter aplicado o mesmo princípio a todas as formas de governo. Mas eu não gostaria de terminar nesse tom. Eu jamais gostaria — o Inferno nos livre! — de encorajar em suas mentes a ilusão — que vocês têm de incutir nas mentes de suas vítimas humanas — de que o destino das nações seja, em si mesmo, mais importante do que aquele de almas individuais. A derrota de povos livres e a multiplicação de estados escravos são para nós um meio (além, é claro, de ser divertido), mas o fim real é a destruição de indivíduos, pois somente os indivíduos podem ser salvos ou condenados, tornar-se filhos do Inimigo ou nosso alimento. O valor supremo, para nós, de qualquer revolução, guerra ou fome está na angústia individual, na traição, no ódio, na raiva e no desespero que elas são capazes de produzir.

 Eu sou tão bom quanto você é um meio útil para a destruição de sociedades democráticas. Mas essa ideia tem um valor muito mais profundo como um fim em si mesma, como um estado mental, que, ao excluir a humildade, a caridade, a satisfação e todos os prazeres da gratidão ou da admiração desvia um ser humano de quase toda estrada que poderia, por fim, conduzi-lo aos Céus. 


Mas vamos agora à parte mais prazerosa de minha tarefa. É minha incumbência propor um brinde em nome dos convidados, à saúde do Diretor Remeleca e da Academia de Treinamento de Tentadores. Encham suas taças. O que é isto que estou vendo? E esse delicioso buquê que exala do copo? Será possível? Senhor Diretor, retiro todas as minhas palavras ásperas com relação ao jantar. Pelo que posso perceber, e pelo odor que sinto, mesmo sob as precárias condições de guerra, a adega da Academia ainda possui algumas garrafas do clássico vinho Fariseu. Ora, ora, ora. É como nos velhos tempos… Segurem a taça debaixo de suas narinas por um momento, gentis-demônios. Segurem-na contra a luz. Olhem só para essas pequenas listras de fogo que se retorcem e emaranham, como se estivessem lutando entre si. E estão mesmo. Vocês sabem como esse vinho é destilado? Diferentes tipos de fariseus foram colhidos, pisoteados e fermentados num só recipiente para produzir um sabor delicado. Trata-se de tipos que foram bastante antagônicos uns para com os outros na Terra. Para alguns, seu único interesse eram regras, relíquias e rosários; outros só se interessavam por roupas sinistras, expressões tristes e fúteis e tradicionais abstinências ao vinho, ao carteado ou ao cinema. Ambos tinham em comum a presunção e a distância quase infinita entre a sua atitude verdadeira e qualquer coisa que o Inimigo realmente é ou ordena. A perversidade de outras religiões era a única doutrina realmente viva na religião de cada um deles; a difamação era o seu evangelho e difamar os outros, a sua litania. Como eles se odiavam uns aos outros lá em cima onde o sol brilha! Quanto mais ainda se odeiam agora que eles estão para sempre associados, mas nunca reconciliados. Seu assombro, seu ressentimento, combinados à exasperação de sua maldade eternamente impenitente, passando para a nossa digestão espiritual, funcionará como fogo. Fogo negro. Tendo dito isso, meus amigos, será péssimo para nós se o que a maioria dos humanos entenderem por “religião” se esvanecer da Terra, pois ela ainda pode nos enviar pecados realmente deliciosos. A fina flor do profano só pode crescer na vizinhança íntima do sagrado. Em nenhum lugar a nossa tentação é tão bem-sucedida quanto precisamente aos pés do altar. Vossa Iminência, vossas Malevolências, queridos Espinhentos, Sombrios e demais Gentis demônios: ergamos nossas taças e brindemos ao Diretor Remeleca e à Academia!"  CARTAS DE UM DIABO A SEU APRENDIZ

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Você foi criado para adorar? Ou foi te dado o privilégio de contemplar o ser mais sublime do universo? C.S.Lewis





VOCÊ FOI CRIADO PARA ADORAR OU PARA TER O PRIVILEGIO DA AUTOCONSCIENICA, CONSCIENCIA  DO MUNDO E DO CRIADOR?

ADORAR É UMA CONSEQUENCIA DA CRIAÇÃO HUMANA AO CONTEMPLAR O CRIADOR OU UMA FINALIDADE?



"UMA PALAVRASOBRE LOUVOR É POSSÍVEL (e eu até espero que seja assim) que este capítulo seja desnecessário para a maioria das pessoas. Quem nunca foi sensível o bastante para enfrentar as dificuldades das quais ele trata talvez até o ache engraçado. Se alguma dessas pessoas rir, eu não me incomodarei com isso; uma dose de comicidade, em qualquer discussão, não faz mal, por mais sério que seja o assunto. (Em minha própria experiência, as coisas mais engraçadas aconteceram durante as conversas mais sérias e sinceras). Quando comecei a me aproximar da crença em Deus, e mesmo depois de ter sido totalmente convertido a ela, encontrei uma dificuldade no fato de que as pessoas religiosas, todas elas, costumam exigir, muito abertamente, que "louvemos" a Deus, inclusive sugerindo que o próprio Deus exige que seja assim. 


 Todos nós costumamos desprezar aqueles que fazem questão de continuamente afirmar a própria virtude, inteligência ou prazer; costumamos desprezar com mais intensidade as multidões que se reúnem ao redor de todo ditador, de todo milionário, de toda celebridade que satisfaça essa exigência. Por isso, começou a surgir em minha mente um retrato ao mesmo tempo ridículo e horrível tanto de Deus quanto de seus adoradores. Nesse sentido, os salmos eram particularmente incômodos: "Louve ao Senhor"; "ó louvai ao Senhor comigo"; "Louvai-o". (E por que cargas d'água louvar a Deus consiste, frequentemente, em dizer às outras pessoas que o louvem? Por que até mesmo dizer às baleias, tempestades de neve etc. que continuem fazendo o que certamente fariam, quer disséssemos a elas ou não?) Pior ainda foi a declaração colocada na boca do próprio Deus: "Quem me oferece sua gratidão como sacrifício, honra-me" (Sl 50.23). Foi tão medonho quanto dizer: "O que mais quero ouvir é que sou bom e grande''. O pior de tudo foi a sugestão da mais tola barganha pagã, a do selvagem que faz ofertas ao seu ídolo quando a pesca é boa e que bate nele quando não pesca nada. Por mais de uma vez, os salmistas parecem estar dizendo: "Você gosta de elogios. Faça isso para mim e receberá alguma coisa em trocà'. Assim, no Salmo 54 o poeta começa dizendo: "Salva-me"(v. 1) e, no versículo 6, acrescenta uma persuasão: "Eu te oferecerei um sacrifício voluntário; louvarei o teu nome, ó Senhor''. Repetidas vezes, o narrador pede para ser salvo da morte com base no fato de que, se Deus permitir que seus suplicantes morram, ele não receberá mais louvor deles, pois os fantasmas no Sheol não podem louvar (30.9; 88.10; 1 19.175). E até mesmo a quantidade de louvor parecia ser importante: "Sete vezes por dia eu te louvo" ( 119.164). Era extremamente angustiante. Fazia com que as pessoas pensassem naquilo em que elas menos queriam pensar. Eu até poderia compreender a gratidão, a reverência e a obediência a Deus, mas não entendia  esse elogio perpétuo.


 E houve um autor contemporâneo que em nada ajudou a apaziguar os nossos ânimos ao falar sobre o "direito" de Deus de ser louvado. Eu ainda considero "direito" uma palavra ruim para expressar essa ideia, mas acredito que agora entendo o que o autor quis dizer. Talvez seja mais fácil começar com objetos inanimados, que não têm direitos. O que queremos dizer quando afirmamos que um quadro é "admirável"? Certamente não queremos dizer que ele é admirado (e talvez seja), pois uma obra ruim é admirada por milhares e uma obra boa pode ser ignorada. Nem que ele "mereça" admiração no mesmo sentido que um candidato "merece" que notas altas lhe sejam atribuídas pela banca de examinadores - ou seja, que um ser humano sofrerá uma injustiça se não for recompensado. O sentido no qual o quadro "merece" ou "exige" admiração é o seguinte: a admiração é a resposta correta, adequada ou apropriada a ele, e essa admiração, se satisfeita, não será "jogada fora"; por outro lado, se não o admirarmos, seremos estúpidos, insensíveis e grandes derrotados, pois teremos perdido algo. Desse modo, muitos obj etos que conhecemos, tanto na natureza quanto no mundo da arte, podem merecer, ser dignos de ou exigir admiração. Foi a partir desse raciocínio, que para alguns pode até parecer irreverente, que achei melhor abordar a ideia de que Deus "exige" o louvor. Ele é aquele objeto a ser admirado (ou, se você preferir, apreciado), o que significa simplesmente despertá-lo, trazê-lo para o mundo real. Por outro lado, não apreciá-lo significa perder a maior das experiências e, no fim, perder tudo. As vidas incompletas e mutiladas dos que estão fora do tom, que nunca se apaixonaram, nunca conheceram a verdadeira amizade, nunca se envolveram com um bom livro, nunca desfrutaram do sentimento do ar da manhã em seus rostos, nunca (e eu sou um desses) apreciaram futebol, são imagens débeis disso. 


Mas, é claro, isso não é tudo. Deus não "exige" louvor somente como o objeto supremamente belo e totalmente satisfatório a ser louvado. Ele aparentemente o ordena como legislador que é. Os judeus foram orientados a oferecer sacrifícios. Nós sentimos que temos o dever de ir à igreja. Mas, por outro lado, isso foi uma dificuldade pelo simples fato de eu não entender nada do que tentei dizer anteriormente, no capítulo 5. Não enxergava que é no processo de ser adorado que Deus comunica sua presença aos homens. E o louvor não é, de fato, o único modo de adorar a Deus. No entanto, para muitas pessoas, em muitas épocas, a "beleza do Senhor" é revelada principalmente ou somente enquanto nós o adoramos juntos. Mesmo no judaísmo, a essência do sacrifício não era, em verdade, o fato de os homens oferecerem bois e bodes a Deus, mas o fato de que, ao fazê-lo, Deus se apresentaria aos homens. No ato central de nossa própria adoração, é claro, isso se torna bem mais evidente: De uma forma patente e até física, existe, por um lado, o Deus que concede e, por outro, nós, os que recebemos. A infeliz ideia de que Deus deveria, de um jeito ou de outro, precisar da nossa adoração ou desejá-la da mesma forma como uma mulher vaidosa deseja receber elogios, ou um autor vaidoso oferece seus novos livros a pessoas que nunca o conheceram ou ouviram falar dele, é implicitamente respondida com as seguintes palavras: "Se eu tivesse fome, precisaria dizer a você?" (Sl 50.12). Mesmo se fosse possível conceber tal deidade absurda, ela dificilmente viria a nós, as mais inferiores das criaturas racionais, para satisfazer seu apetite. Eu não quero que o meu cachorro lata em sinal de aprovação aos meus livros. E agora que parei para pensar nisso, existem algumas pessoas cuja crítica, por mais favorável que seja, não me seria tão gratificante. No entanto, o mais óbvio sobre o louvor - quer dirigido a Deus ou a qualquer outra coisa - eu estranhamente não consegui compreender. Pensei nele como se fosse um elogio,  aprovação ou honraria.


 Nunca havia notado que toda apreciação transborda espontaneamente em forma de louvor quando (e às vezes até mesmo se) a timidez ou o medo de incomodar os outros são deliberadamente admitidos e analisados. O mundo está cercado de louvor: amantes elogiam seus amados e suas amadas; os leitores elogiam seu poeta preferido; os caminhantes elogiam o campo; os jogadores elogiam seus jogos favoritos; há o louvor ao clima, aos vinhos, às louças, aos atores, aos carros, aos cavalos, às faculdades, aos países, a personagens históricos, a crianças, flores, montanhas, selos e insetos raros e, às vezes, até mesmo a políticos e estudiosos. Eu não havia notado como as mentes mais humildes e, ao mesmo tempo, mais equilibradas e capazes prestavam mais louvores, enquanto as excêntricas, desajustadas e descontentes elogiavam menos. Os bons críticos encontraram algo para elogiar em muitas obras imperfeitas; os maus continuamente limitavam-se à lista de livros que tínhamos a permissão de ler. O homem saudável e sincero, mesmo se educado no luxo e com bastante experiência em boa gastronomia, seria capaz de elogiar uma refeição muito modesta; os que sofrem de indigestão e que são arrogantes, por sua vez, acham defeito em tudo. Exceto onde as circunstâncias intoleravelmente adversas interferem, o louvor parece quase ser uma manifestação de saúde interior. E isso também acontece nos casos em que, por conta da falta de habilidade, as formas pelas quais o louvor se expressa são muito grosseiras ou mesmo ridículas. Deus sabe como muitos poemas de louvor dirigidos a um ser amado e terreno são tão ruins quanto os nossos piores hinos, e que uma antologia de poemas de amor que pudessem ser lidos por todos e por toda a eternidade seria provavelmente um teste tão doloroso ao gosto literário quanto os Hinos Antigos e Modernos. Eu não havia notado que, assim como os homens espontaneamente elogiam as coisas todas que valorizam, eles também espontaneamente nos conclamam a juntar-se a eles  nesse louvor: "Ela não é adorável? Aquilo não foi glorioso? Você não acha que isso é maravilhoso?". 

Ao conclamar todas as pessoas a louvar a Deus, os salmistas estão fazendo o que todos os homens fazem quando falam sobre as coisas com as quais se importam. Toda a minha dificuldade, a mais ampla dificuldade sobre o louvor a Deus, baseava-se em minha absurda resistência - no que diz respeito àquele que é o que há de mais valioso - ao que temos prazer em fazer, ao que não conseguimos deixar de fazer e em relação a tudo o mais que valorizamos. Penso que temos prazer em louvar o que apreciamos porque o louvor não somente expressa como também complementa a apreciação; ele é a própria consumação dessa apreciação. Quando amantes continuamente dizem um ao outro o quão belo ele (ou ela) é, não o fazem apenas por dever; o prazer é incompleto até que seja expresso. É frustrante descobrir um novo autor e não poder dizer a ninguém quão bom ele é; chegar de repente em uma curva de uma estrada que corta um vale encravado na montanha, contemplar uma paisagem de esplendor inesperado e então ter de manter silêncio porque as pessoas que estão com você não dão a mínima para aquele cenário; ouvir uma boa piada e não encontrar ninguém para compartilhá-la (o ouvinte perfeito morreu um ano antes). Isso acontece quando as formas pelas quais nos expressamos são inadequadas, como elas efetivamente são na maioria das vezes. Mas e se uma pessoa encontrasse a maneira adequada de louvar a essas coisas com perfeição, de modo pleno e sincero, transformando em poesia, música ou pintura o sentimento de admiração que quase explode dentro dela? Assim, o objeto seria, de fato, plenamente apreciado e o nosso prazer teria chegado ao auge de sua perfeição. Quanto mais digno o objeto, mais intenso seria esse prazer. Se fosse possível a uma alma criada (eu quero dizer, na máxima medida concebível para um ser finito) "apreciar" plenamente, ou seja, amar e ter prazer no mais digno de todos os objetos existentes e, ao mesmo tempo, em todos os momentos expressar perfeitamente esse prazer, então essa alma estaria em suprema bem-aventurança.


 É ao longo destas linhas que descubro a maneira mais fácil de entender a doutrina cristã de que o "céu" é um estado no qual os anjos agora - e os homens no futuro - estão perpetuamente empenhados em louvar a Deus. Isso não significa que, como se pode tão tristemente sugerir, seja como "estar na igrejà', pois nossos "cultos", tanto em sua conduta quanto em nossa capacidade de participação, são meras tentativas de adorar, tentativas nunca plenamente bem-sucedidas, constituindo, na maioria das vezes, 99,9% de fracasso e, outras vezes, fracasso total. Não somos cavaleiros, mas aprendizes na escola de montaria, pois boa parte das nossas quedas e escoriações, bem como os músculos doloridos e a severidade do exercício, em muito superam aqueles poucos momentos nos quais estivemos, para nosso espanto, verdadeiramente galopando, sem temor e sem desastres. Para absorver o real significado da doutrina, devemos supor estar em perfeito amor com Deus - inebriados, inundados; dissolvidos por esse prazer que, longe de permanecermos presos e incomunicáveis em nós mesmos, nos torna imersos em uma felicidade quase intolerável que flui incessantemente de dentro de nós por meio de uma expressão natural e perfeita, fazendo com que a nossa alegria não mais se separe do louvor no qual ela se libera e se expressa, assim como o brilho que um espelho recebe não se separa do brilho que reflete. O catecismo escocês diz que o fim supremo do homem é "glorificar a Deus e desfrutá-lo para sempre''. Mas então saberemos que essas coisas são a mesma coisa. Desfrutar plenamente é glorificar. Ao ordenar que o glorifiquemos, Deus está nos convidando a desfrutarmos dele. Enquanto isso, é claro, estamos simplesmente, como Donne diz, afinando os nossos instrumentos. A afinação da orquestra pode ser prazerosa, mas somente para os que, em certa medida, embora pequena, conhecem a sinfonia e a absorvem. .


Os sacrifícios judaicos e mesmo os nossos próprios ritos mais sagrados, à medida que ocorrem na experiência humana, são, como o processo de afinação, uma promessa, não um desempenho. Assim sendo, como na afinação, eles podem ter em si muita responsabilidade e pouco prazer ou nenhum prazer. Mas a responsabilidade existe para o prazer. Quando cumprimos nossas "responsabilidades religiosas': somos como pessoas que abrem canais em uma terra seca a fim de que, quando a água finalmente brotar, possam estar prontas para tirar proveito dela. Ou, ao menos, parcialmente. Mesmo agora, há momentos felizes quando uma corrente desliza pelos berços secos; assim como são felizes as almas nas quais isso acontece com frequência. Quanto ao elemento de barganha proposto nos salmos ("faça isso e eu o louvarei"), esse arroubo tolo de paganismo certamente existiu. A chama não sobe pura do altar. As impurezas, no entanto, não são a sua essência. E não estamos todos em posição de desprezar mesmo os salmistas mais brutos no que diz respeito a esse quesito. É claro que não cometeríamos gafes em nossas palavras como eles cometem. Mas há, para o bem e para o mal, uma oração que dispensa palavras. Por muitas vezes, e de joelhos, fico chocado ao descobrir os tipos de pensamento que, em alguns momentos, dirijo a Deus - que ofertas infantis lhe fiz de fato, que pedidos realmente apresentei ou mesmo os acordos ou comprometimentos absurdos que eu propus, alguns deles conscientemente. Há, em algum lugar dentro de mim, um coração pagão e selvagem, pois, infelizmente, a perspicácia ao mesmo tempo idiota e tola do paganismo parece ter muito mais poder de sobrevivência do que os seus elementos inocentes e até mesmo belos. Uma vez que você tenha poder, é fácil silenciar os instrumentos, calar as danças, desfigurar as estátuas e esquecer as histórias; mas não é fácil matar a criatura selvagem, insaciável e assustada que se contorce e grita em nossa alma - a criatura a quem Deus pode muito bem perguntar: "Você pensa que eu sou como você?" (SI 50.21). 


 Mas tudo isso, como eu disse, é algo que ficará claro para apenas alguns dos meus leitores. Em outros, uma comédia de erros como essa e uma jornada assim tão tortuosa em busca do óbvio se traduzirão em uma ocasião perfeita para que se dê generosos risos."

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Declaração oficial do Papa do site do Vaticano sobre casais homossexuais -

IGREJA CONTINUA CONDENANDO AS UNIÕES HOMOSSEXUAIS



Declaração  "Fiducia supplicans"


Sobre o significado pastoral das bênçãos

Apresentação

Esta Declaração considera diversas questões que chegaram a este Dicastério nos últimos anos. Ao preparar o documento, o Dicastério, como é sua prática, consultou especialistas, empreendeu um cuidadoso processo de redação e discutiu o texto no Congresso do Documento Doutrinário Seção do Dicastério. Durante esse período, o documento foi discutido com o Santo Padre. Finalmente, o texto da Declaração foi submetido ao Santo Padre para revisão, que o aprovou com a sua assinatura.

Enquanto se estudava o tema deste documento, foi divulgada a resposta do Santo Padre às Dubia de alguns Cardeais. Essa resposta forneceu esclarecimentos importantes para esta reflexão e representa um elemento decisivo para o trabalho do Dicastério. Dado que “a Cúria Romana é antes de tudo um instrumento ao serviço do sucessor de Pedro” (Ap. Const. Praedicate Evangelium, II, 1), a nossa o trabalho deve promover, juntamente com a compreensão da doutrina perene da Igreja, a recepção do ensinamento do Santo Padre.

Tal como acontece com a resposta acima mencionada do Santo Padre à Dubia de dois Cardeais, esta Declaração permanece firme na doutrina tradicional da Igreja sobre o casamento, não permitindo qualquer tipo de rito litúrgico ou bênção semelhante a um rito litúrgico que possa criar confusão. O valor deste documento, porém, é que ele oferece uma contribuição específica e inovadora ao significado pastoral das bênçãos, permitindo uma ampliação e enriquecimento do clássico compreensão das bênçãos, que está intimamente ligada a uma perspectiva litúrgica. Tal reflexão teológica, baseada na visão pastoral do Papa Francisco, implica um verdadeiro desenvolvimento a partir do que foi dito sobre as bênçãos no Magistério e nos textos oficiais da Igreja. Isto explica porque este texto assumiu a tipologia de uma “Declaração”.

É precisamente neste contexto que se pode compreender a possibilidade de abençoar casais em situação irregular e casais do mesmo sexo sem validar oficialmente o seu estatuto ou alterar de alguma forma o ensinamento perene da Igreja sobre o matrimónio.

Esta Declaração pretende também ser uma homenagem ao Povo fiel de Deus, que adora o Senhor com tantos gestos de profunda confiança na sua misericórdia e que, com esta confiança, vem constantemente pedir a bênção da Mãe Igreja.

Cardeal Vítor Manuel. FERNANDEZ

Prefect


Introdução

1. A confiança suplicante do Povo fiel de Deus recebe o dom da bênção que brota do Coração de Cristo através da sua Igreja. O Papa Francisco oferece este lembrete oportuno: “A grande bênção de Deus é Jesus Cristo. Ele é o grande dom de Deus, seu próprio Filho. Ele é uma bênção para toda a humanidade, uma bênção que salvou a todos nós. Ele é o Verbo Eterno, com quem o Pai nos abençoou “quando ainda éramos pecadores” (Rm 5,8), como diz São Paulo. Ele é o Verbo feito carne, oferecido por nós na cruz.”[1]

2. Encorajado por uma verdade tão grande e consoladora, este Dicastério considerou várias questões, tanto de natureza formal como informal, sobre a possibilidade de abençoar os casais do mesmo sexo e – à luz da abordagem paternal e pastoral do Papa Francisco – de oferecer novos esclarecimentos sobre a Responsum ad dubium[2] que a Congregação para a Doutrina da Fé publicou em 22 de fevereiro de 2021.< /span>

3. A Responsum mencionada suscitou numerosas e variadas reações: alguns saudaram a clareza do documento e a sua consistência com o ensinamento perene da Igreja; outros não partilharam a resposta negativa dada à pergunta ou não consideraram a formulação da sua resposta e as razões apresentadas na Nota Explicativa anexa como suficientemente claro. Para responder a esta última reação com a caridade fraterna, parece oportuno retomar o tema e oferecer uma visão que conjugue de maneira coerente os aspectos doutrinários com os pastorais, porque “todo o ensino religioso deve, em última análise, refletir-se no caminho do professor”. de vida, que desperta o consentimento do coração pela sua proximidade, amor e testemunho.”[3]

I. A Bênção no Sacramento do Matrimônio

4. A recente resposta do Papa Francisco à segunda das cinco questões colocadas por dois Cardeais[4] oferece uma oportunidade para explorar mais esta questão, especialmente nas suas implicações pastorais. É uma questão de evitar que “algo que não é casamento seja reconhecido como casamento”.[5] Portanto, ritos e orações que poderiam criar confusão entre o que constitui o casamento – que é a “união exclusiva, estável e indissolúvel entre um homem e uma mulher, naturalmente aberta à geração de filhos”[6]—e quais contradições são inaceitáveis. Esta convicção baseia-se na perene doutrina católica do casamento; é somente neste contexto que as relações sexuais encontram o seu significado natural, próprio e plenamente humano. A doutrina da Igreja sobre este ponto permanece firme.

5. Esta é também a compreensão do matrimónio que o Evangelho nos oferece. Por esta razão, quando se trata de bênçãos, a Igreja tem o direito e o dever de evitar qualquer rito que possa contradizer esta convicção ou levar à confusão. Tal é também o significado do Responsum da Congregação para a Doutrina da Fé, que afirma que a Igreja não tem o poder de conceder bênçãos às uniões de pessoas do mesmo sexo.

6. Deve-se sublinhar que no Rito do Sacramento do Matrimónio não se trata de uma bênção qualquer, mas de um gesto reservado ao ministro ordenado. Neste caso, a bênção dada pelo ministro ordenado está diretamente ligada à união específica de um homem e uma mulher, que estabelecem uma aliança exclusiva e indissolúvel com o seu consentimento. Este facto permite-nos realçar o risco de confundir a bênção dada a qualquer outra união com o Rito próprio do Sacramento do Matrimónio.

II. O significado das várias bênçãos

7. A resposta do Santo Padre acima mencionada convida-nos a ampliar e enriquecer o significado das bênçãos.

8. As bênçãos estão entre os sacramentais mais difundidos e em evolução. Com efeito, levam-nos a captar a presença de Deus em todos os acontecimentos da vida e recordam-nos que, mesmo no uso das coisas criadas, o ser humano é convidado a procurar Deus, a amá-lo e a servi-lo fielmente. [7] Por isso, as bênçãos têm como destinatários: pessoas; objetos de culto e devoção; imagens sagradas; lugares de vida, de trabalho e de sofrimento; os frutos da terra e do ser humano; e todas as realidades criadas que remetem ao Criador, louvando-o e abençoando-o pela sua beleza.

O significado litúrgico do rito de benção

9. Do ponto de vista estritamente litúrgico, a bênção exige que o que é abençoado seja conforme à vontade de Deus, expressa nos ensinamentos da Igreja.

10. Com efeito, as bênçãos são celebradas em virtude da fé e ordenadas para o louvor de Deus e para o benefício espiritual do seu povo. Como explica o Livro das Bênçãos, “para que esta intenção se torne mais evidente, por uma tradição antiga, as fórmulas de bênção visam principalmente dar glória a Deus por suas dádivas, pedindo seus favores e restringindo o poder do mal no mundo.”[8] Portanto, aqueles que invocam a bênção de Deus através da Igreja são convidados a “fortalecer as suas disposições através da fé, para a qual todas as coisas são possíveis” e a confiar “no amor que impele à observância dos mandamentos de Deus”.[9] Esta é uma compreensão litúrgica das bênçãos na medida em que são ritos oficialmente propostos pela Igreja .[10] É por isso que, embora “há sempre e em toda parte uma oportunidade de louvar a Deus através de Cristo, no Espírito Santo”, há também um cuidado em fazê-lo com “coisas, lugares ou circunstâncias que não não contradizer a lei ou o espírito do Evangelho.”

11. Baseando-se nestas considerações, a Nota Explicativa da Congregação para a Doutrina da Fé à sua Resposta dois Cardeais.deDubia às Respuestas recorda que quando uma bênção é invocada sobre certas relações humanas por um rito litúrgico especial, é necessário que o que é abençoado corresponda aos desígnios de Deus escritos na criação e plenamente revelados por Cristo Senhor. Por esta razão, uma vez que a Igreja sempre considerou moralmente lícitas apenas as relações sexuais vividas dentro do casamento, a Igreja não tem o poder de conferir a sua bênção litúrgica quando isso de alguma forma ofereceria uma forma de legitimidade moral a uma união que presuma ser um casamento ou uma prática sexual extraconjugal. O Santo Padre reiterou a substância desta Declaração nas suas

12. É preciso também evitar o risco de reduzir o significado das bênçãos apenas a este ponto de vista, pois isso nos levaria a esperar as mesmas condições morais para uma simples bênção que são exigidas na recepção dos sacramentos. Tal risco exige que ampliemos ainda mais esta perspectiva. Na verdade, existe o perigo de que um gesto pastoral tão querido e difundido seja submetido a demasiados pré-requisitos morais, que, sob a pretensão de controlo, poderiam ofuscar o poder incondicional do amor de Deus que constitui a base do gesto de bênção. .

13. Precisamente neste sentido, o Papa Francisco exortou-nos a não “perder a caridade pastoral, que deve permear todas as nossas decisões e atitudes” e a evitar sermos “juízes que apenas negam, rejeitam e excluem”. [11] Vamos então responder à proposta do Santo Padre desenvolvendo uma compreensão mais ampla das bênçãos.

Bênçãos nas Sagradas Escrituras

14. Para refletir sobre as bênçãos reunindo diferentes pontos de vista, primeiro precisamos ser iluminados pela voz das Escrituras.

15. “Que o Senhor te abençoe e te guarde. Que o Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti e tenha misericórdia de ti. Que o Senhor sobre ti levante o seu rosto e te dê a paz” (Números 6:24-26). Esta “bênção sacerdotal” que encontramos no Antigo Testamento, especificamente no Livro dos Números, tem um caráter “descendente”, pois representa a invocação de uma bênção que desce de Deus sobre o homem: é um dos textos mais antigos da bênção divina . Depois, há um segundo tipo de bênção que encontramos nas páginas bíblicas: aquela que “sobe” da terra ao céu, em direção a Deus. Bênção neste sentido equivale a orar, celebrar e agradecer a Deus por sua misericórdia e sua fidelidade, pelas maravilhas que ele criou e por tudo o que aconteceu por sua vontade: “Bendize ao Senhor, minha alma, e tudo o que existe. dentro de mim, abençoe seu santo nome!” (Sl103:1).

16. A Deus que abençoa, também respondemos com bênção. Melquisedeque, rei de Salém, abençoa Abrão (cf. Gn 14.19); Rebeca é abençoada por membros da família pouco antes de se tornar noiva de Isaque (cf. Gn 24.60), que, por sua vez, abençoa seu filho, Jacó (cf. Gn 27.27). Jacó abençoa Faraó (cf. Gn 47.10), seus próprios netos, Efraim e Manassés (cf. Gn 48.20), e seus doze filhos (cf. Gn 49.28). Moisés e Arão abençoam a comunidade (cf. Êx 39.43; Lv 9.22). Os chefes de família abençoam os filhos em casamentos, antes de embarcarem em viagem e na iminência da morte. Estas bênçãos, portanto, parecem ser uma dádiva superabundante e incondicional.

17. A bênção encontrada no Novo Testamento mantém essencialmente o mesmo significado que tinha no Antigo Testamento. Encontramos o dom divino que “desce”, a ação de graças humana que “sobe” e a bênção concedida pelo homem que “se estende” aos outros. Zacarias, tendo renovado o uso da fala, abençoa o Senhor pelas suas obras maravilhosas (cf. Lc.1:64). Simeão, tendo nos braços Jesus recém-nascido, bendiz a Deus por lhe ter concedido a graça de contemplar o Messias salvador, e depois abençoa os pais da criança, Maria e José (cf. Lc.2: 34). Jesus abençoa o Pai no famoso hino de louvor e exultação que lhe dirigiu: “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra” (Mt.11,25).11:25). a>

18. Em continuidade com o Antigo Testamento, também em Jesus a bênção não só sobe, referindo-se ao Pai, mas também desce, derramando-se sobre os outros como gesto de graça, proteção e bondade. O próprio Jesus implementou e promoveu esta prática. Por exemplo, ele abençoou as crianças: “E tomou-as nos braços e abençoou-as, impondo-lhes as mãos” (Mc.10:16). E o caminho terreno de Jesus terminará precisamente com uma bênção final reservada aos Onze, pouco antes de ascender ao Pai: «E levantando as mãos, abençoou-os. Enquanto os abençoava, afastou-se deles e foi elevado ao céu” (Lc.24:50-51). A última imagem de Jesus na terra é a de suas mãos levantadas no ato de abençoar.

19. No seu mistério de amor, através de Cristo, Deus comunica à sua Igreja o poder de abençoar. Concedida por Deus aos seres humanos e por eles concedida ao próximo, a bênção se transforma em inclusão, solidariedade e pacificação. É uma mensagem positiva de conforto, cuidado e encorajamento. A bênção expressa o abraço misericordioso de Deus e a maternidade da Igreja, que convida os fiéis a terem os mesmos sentimentos de Deus para com os seus irmãos e irmãs.

Uma compreensão teológico-pastoral das bênçãos

20. Quem pede uma bênção mostra-se necessitado da presença salvífica de Deus na sua vida e quem pede uma bênção à Igreja reconhece esta como sacramento da salvação que Deus oferece. Buscar uma bênção na Igreja é reconhecer que a vida da Igreja brota do ventre da misericórdia de Deus e nos ajuda a seguir em frente, a viver melhor e a responder à vontade do Senhor.

21. Para nos ajudar a compreender o valor de uma abordagem mais pastoral das bênçãos, o Papa Francisco exorta-nos a contemplar, com uma atitude de fé e de misericórdia paterna, o facto de que «quando alguém pede uma bênção, está a expressar uma petição pela bênção de Deus. assistência, um apelo para viver melhor e confiança em um Pai que pode nos ajudar a viver melhor.”[12] Este pedido deve, em todos os sentidos ser valorizado, apoiado e recebido com gratidão. As pessoas que vêm espontaneamente pedir uma bênção mostram com este pedido a sua sincera abertura à transcendência, a confiança dos seus corações de que não confiam apenas nas suas próprias forças, a sua necessidade de Deus e o seu desejo de sair dos limites estreitos. deste mundo, encerrado em suas limitações.,

22. Como nos ensina Santa Teresinha do Menino Jesus, esta confiança “é o único caminho que nos leva ao Amor que tudo concede. Com confiança, a fonte da graça transborda em nossas vidas […]. É muito apropriado, então, que depositemos confiança sincera não em nós mesmos, mas na misericórdia infinita de um Deus que nos ama incondicionalmente [...]. O pecado do mundo é grande, mas não infinito, enquanto o amor misericordioso do Redentor é realmente infinito.”[13]

23. Quando consideradas fora de um quadro litúrgico, estas expressões de fé encontram-se num âmbito de maior espontaneidade e liberdade. No entanto, “a natureza opcional dos exercícios piedosos não deve de forma alguma ser interpretada como implicando uma subestimação ou mesmo desrespeito por tais práticas. O caminho a seguir nesta área requer uma apreciação correta e sábia das muitas riquezas da piedade popular, [e] da potencialidade dessas mesmas riquezas.”[14] Desta forma, as bênçãos tornam-se um recurso pastoral a ser valorizado e não um risco ou um problema.

24. Do ponto de vista da pastoral, as bênçãos devem ser avaliadas como atos de devoção que “são externos à celebração da Sagrada Eucaristia e dos demais sacramentos”. Na verdade, a “linguagem, o ritmo, o curso e a ênfase teológica” da piedade popular diferem “daqueles da ação litúrgica correspondente”. Por esta razão, “as práticas piedosas devem conservar o seu próprio estilo, simplicidade e linguagem, [e] as tentativas de lhes impor formas de 'celebração litúrgica' devem sempre ser evitadas.”[15 ]

25. A Igreja, além disso, deve evitar basear a sua práxis pastoral na natureza fixa de certos esquemas doutrinais ou disciplinares, especialmente quando conduzem a “um elitismo narcisista e autoritário, segundo o qual, em vez de evangelizar, se analisa e classifica os outros, e em vez de abrindo a porta para a graça, a pessoa esgota suas energias inspecionando e verificando.”[16] Assim, quando as pessoas pedem uma bênção, um pedido exaustivo a análise moral não deve ser colocada como uma pré-condição para conferi-la. Pois, aqueles que buscam uma bênção não deveriam ser obrigados a ter perfeição moral prévia.

26. Nesta perspectiva, as Respuestas do Santo Padre ajudam aprofundar o pronunciamento de 2021 da Congregação para a Doutrina da Fé do ponto de vista pastoral. Pois, as Respuestas convidam ao discernimento sobre a possibilidade de “formas de bênção, solicitadas por uma ou mais pessoas, que não transmitam uma concepção errônea de casamento” [17] e, em situações que são moralmente inaceitáveis ​​do ponto de vista objetivo, explicar o fato de que “a caridade pastoral exige que não tratemos simplesmente como 'pecadores' aqueles cuja culpa ou responsabilidade pode ser atenuada por vários fatores que afetam a imputabilidade subjetiva.”[18]

27. Na catequese citada no início desta Declaração, o Papa Francisco propôs uma descrição deste tipo de bênção que é oferecida a todos sem exigir nada. Vale a pena ler estas palavras com o coração aberto, pois elas nos ajudam a compreender o significado pastoral das bênçãos oferecidas sem condições prévias: “É Deus quem abençoa. Nas primeiras páginas da Bíblia há uma repetição contínua de bênçãos. Deus abençoa, mas o ser humano também dá bênçãos, e logo se descobre que a bênção possui um poder especial, que acompanha quem a recebe ao longo da vida e dispõe o coração do homem para ser mudado por Deus. […] Então somos mais importantes para Deus do que todos os pecados que podemos cometer porque ele é pai, ele é mãe, ele é puro amor, ele nos abençoou para sempre. E ele nunca deixará de nos abençoar. É uma experiência poderosa ler estes textos bíblicos de bênção numa prisão ou num grupo de reabilitação. Fazer com que essas pessoas sintam que ainda são abençoadas, apesar dos seus graves erros, que o seu Pai celeste continua a querer o seu bem e a esperar que no final se abram ao bem. Mesmo que os seus parentes mais próximos os tenham, abandonados porque agora os julgam irredimíveis, Deus sempre os vê como seus filhos.”[19]

28. São diversas as ocasiões em que as pessoas pedem espontaneamente uma bênção, seja em peregrinações, em santuários, ou mesmo na rua, quando encontram um sacerdote. A título de exemplo, podemos referir o Livro das Bênçãos, que prevê vários ritos para abençoar pessoas, incluindo idosos, doentes, participantes numa encontro de catequese ou de oração, peregrinos, pessoas em viagem, grupos e associações de voluntariado, etc. Essas bênçãos destinam-se a todos; ninguém deve ser excluído deles. Na introdução da Ordem para a Bênção dos Idosos, por exemplo, afirma-se que o propósito da esta bênção é “para que os próprios idosos recebam dos irmãos um testemunho de respeito e gratidão, enquanto junto com eles damos graças ao Senhor pelos favores que dele receberam e pelo bem que fizeram com a sua ajuda”. [20] Neste caso, o sujeito da bênção é o idoso, por quem e com quem se dá graças a Deus pelo bem que ele fez e pelos benefícios recebidos. Ninguém pode ser impedido deste ato de agradecer, e cada pessoa – mesmo que viva em situações que não estão ordenadas ao plano do Criador – possui elementos positivos pelos quais podemos louvar ao Senhor.

29. Na perspectiva da dimensão ascendente, quando alguém se torna consciente dos dons do Senhor e do seu amor incondicional, mesmo em situações pecaminosas - particularmente quando uma oração é ouvida - o coração do crente eleva o seu louvor a Deus e abençoa-o. Ninguém está excluído deste tipo de bênção. Todos, individualmente ou em conjunto com outros, podem elevar o seu louvor e gratidão a Deus.

30. A compreensão popular sobre as bênçãos, porém, também valoriza a importância das bênçãos descendentes. Embora “não seja apropriado que uma Diocese, uma Conferência Episcopal ou qualquer outra estrutura eclesial estabeleça constante e oficialmente procedimentos ou rituais para todos os tipos de assuntos”,[21] prudência e sabedoria pastoral – evitando todas as formas graves de escândalo e confusão entre os fiéis – podem sugerir que o ministro ordenado se junte à oração daquelas pessoas que, embora numa união que não pode ser comparada de forma alguma com no casamento, desejam confiar-se ao Senhor e à sua misericórdia, invocar a sua ajuda e ser guiados para uma maior compreensão do seu plano de amor e de verdade.

III. Bênçãos dos casais em situação irregular e dos casais do mesmo sexo

31. No horizonte aqui traçado surge a possibilidade de bênçãos para casais em situação irregular e para casais do mesmo sexo, cuja forma não deve ser fixada ritualmente pelas autoridades eclesiais para não produzir confusão com a bênção própria do Sacramento do Matrimónio. . Nesses casos, pode ser concedida uma bênção que não só tenha um valor ascendente, mas também envolva a invocação de uma bênção que desce de Deus sobre aqueles que - reconhecendo-se desamparados e necessitados de sua ajuda - não reivindicam uma legitimação de seu próprio status, mas que imploram que tudo o que é verdadeiro, bom e humanamente válido em suas vidas e em seus relacionamentos seja enriquecido, curado e elevado pela presença do Espírito Santo. Estas formas de bênção expressam uma súplica para que Deus conceda as ajudas que vêm dos impulsos do seu Espírito - o que a teologia clássica chama de “graça real” - para que as relações humanas amadureçam e cresçam na fidelidade ao Evangelho, para que sejam libertadas das suas imperfeições e fragilidades , e para que possam exprimir-se na dimensão sempre crescente do amor divino.

32. Na verdade, a graça de Deus atua na vida daqueles que não se dizem justos, mas que se reconhecem humildemente como pecadores, como todos os outros. Esta graça pode orientar tudo segundo os desígnios misteriosos e imprevisíveis de Deus. Por isso, com a sua sabedoria incansável e o seu cuidado maternal, a Igreja acolhe todos os que se aproximam de Deus com corações humildes, acompanhando-os com aquelas ajudas espirituais que permitem a todos compreender e realizar plenamente a vontade de Deus na sua existência. [22]

33. Esta é uma bênção que, embora não incluída em nenhum rito litúrgico,[23] une a oração intercessória com a invocação da ajuda de Deus por aqueles que humildemente se dirigem a ele. Deus nunca rejeita ninguém que se aproxima dele! Em última análise, uma bênção oferece às pessoas um meio de aumentar a sua confiança em Deus. O pedido de bênção, portanto, expressa e alimenta a abertura à transcendência, à misericórdia e à proximidade de Deus em mil circunstâncias concretas da vida, o que não é pouca coisa no mundo em que vivemos. É uma semente do Espírito Santo que deve ser nutrida, e não impedida.

34. A própria liturgia da Igreja nos convida a adotar esta atitude de confiança, mesmo em meio aos nossos pecados, falta de méritos, fraquezas e confusões, como testemunha esta bela Coleta do Missal Romano: “Deus Todo-poderoso e sempre vivo, que no a abundância da tua bondade supera os méritos e os desejos daqueles que chegam até ti, pois a tua misericórdia sobre nós perdoa o que a consciência teme e dá o que a oração não ousa pedir” (Coleta para o Vigésimo Sétimo Domingo do Tempo Comum). Quantas vezes, através da simples bênção de um pastor, que não pretende sancionar ou legitimar nada, as pessoas podem experimentar a proximidade do Pai, para além de todos os “méritos” e “desejos”?

35. Portanto, a sensibilidade pastoral dos ministros ordenados também deve ser treinada para realizar bênçãos espontâneas que não são encontradas no Livro das Bênçãos.

36. Neste sentido, é essencial compreender a preocupação do Santo Padre para que estas bênçãos não ritualizadas nunca deixem de ser simples gestos que constituem um meio eficaz para aumentar a confiança em Deus por parte das pessoas que as pedem, cuidando para que não deve tornar-se um ato litúrgico ou semilitúrgico, semelhante a um sacramento. Com efeito, tal ritualização constituiria um grave empobrecimento porque submeteria um gesto de grande valor na piedade popular a um controlo excessivo, privando os ministérios da liberdade e da espontaneidade no seu acompanhamento pastoral da vida das pessoas.

37. A este respeito, vêm à mente as seguintes palavras do Santo Padre, já citadas em parte: “As decisões que podem fazer parte da prudência pastoral em certas circunstâncias não devem necessariamente tornar-se uma norma. Isto é, não é apropriado que uma Diocese, uma Conferência Episcopal ou qualquer outra estrutura eclesial estabeleça constante e oficialmente procedimentos ou rituais para todos os tipos de assuntos […]. O Direito Canônico não deve e não pode abranger tudo, nem as Conferências Episcopais devem pretender fazê-lo com os seus diversos documentos e protocolos, uma vez que a vida da Igreja flui através de muitos canais além dos normativos.” [24] Assim, o Papa Francisco recordou que “o que faz parte de um discernimento prático em circunstâncias particulares não pode ser elevado ao nível de regra” porque isso “levaria a uma casuística intolerável”.[25]

38. Por esta razão, não se deve prever nem promover um ritual para a bênção dos casais em situação irregular. Ao mesmo tempo, não se deve impedir ou proibir a proximidade da Igreja às pessoas em todas as situações em que possam procurar a ajuda de Deus através de uma simples bênção. Numa breve oração que precede esta bênção espontânea, o ministro ordenado poderia pedir que os indivíduos tivessem paz, saúde, espírito de paciência, diálogo e assistência mútua – mas também a luz e a força de Deus para poderem cumprir completamente a sua vontade.

39. Em todo o caso, precisamente para evitar qualquer forma de confusão ou escândalo, quando a oração de bênção é solicitada por um casal em situação irregular, mesmo que seja expressa fora dos ritos prescritos pelos livros litúrgicos, esta bênção nunca deve ser transmitido em concorrência com as cerimônias de uma união civil, e nem mesmo em conexão com elas. Nem pode ser realizado com roupas, gestos ou palavras adequadas para um casamento. O mesmo se aplica quando a bênção é solicitada por um casal do mesmo sexo.

40. Tal bênção pode, pelo contrário, encontrar o seu lugar noutros contextos, como uma visita a um santuário, um encontro com um sacerdote, uma oração recitada em grupo ou durante uma peregrinação. Com efeito, através destas bênçãos que são concedidas não através das formas rituais próprias da liturgia, mas como expressão do coração materno da Igreja - semelhantes às que emanam do núcleo da piedade popular - não se pretende legitimar nada, mas antes abrir a vida a Deus, para pedir a sua ajuda para viver melhor, e também para invocar o Espírito Santo para que os valores do Evangelho sejam vividos com maior fidelidade.

41. O que foi dito nesta Declaração sobre as bênçãos dos casais do mesmo sexo é suficiente para orientar o discernimento prudente e paternal dos ministros ordenados a este respeito. Assim, além da orientação fornecida acima, nenhuma resposta adicional deve ser esperada sobre possíveis maneiras de regular detalhes ou aspectos práticos relativos a bênçãos deste tipo.[26]

4. A Igreja é o Sacramento do Amor Infinito de Deus

42. A Igreja continua a elevar aquelas orações e súplicas que o próprio Cristo – com altos gritos e lágrimas – ofereceu na sua vida terrena (cf. Heb5: 7), e que por isso gozam de especial eficácia. Desta forma, «não só pela caridade, pelo exemplo e pelas obras de penitência, mas também pela oração, a comunidade eclesial exerce uma verdadeira função materna na condução das almas a Cristo».[27]< /span>

43. A Igreja é, portanto, o sacramento do amor infinito de Deus. Portanto, mesmo quando a relação de uma pessoa com Deus está obscurecida pelo pecado, ela sempre pode pedir uma bênção, estendendo a mão a Deus, como fez Pedro na tempestade quando clamou a Jesus: “Senhor, salva-me!” (Mateus 14:30). Na verdade, desejar e receber uma bênção pode ser o bem possível em algumas situações. O Papa Francisco recorda-nos que “um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode agradar mais a Deus do que uma vida que parece exteriormente ordenada, mas que atravessa o dia sem enfrentar grandes dificuldades”.[28] Desta forma, “o que brilha é a beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo, que morreu e ressuscitou dentre os mortos.”[29]

44. Qualquer bênção será uma oportunidade para um renovado anúncio do kerygma, um convite a aproximar-nos cada vez mais do amor de Cristo. Como ensinou o Papa Bento XVI: “Como Maria, a Igreja é mediadora da bênção de Deus para o mundo: recebe-a ao receber Jesus e transmite-a ao dar-Lhe. Ele é a misericórdia e a paz que o mundo, por si só, não pode dar e da qual necessita sempre, pelo menos tanto quanto de pão.”[30]

45. Tendo em conta os pontos acima expostos e seguindo o ensinamento autorizado do Papa Francisco, este Dicastério deseja finalmente recordar que “a raiz da mansidão cristã” é “a capacidade de sentir-se bem-aventurado e a capacidade de abençoar [...]. Este mundo precisa de bênçãos e podemos dar e receber bênçãos. O Pai nos ama, e a única coisa que nos resta é a alegria de abençoá-lo, e a alegria de agradecer-lhe e de aprender com ele […] abençoar.”[31] Desta forma, cada irmão e cada irmã poderão sentir que, na Igreja, são sempre peregrinos, sempre mendigos, sempre amados e, apesar de tudo, sempre abençoados.

Cartão Vítor Manuel. FERNANDEZ

Prefeito

Mons. Armando Matteo

Secretário da Seção Doutrinária

Ex-audientia 18 de dezembro de 2023

Francisco

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[1] Francis, Catechesis on Prayer: The Blessing (2 December 2020).

[2] Cf. Congregatio pro Doctrina Fidei, «Responsum» ad «dubium» de benedictione unionem personarum eiusdem sexus et Nota esplicativa (15 March 2021): AAS 113 (2021), 431-434.

[3] Francis, Ap. Exhort. Evangelii Gaudium (24 November 2013), no. 42: AAS 105 (2013), 1037-1038.

[4] Cf. Francis, Respuestas a los Dubia propuestos por dos Cardenales (11 July 2023).

[5] Ibid., ad dubium 2, c.

[6] Ibid., ad dubium 2, a.

[7] Cfr. Rituale Romanum ex decreto Sacrosancti Oecumenici Concilii Vaticani II instauratum auctoritate Ioannis Pauli PP. II promulgatumDe BenedictionibusPraenotandaEditio typica, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano 2013, no. 12.

[8] Ibid., no. 11: “Quo autem clarius hoc pateat, antiqua ex traditione, formulae benedictionum eo spectant ut imprimis Deum pro eius donis glorificent eiusque impetrent beneficia atque maligni potestatem in mundo compescant.”

[9] Ibid., no. 15: “Quare illi qui benedictionem Dei per Ecclesiam expostulant, dispositiones suas ea fide confirment, cui omnia sunt possibilia; spe innitantur, quae non confundit; caritate praesertim vivificentur, quae mandata Dei servanda urget.”

[10] Ibid., no. 13: “Semper ergo et ubique occasio praebetur Deum per Christum in Spiritu Sancto laudandi, invocandi eique gratias reddendi, dummodo agatur de rebus, locis, vel adiunctis quae normae vel spiritui Evangelii non contradicant.”

[11] Francis, Respuestas a los Dubia propuestos por dos Cardenales, ad dubium 2, d.

[12] Ibid., ad dubium 2, e.

[13] Francis, Ap. Exhort. C’est la Confiance (15 October 2023), nos. 2, 20, 29.

[14] Congregation for Divine Worship and the Discipline of the Sacraments, Directory on Popular Piety and the Liturgy. Principles and Guidelines (9 April 2002), no. 12.

[15] Ibid., no. 13.

[16] Francis, Exhort. Ap. Evangelii Gaudium (24 November 2013), no. 94: AAS 105 (2013), 1060.

[17] Francis, Respuestas a los Dubia propuestos por dos Cardenales, ad dubium 2, e.

[18] Ibid., ad dubium 2, f.

[19] Francis, Catechesis on Prayer: The Blessing (2 December 2020).

[20] De Benedictionibus, no. 258: “Haec benedictio ad hoc tendit ut ipsi senes a fratribus testimonium accipiant reverentiae grataeque mentis, dum simul cum ipsis Domino gratias reddimus pro beneficiis ab eo acceptis et pro bonis operibus eo adiuvante peractis.”

[21] Francis, Respuestas a los Dubia propuestos por dos Cardenales, ad dubium 2, g.

[22] Cf. Francis, Post-Synodal Ap. Exhort. Amoris Laetitia (19 March 2016), no. 250: AAS 108 (2016), 412-413.

[23] Cf. Congregation for Divine Worship and the Discipline of the Sacraments, Directory on Popular Piety and the Liturgy (9 April 2002), no. 13: “The objective difference between pious exercises and devotional practices should always be clear in expressions of worship. [...] Acts of devotion and piety are external to the celebration of the Holy Eucharist, and of the other sacraments.”

[24] Francis, Respuestas a los Dubia propuestos por dos Cardenales, ad dubium 2, g.

[25] Francis, Post-Synodal Ap. Exhort. Amoris Laetitia (19 March 2016), no. 304: AAS 108 (2016), 436.

[26] Cf. ibid.

[27] Officium Divinum ex decreto Sacrosancti Oecumenici Concilii Vaticani II instauratum auctoritate Pauli PP. VI promulgatumLiturgia Horarum iuxta Ritum Romanum, Institutio Generalis de Liturgia Horarum, Editio typica altera, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano 1985, no. 17: “Itaque non tantum caritate, exemplo et paenitentiae operibus, sed etiam oratione ecclesialis communitas verum erga animas ad Christum adducendas maternum munus exercet.”

[28] Francis, Ap. Exhort. Evangelii Gaudium (24 November 2013), no. 44: AAS 105 (2013), 1038-1039.

[29] Ibid., no. 36: AAS 105 (2013), 1035.

[30] Benedict XVI, Homily on the Solemnity of Mary, Mother of God. 45th World Day of Peace, Vatican Basilica (1 January 2012): Insegnamenti VIII, 1 (2012), 3.

[31] Francis, Catechesis on Prayer: The Blessing (2 December 2020).

[01963-EN.01] [Original text: English

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