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terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Democracia - igualdade -educação uso dessa tríade a favor do reino das trevas- Quando a democracia assume o papel das ditaduras. C. S Lewis

O cenário é o Inferno, no jantar anual da Academia de Treinamento de Tentadores para jovens demônios, o diretor, Dr. Remeleca, acabou de brindar à saúde dos seus convidados.

Discurso de um demônio:

Democracia é a palavra que vocês devem usar para mantê-lo no cabresto. O ótimo trabalho de corrupção da língua humana que nossos especialistas em Filologia já fizeram torna desnecessário alertá-los para o fato de que eles nunca poderão dar a essa palavra um sentido claro e definível. Aliás, eles não o teriam de qualquer maneira. Jamais lhes ocorrerá que a democracia é propriamente o nome de um sistema político de votação e que isso tem apenas uma conotação muito tênue e remota com o que vocês estão tentando lhes vender. Nem, é claro, jamais deverão receber a permissão para levantar a questão de Aristóteles: Se o “comportamento democrático” significa o comportamento preferido pelas democracias ou o comportamento que vai preservar a democracia. Pois, se eles o fizerem, dificilmente lhes deixará de ocorrer que essas coisas não têm que ser iguais. Vocês devem usar a palavra como se fosse puramente mágica; caso prefiram, usem-na apenas pelo seu poder mercadológico. Trata-se de um nome que eles veneram. E é claro que está associado ao ideal político de que os homens devam ser tratados com igualdade. E vocês, então, deveriam fazer uma transição furtiva na mente deles, desse ideal político para uma crença objetiva de que todos os homens são realmente iguais. Especialmente aqueles homens que vocês estiverem manipulando. 


Consequentemente, vocês podem usar a palavra Democracia para sancionar o mais degradante (e também o menos apreciável) de todos os sentimentos humanos. Podem fazê-lo assumir um tipo de conduta não apenas descarada, mas até com certo brilho positivo de autoaceitação, que, se não for defendida pela palavra mágica, será ridicularizada por todos. O sentimento a que me refiro, obviamente, é aquele que predispõe uma pessoa a dizer “eu sou tão bom quanto você”. A primeira e mais óbvia vantagem disso é que, dessa forma, vocês o induzem a fazer de uma bela e deslavada mentira o centro de sua vida. Não quero dizer com isso apenas que o que afirmam seja pura e simplesmente falso, que eles não se equiparam em termos de bondade, honestidade e bom senso aos outros mais do que nas suas medidas de peso e altura ou na largura de sua cintura.

 Quero dizer que nem mesmo eles acreditam nisso. Nenhuma pessoa que diga “Eu sou tão bom quanto você” acredita nisso, e ele não o diria se acreditasse. O cão São Bernardo jamais dirá isso para um cachorro de brinquedo, nem o estudioso para o ignorante, nem a pessoa que tem um emprego para um mendicante, nem a mulher bonita para aquela de aparência mediana. A reivindicação de igualdade, fora do campo estritamente político, é feita apenas por aqueles que se sentem, de uma forma ou de outra, inferiores. O que ela expressa são precisamente a coceira, a esperteza, a consciência distorcida de uma inferioridade que o paciente se recusa a aceitar. E, por isso, ele se sente ofendido. Sim, e, portanto, se ressente de qualquer tipo de superioridade nos outros; passa a caluniá-la e a desejar o seu aniquilamento. Na verdade, suspeita que a mera diferença seja uma reivindicação de superioridade. Ninguém deve ser diferente dele na voz, nas roupas, nas maneiras, nas recreações, nas preferências de comida. “Lá vai alguém que fala inglês de modo mais claro e agradável aos ouvidos do que eu — deve ser uma afetação vil, arrogante, cheia de pompa. Aqui está um camarada que diz que não gosta de cachorros — sem dúvida pensa que é bom demais para eles. Lá vai outro que não pôs uma moeda no jukebox — deve ser um daqueles eruditos que faz tudo para ser notado. Se eles fossem o tipo certo de sujeito, seriam iguaizinhos a mim. Não têm o direito de ser diferentes. É antidemocrático”. Agora, esse fenômeno útil não é nenhuma novidade. Tornou-se público e notório pelo nome de inveja, coisa que já era conhecida dos seres humanos há milhares de anos. Mas, até aqui, eles sempre a consideraram o vício mais odioso e também o mais cômico de todos. Os que estavam conscientes de sentir inveja tinham vergonha disso; aqueles que tinham a consciência dela não a perdoavam nos outros. A novidade prazerosa da situação presente é que vocês podem sancioná-la — torná-la respeitável ou até louvável pelo uso encantatório da palavra mágica democrático.


Sob a influência desse encantamento, aqueles que são, de um modo ou de outro, inferiores podem se dedicar de forma mais intensa e com mais sucesso do que nunca a puxar para baixo todo o restante do mundo, trazendo-os ao seu próprio nível. Mas isso não é tudo. Sob a mesma influência, aqueles que chegaram ou puderam chegar mais perto da humanidade no sentido mais genuíno, na verdade se afastaram dela, precisamente por medo de serem antidemocráticos. Fui informado, a partir de fontes seguras, de que os jovens de hoje muitas vezes suprimem um gosto incipiente por música clássica ou boa literatura porque isso os impediria de serem iguais a todo o mundo, e que as pessoas que realmente desejassem ser, e recebem a graça que os capacita para ser honestas, castas ou temperantes, a recusam, pois aceitá-la poderia torná-las diferentes, ofender novamente a “normalidade das coisas”, tirá-las do círculo da “irmandade”, prejudicar sua integração com o grupo. Elas poderiam tornar-se indivíduos (que horror!). 

Tudo está resumido na prece que supostamente uma jovem pronunciou recentemente: “Oh Deus, faça de mim uma garota normal do século vinte!” Graças aos nossos esforços, isso vai significar cada vez mais: “Faça de mim uma devassa, uma débil mental, uma parasita”. Nesse meio-tempo, como um efeito colateral bem-vindo, os poucos (cada vez menos) que não se encaixam na normalidade, tornando-se “como todo o mundo” de forma regular, homogênea e integrada, tendem cada vez mais a se tornarem os verdadeiros pedantes, excêntricos que todo o mundo de qualquer forma já achava que eles eram. Pois a suspeita muitas vezes gera a coisa suspeitada. (“Já que, independente do que eu faça, os vizinhos vão me achar uma bruxa ou um agente comunista, aquilo de que me rotularem, irei acabar me tornando”.) Em consequência disso, temos agora uma intelligentsia que, embora seja muito pequena, é muito útil à causa do Inferno. 


Mas isso não passa de um efeito colateral. Gostaria de fixar a sua atenção no movimento vasto, completo, rumo ao descrédito, e, finalmente, à eliminação de todo o tipo de excelência humanamoral, cultural, social ou intelectual. E não é lindo ver como a Democracia (no sentido mágico) está agora fazendo para nós todo o trabalho outrora feito pelas ditaduras mais antigas e pelos mesmos métodos? Vocês se lembram da história de como um dos ditadores gregos (eles os chamavam de “tiranos” na época) enviou um mensageiro a outro ditador para solicitar o seu conselho sobre os princípios do governo. O segundo ditador conduziu o mensageiro a um milharal e lá cortou com sua foice todas as hastes que estivessem um centímetro acima do nível das outras. A moral da história é simples: Não admita que ninguém entre os seus súditos se destaque, não deixe sobreviver ninguém que seja mais sábio, melhor, mais famoso ou até mesmo mais bonito que a massa. Passe a régua em todos para ficarem no mesmo nível; todos escravos, todos números, todos zé-ninguém. Todos iguais. Assim, os tiranos podem, em certo sentido, praticar a “democracia”.


Mas agora a “democracia” é capaz de fazer o mesmo trabalho sem qualquer outra tirania que não seja a sua própria. Ninguém agora necessita passar pelo campo com uma foice. As hastes menores vão agora passar a cortar fora as pontas das mais altas. As grandes começarão a cortar as suas próprias pontas pelo desejo de serem como todo o mundo. Já disse que garantir a danação dessas almazinhas, dessas criaturas que quase deixaram de ser indivíduos, é uma tarefa árdua e ardilosa. Mas, se vocês fizerem o esforço necessário e empregarem suas habilidades, poderão prever, com certo grau de certeza, o resultado. Os grandes pecadores parecem uma presa mais fácil de capturar. Mas acontece que eles são imprevisíveis. Mesmo depois de vocês os terem manipulado por setenta anos, o Inimigo poderá muito bem arrancá-los das suas garras no ano seguinte. Vejam bem, eles são capazes de um arrependimento verdadeiro. Eles têm uma consciência da culpa verdadeira. Se as coisas tomarem o rumo errado, estarão tão prontos a desafiar as pressões sociais em nome do Inimigo quanto estavam para desafiá-las em nosso nome. De certa forma, é mais trabalhoso rastrear e golpear uma mosca que foge rapidamente do que atirar a pouca distância num elefante selvagem. Mas o elefante dará mais trabalho se vocês não forem bons de mira. A minha experiência, como já disse, deu-se no setor inglês, e ainda recebo mais notícias a respeito dele do que dos outros setores. Assim, o que eu vou dizer agora poderá não se aplicar totalmente aos setores onde alguns de vocês vão atuar. Mas vocês poderão fazer as adaptações necessárias quando chegarem lá. Apesar disso, quase que com certeza, o que direi terá alguma aplicação. Se ela for muito pequena, vocês deverão trabalhar para fazer com que o país de que estiverem encarregados se torne mais parecido com aquilo em que a Inglaterra já se tornou.


 Naquela terra promissora, o espírito do eu sou tão bom quanto você já passou a ser mais do que uma influência puramente social e começa a se infiltrar no sistema educacional. Não sei dizer com certeza até onde ele chegou no presente momento, e isso não importa. Uma vez que tenham entendido qual é a tendência, poderão facilmente prever seus desdobramentos futuros; especialmente se nós mesmos desempenharmos um papel nesses desdobramentos. O princípio básico da nova educação é que os alunos ignorantes e vagabundos não devem sentir-se inferiores aos alunos inteligentes e esforçados. Isso seria “antidemocrático”. Essas diferenças entre os alunos — porque se trata, muito obviamente, de diferenças flagrantemente individuais — precisam ser disfarçadas. Isso pode ser feito em vários níveis. 

Nas universidades, as provas devem ser elaboradas de tal forma que quase todos os alunos obtenham boas notas. Os vestibulares devem ser feitos para que todos ou quase todos os cidadãos possam entrar nas universidades, quer tenham a capacidade (ou o desejo) de se beneficiarem com uma educação superior, quer não. Nas escolas, as crianças que forem muito estúpidas ou preguiçosas demais para aprender línguas, matemática e ciências podem ser levadas a fazer aquilo que as crianças costumavam fazer em seu tempo livre. É possível deixá-las, por exemplo, fazer bonequinhos de lama e dar a isso o nome de modelagem. Mas, em todo esse tempo, em nenhum momento deve-se mencionar o fato de elas serem inferiores às crianças que estão empenhadas. 

Não importa qual seja a bobagem em que estiverem envolvidas, a nova educação deve contemplar — penso que os ingleses já estejam usando essa expressão — a “igualdade de valor”. E é possível conceber um esquema ainda mais drástico. As crianças que estiverem aptas a passarem para uma classe mais adiantada podem ser mantidas na classe anterior usando métodos artificiais, com a justificativa de que as outras poderiam contrair algum tipo de trauma — por Belzebu, que palavra mais útil! — por serem deixadas para trás. Assim, o aluno mais inteligente permanecerá democraticamente acorrentado a seus colegas da mesma idade por toda a sua carreira escolar, e um menino capaz de compreender Ésquilo ou Dante será obrigado a ficar sentado, ouvindo seus contemporâneos tentando soletrar “Vovô viu a uva”. Em uma palavra, não seria absurdo esperar pela extinção virtual da educação quando o espírito do Eu sou tão bom quanto você tiver terminado de abrir seu caminho. Todos os incentivos para aprender e todas as penalidades por não se querer aprender vão desaparecer. Os poucos que possam querer aprender serão pervertidos; afinal, quem são eles para querer se destacar de seus colegas? De qualquer forma, os professores — ou devo dizer as babás? — estarão muito ocupados dando assistência aos ignorantes e tapinhas nas suas costas para gastar o seu tempo com o ensino de verdade. Não temos mais que planejar e trabalhar duro para espalhar prepotência imperturbável e ignorância incurável entre os homens. Os pequenos vermes mesmos farão isso por nós. É claro que isso só aconteceria se toda a educação se tornasse estatal. E é isso mesmo que vai acontecer, pois faz parte do mesmo movimento. 

Os impostos, designados para esse propósito, estão liquidando a classe média, a classe que estava preparada para salvar, gastar e fazer sacrifícios a fim de dar educação para seus filhos em escolas particulares. A extinção dessa classe, além de se associar à extinção da educação felizmente, é um efeito inequívoco do espírito que diz “eu sou tão bom quanto você”. Foi esse, afinal de contas, o grupo social que deu aos humanos a maioria absoluta dos seus cientistas, médicos, filósofos, teólogos, poetas, artistas, compositores, arquitetos, juristas e administradores. Se algum dia houve um feixe de trigo que necessitava que suas pontas fossem cortadas, com certeza era esse. Como um político inglês observou não muito tempo atrás: “Uma democracia não deseja grandes homens”. Seria despropositado perguntar a essa criatura se por desejar ela quer dizer “necessitar” ou “gostar de”. Mas é melhor deixar as coisas claras, pois aqui a questão de Aristóteles surge de novo. 

Nós, no Inferno, daríamos as boas-vindas ao desaparecimento da Democracia no senso estrito da palavra, o tal sistema político. Como todas as outras formas de governo, a democracia trabalha muitas vezes a nosso favor; mas, de uma maneira geral, ela está menos do nosso lado do que as outras formas. E o que temos de nos dar conta é que a “democracia” no sentido diabólico (eu sou tão bom quanto você, ser como todo o mundo, pertença ao grupo) é o instrumento mais refinado que podemos ter para extirpar as democracias políticas da face da terra. Pois a “democracia” ou o “espírito democrático” (no sentido diabólico) produz uma nação desprovida de grandes homens, uma nação composta essencialmente de analfabetos, seres moralmente frouxos pela falta de disciplina na juventude, cheios de autoconfiança que as bajulações criaram em cima da ignorância, e molengas em virtude de toda uma vida de mimos. E é nisso que o Inferno deseja que todas as pessoas democráticas se tornem.

 Pois quando uma nação assim entra em conflito com uma nação em que os filhos foram postos para estudar, onde o talento é colocado em um alto patamar, e onde a massa ignorante não é autorizada a ter nenhuma voz em assuntos públicos, apenas um resultado é possível. Recentemente, uma democracia surpreendeu-se ao descobrir que a Rússia a havia superado no avanço científico. Que exemplar delicioso de cegueira humana! Se toda aquela sociedade tem a tendência de se opor a qualquer tipo de excelência, como é que esperava que seus cientistas fossem excelentes? Nossa função é encorajar o comportamento, as maneiras, toda a disposição mental que as democracias naturalmente preferem e apreciam, porque são precisamente as coisas que, se descontroladas, irão destruir a democracia. Vocês podem até mesmo perguntar-se por que os próprios humanos não enxergam isso. Mesmo que não tenham lido Aristóteles (isso seria antidemocrático), era de se esperar que a Revolução Francesa lhes tivesse ensinado que o comportamento que os aristocratas apreciam naturalmente não é o comportamento que preserva a aristocracia. Então, eles poderiam ter aplicado o mesmo princípio a todas as formas de governo. Mas eu não gostaria de terminar nesse tom. Eu jamais gostaria — o Inferno nos livre! — de encorajar em suas mentes a ilusão — que vocês têm de incutir nas mentes de suas vítimas humanas — de que o destino das nações seja, em si mesmo, mais importante do que aquele de almas individuais. A derrota de povos livres e a multiplicação de estados escravos são para nós um meio (além, é claro, de ser divertido), mas o fim real é a destruição de indivíduos, pois somente os indivíduos podem ser salvos ou condenados, tornar-se filhos do Inimigo ou nosso alimento. O valor supremo, para nós, de qualquer revolução, guerra ou fome está na angústia individual, na traição, no ódio, na raiva e no desespero que elas são capazes de produzir.

 Eu sou tão bom quanto você é um meio útil para a destruição de sociedades democráticas. Mas essa ideia tem um valor muito mais profundo como um fim em si mesma, como um estado mental, que, ao excluir a humildade, a caridade, a satisfação e todos os prazeres da gratidão ou da admiração desvia um ser humano de quase toda estrada que poderia, por fim, conduzi-lo aos Céus. 


Mas vamos agora à parte mais prazerosa de minha tarefa. É minha incumbência propor um brinde em nome dos convidados, à saúde do Diretor Remeleca e da Academia de Treinamento de Tentadores. Encham suas taças. O que é isto que estou vendo? E esse delicioso buquê que exala do copo? Será possível? Senhor Diretor, retiro todas as minhas palavras ásperas com relação ao jantar. Pelo que posso perceber, e pelo odor que sinto, mesmo sob as precárias condições de guerra, a adega da Academia ainda possui algumas garrafas do clássico vinho Fariseu. Ora, ora, ora. É como nos velhos tempos… Segurem a taça debaixo de suas narinas por um momento, gentis-demônios. Segurem-na contra a luz. Olhem só para essas pequenas listras de fogo que se retorcem e emaranham, como se estivessem lutando entre si. E estão mesmo. Vocês sabem como esse vinho é destilado? Diferentes tipos de fariseus foram colhidos, pisoteados e fermentados num só recipiente para produzir um sabor delicado. Trata-se de tipos que foram bastante antagônicos uns para com os outros na Terra. Para alguns, seu único interesse eram regras, relíquias e rosários; outros só se interessavam por roupas sinistras, expressões tristes e fúteis e tradicionais abstinências ao vinho, ao carteado ou ao cinema. Ambos tinham em comum a presunção e a distância quase infinita entre a sua atitude verdadeira e qualquer coisa que o Inimigo realmente é ou ordena. A perversidade de outras religiões era a única doutrina realmente viva na religião de cada um deles; a difamação era o seu evangelho e difamar os outros, a sua litania. Como eles se odiavam uns aos outros lá em cima onde o sol brilha! Quanto mais ainda se odeiam agora que eles estão para sempre associados, mas nunca reconciliados. Seu assombro, seu ressentimento, combinados à exasperação de sua maldade eternamente impenitente, passando para a nossa digestão espiritual, funcionará como fogo. Fogo negro. Tendo dito isso, meus amigos, será péssimo para nós se o que a maioria dos humanos entenderem por “religião” se esvanecer da Terra, pois ela ainda pode nos enviar pecados realmente deliciosos. A fina flor do profano só pode crescer na vizinhança íntima do sagrado. Em nenhum lugar a nossa tentação é tão bem-sucedida quanto precisamente aos pés do altar. Vossa Iminência, vossas Malevolências, queridos Espinhentos, Sombrios e demais Gentis demônios: ergamos nossas taças e brindemos ao Diretor Remeleca e à Academia!"  CARTAS DE UM DIABO A SEU APRENDIZ

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Você foi criado para adorar? Ou foi te dado o privilégio de contemplar o ser mais sublime do universo? C.S.Lewis





VOCÊ FOI CRIADO PARA ADORAR OU PARA TER O PRIVILEGIO DA AUTOCONSCIENICA, CONSCIENCIA  DO MUNDO E DO CRIADOR?

ADORAR É UMA CONSEQUENCIA DA CRIAÇÃO HUMANA AO CONTEMPLAR O CRIADOR OU UMA FINALIDADE?



"UMA PALAVRASOBRE LOUVOR É POSSÍVEL (e eu até espero que seja assim) que este capítulo seja desnecessário para a maioria das pessoas. Quem nunca foi sensível o bastante para enfrentar as dificuldades das quais ele trata talvez até o ache engraçado. Se alguma dessas pessoas rir, eu não me incomodarei com isso; uma dose de comicidade, em qualquer discussão, não faz mal, por mais sério que seja o assunto. (Em minha própria experiência, as coisas mais engraçadas aconteceram durante as conversas mais sérias e sinceras). Quando comecei a me aproximar da crença em Deus, e mesmo depois de ter sido totalmente convertido a ela, encontrei uma dificuldade no fato de que as pessoas religiosas, todas elas, costumam exigir, muito abertamente, que "louvemos" a Deus, inclusive sugerindo que o próprio Deus exige que seja assim. 


 Todos nós costumamos desprezar aqueles que fazem questão de continuamente afirmar a própria virtude, inteligência ou prazer; costumamos desprezar com mais intensidade as multidões que se reúnem ao redor de todo ditador, de todo milionário, de toda celebridade que satisfaça essa exigência. Por isso, começou a surgir em minha mente um retrato ao mesmo tempo ridículo e horrível tanto de Deus quanto de seus adoradores. Nesse sentido, os salmos eram particularmente incômodos: "Louve ao Senhor"; "ó louvai ao Senhor comigo"; "Louvai-o". (E por que cargas d'água louvar a Deus consiste, frequentemente, em dizer às outras pessoas que o louvem? Por que até mesmo dizer às baleias, tempestades de neve etc. que continuem fazendo o que certamente fariam, quer disséssemos a elas ou não?) Pior ainda foi a declaração colocada na boca do próprio Deus: "Quem me oferece sua gratidão como sacrifício, honra-me" (Sl 50.23). Foi tão medonho quanto dizer: "O que mais quero ouvir é que sou bom e grande''. O pior de tudo foi a sugestão da mais tola barganha pagã, a do selvagem que faz ofertas ao seu ídolo quando a pesca é boa e que bate nele quando não pesca nada. Por mais de uma vez, os salmistas parecem estar dizendo: "Você gosta de elogios. Faça isso para mim e receberá alguma coisa em trocà'. Assim, no Salmo 54 o poeta começa dizendo: "Salva-me"(v. 1) e, no versículo 6, acrescenta uma persuasão: "Eu te oferecerei um sacrifício voluntário; louvarei o teu nome, ó Senhor''. Repetidas vezes, o narrador pede para ser salvo da morte com base no fato de que, se Deus permitir que seus suplicantes morram, ele não receberá mais louvor deles, pois os fantasmas no Sheol não podem louvar (30.9; 88.10; 1 19.175). E até mesmo a quantidade de louvor parecia ser importante: "Sete vezes por dia eu te louvo" ( 119.164). Era extremamente angustiante. Fazia com que as pessoas pensassem naquilo em que elas menos queriam pensar. Eu até poderia compreender a gratidão, a reverência e a obediência a Deus, mas não entendia  esse elogio perpétuo.


 E houve um autor contemporâneo que em nada ajudou a apaziguar os nossos ânimos ao falar sobre o "direito" de Deus de ser louvado. Eu ainda considero "direito" uma palavra ruim para expressar essa ideia, mas acredito que agora entendo o que o autor quis dizer. Talvez seja mais fácil começar com objetos inanimados, que não têm direitos. O que queremos dizer quando afirmamos que um quadro é "admirável"? Certamente não queremos dizer que ele é admirado (e talvez seja), pois uma obra ruim é admirada por milhares e uma obra boa pode ser ignorada. Nem que ele "mereça" admiração no mesmo sentido que um candidato "merece" que notas altas lhe sejam atribuídas pela banca de examinadores - ou seja, que um ser humano sofrerá uma injustiça se não for recompensado. O sentido no qual o quadro "merece" ou "exige" admiração é o seguinte: a admiração é a resposta correta, adequada ou apropriada a ele, e essa admiração, se satisfeita, não será "jogada fora"; por outro lado, se não o admirarmos, seremos estúpidos, insensíveis e grandes derrotados, pois teremos perdido algo. Desse modo, muitos obj etos que conhecemos, tanto na natureza quanto no mundo da arte, podem merecer, ser dignos de ou exigir admiração. Foi a partir desse raciocínio, que para alguns pode até parecer irreverente, que achei melhor abordar a ideia de que Deus "exige" o louvor. Ele é aquele objeto a ser admirado (ou, se você preferir, apreciado), o que significa simplesmente despertá-lo, trazê-lo para o mundo real. Por outro lado, não apreciá-lo significa perder a maior das experiências e, no fim, perder tudo. As vidas incompletas e mutiladas dos que estão fora do tom, que nunca se apaixonaram, nunca conheceram a verdadeira amizade, nunca se envolveram com um bom livro, nunca desfrutaram do sentimento do ar da manhã em seus rostos, nunca (e eu sou um desses) apreciaram futebol, são imagens débeis disso. 


Mas, é claro, isso não é tudo. Deus não "exige" louvor somente como o objeto supremamente belo e totalmente satisfatório a ser louvado. Ele aparentemente o ordena como legislador que é. Os judeus foram orientados a oferecer sacrifícios. Nós sentimos que temos o dever de ir à igreja. Mas, por outro lado, isso foi uma dificuldade pelo simples fato de eu não entender nada do que tentei dizer anteriormente, no capítulo 5. Não enxergava que é no processo de ser adorado que Deus comunica sua presença aos homens. E o louvor não é, de fato, o único modo de adorar a Deus. No entanto, para muitas pessoas, em muitas épocas, a "beleza do Senhor" é revelada principalmente ou somente enquanto nós o adoramos juntos. Mesmo no judaísmo, a essência do sacrifício não era, em verdade, o fato de os homens oferecerem bois e bodes a Deus, mas o fato de que, ao fazê-lo, Deus se apresentaria aos homens. No ato central de nossa própria adoração, é claro, isso se torna bem mais evidente: De uma forma patente e até física, existe, por um lado, o Deus que concede e, por outro, nós, os que recebemos. A infeliz ideia de que Deus deveria, de um jeito ou de outro, precisar da nossa adoração ou desejá-la da mesma forma como uma mulher vaidosa deseja receber elogios, ou um autor vaidoso oferece seus novos livros a pessoas que nunca o conheceram ou ouviram falar dele, é implicitamente respondida com as seguintes palavras: "Se eu tivesse fome, precisaria dizer a você?" (Sl 50.12). Mesmo se fosse possível conceber tal deidade absurda, ela dificilmente viria a nós, as mais inferiores das criaturas racionais, para satisfazer seu apetite. Eu não quero que o meu cachorro lata em sinal de aprovação aos meus livros. E agora que parei para pensar nisso, existem algumas pessoas cuja crítica, por mais favorável que seja, não me seria tão gratificante. No entanto, o mais óbvio sobre o louvor - quer dirigido a Deus ou a qualquer outra coisa - eu estranhamente não consegui compreender. Pensei nele como se fosse um elogio,  aprovação ou honraria.


 Nunca havia notado que toda apreciação transborda espontaneamente em forma de louvor quando (e às vezes até mesmo se) a timidez ou o medo de incomodar os outros são deliberadamente admitidos e analisados. O mundo está cercado de louvor: amantes elogiam seus amados e suas amadas; os leitores elogiam seu poeta preferido; os caminhantes elogiam o campo; os jogadores elogiam seus jogos favoritos; há o louvor ao clima, aos vinhos, às louças, aos atores, aos carros, aos cavalos, às faculdades, aos países, a personagens históricos, a crianças, flores, montanhas, selos e insetos raros e, às vezes, até mesmo a políticos e estudiosos. Eu não havia notado como as mentes mais humildes e, ao mesmo tempo, mais equilibradas e capazes prestavam mais louvores, enquanto as excêntricas, desajustadas e descontentes elogiavam menos. Os bons críticos encontraram algo para elogiar em muitas obras imperfeitas; os maus continuamente limitavam-se à lista de livros que tínhamos a permissão de ler. O homem saudável e sincero, mesmo se educado no luxo e com bastante experiência em boa gastronomia, seria capaz de elogiar uma refeição muito modesta; os que sofrem de indigestão e que são arrogantes, por sua vez, acham defeito em tudo. Exceto onde as circunstâncias intoleravelmente adversas interferem, o louvor parece quase ser uma manifestação de saúde interior. E isso também acontece nos casos em que, por conta da falta de habilidade, as formas pelas quais o louvor se expressa são muito grosseiras ou mesmo ridículas. Deus sabe como muitos poemas de louvor dirigidos a um ser amado e terreno são tão ruins quanto os nossos piores hinos, e que uma antologia de poemas de amor que pudessem ser lidos por todos e por toda a eternidade seria provavelmente um teste tão doloroso ao gosto literário quanto os Hinos Antigos e Modernos. Eu não havia notado que, assim como os homens espontaneamente elogiam as coisas todas que valorizam, eles também espontaneamente nos conclamam a juntar-se a eles  nesse louvor: "Ela não é adorável? Aquilo não foi glorioso? Você não acha que isso é maravilhoso?". 

Ao conclamar todas as pessoas a louvar a Deus, os salmistas estão fazendo o que todos os homens fazem quando falam sobre as coisas com as quais se importam. Toda a minha dificuldade, a mais ampla dificuldade sobre o louvor a Deus, baseava-se em minha absurda resistência - no que diz respeito àquele que é o que há de mais valioso - ao que temos prazer em fazer, ao que não conseguimos deixar de fazer e em relação a tudo o mais que valorizamos. Penso que temos prazer em louvar o que apreciamos porque o louvor não somente expressa como também complementa a apreciação; ele é a própria consumação dessa apreciação. Quando amantes continuamente dizem um ao outro o quão belo ele (ou ela) é, não o fazem apenas por dever; o prazer é incompleto até que seja expresso. É frustrante descobrir um novo autor e não poder dizer a ninguém quão bom ele é; chegar de repente em uma curva de uma estrada que corta um vale encravado na montanha, contemplar uma paisagem de esplendor inesperado e então ter de manter silêncio porque as pessoas que estão com você não dão a mínima para aquele cenário; ouvir uma boa piada e não encontrar ninguém para compartilhá-la (o ouvinte perfeito morreu um ano antes). Isso acontece quando as formas pelas quais nos expressamos são inadequadas, como elas efetivamente são na maioria das vezes. Mas e se uma pessoa encontrasse a maneira adequada de louvar a essas coisas com perfeição, de modo pleno e sincero, transformando em poesia, música ou pintura o sentimento de admiração que quase explode dentro dela? Assim, o objeto seria, de fato, plenamente apreciado e o nosso prazer teria chegado ao auge de sua perfeição. Quanto mais digno o objeto, mais intenso seria esse prazer. Se fosse possível a uma alma criada (eu quero dizer, na máxima medida concebível para um ser finito) "apreciar" plenamente, ou seja, amar e ter prazer no mais digno de todos os objetos existentes e, ao mesmo tempo, em todos os momentos expressar perfeitamente esse prazer, então essa alma estaria em suprema bem-aventurança.


 É ao longo destas linhas que descubro a maneira mais fácil de entender a doutrina cristã de que o "céu" é um estado no qual os anjos agora - e os homens no futuro - estão perpetuamente empenhados em louvar a Deus. Isso não significa que, como se pode tão tristemente sugerir, seja como "estar na igrejà', pois nossos "cultos", tanto em sua conduta quanto em nossa capacidade de participação, são meras tentativas de adorar, tentativas nunca plenamente bem-sucedidas, constituindo, na maioria das vezes, 99,9% de fracasso e, outras vezes, fracasso total. Não somos cavaleiros, mas aprendizes na escola de montaria, pois boa parte das nossas quedas e escoriações, bem como os músculos doloridos e a severidade do exercício, em muito superam aqueles poucos momentos nos quais estivemos, para nosso espanto, verdadeiramente galopando, sem temor e sem desastres. Para absorver o real significado da doutrina, devemos supor estar em perfeito amor com Deus - inebriados, inundados; dissolvidos por esse prazer que, longe de permanecermos presos e incomunicáveis em nós mesmos, nos torna imersos em uma felicidade quase intolerável que flui incessantemente de dentro de nós por meio de uma expressão natural e perfeita, fazendo com que a nossa alegria não mais se separe do louvor no qual ela se libera e se expressa, assim como o brilho que um espelho recebe não se separa do brilho que reflete. O catecismo escocês diz que o fim supremo do homem é "glorificar a Deus e desfrutá-lo para sempre''. Mas então saberemos que essas coisas são a mesma coisa. Desfrutar plenamente é glorificar. Ao ordenar que o glorifiquemos, Deus está nos convidando a desfrutarmos dele. Enquanto isso, é claro, estamos simplesmente, como Donne diz, afinando os nossos instrumentos. A afinação da orquestra pode ser prazerosa, mas somente para os que, em certa medida, embora pequena, conhecem a sinfonia e a absorvem. .


Os sacrifícios judaicos e mesmo os nossos próprios ritos mais sagrados, à medida que ocorrem na experiência humana, são, como o processo de afinação, uma promessa, não um desempenho. Assim sendo, como na afinação, eles podem ter em si muita responsabilidade e pouco prazer ou nenhum prazer. Mas a responsabilidade existe para o prazer. Quando cumprimos nossas "responsabilidades religiosas': somos como pessoas que abrem canais em uma terra seca a fim de que, quando a água finalmente brotar, possam estar prontas para tirar proveito dela. Ou, ao menos, parcialmente. Mesmo agora, há momentos felizes quando uma corrente desliza pelos berços secos; assim como são felizes as almas nas quais isso acontece com frequência. Quanto ao elemento de barganha proposto nos salmos ("faça isso e eu o louvarei"), esse arroubo tolo de paganismo certamente existiu. A chama não sobe pura do altar. As impurezas, no entanto, não são a sua essência. E não estamos todos em posição de desprezar mesmo os salmistas mais brutos no que diz respeito a esse quesito. É claro que não cometeríamos gafes em nossas palavras como eles cometem. Mas há, para o bem e para o mal, uma oração que dispensa palavras. Por muitas vezes, e de joelhos, fico chocado ao descobrir os tipos de pensamento que, em alguns momentos, dirijo a Deus - que ofertas infantis lhe fiz de fato, que pedidos realmente apresentei ou mesmo os acordos ou comprometimentos absurdos que eu propus, alguns deles conscientemente. Há, em algum lugar dentro de mim, um coração pagão e selvagem, pois, infelizmente, a perspicácia ao mesmo tempo idiota e tola do paganismo parece ter muito mais poder de sobrevivência do que os seus elementos inocentes e até mesmo belos. Uma vez que você tenha poder, é fácil silenciar os instrumentos, calar as danças, desfigurar as estátuas e esquecer as histórias; mas não é fácil matar a criatura selvagem, insaciável e assustada que se contorce e grita em nossa alma - a criatura a quem Deus pode muito bem perguntar: "Você pensa que eu sou como você?" (SI 50.21). 


 Mas tudo isso, como eu disse, é algo que ficará claro para apenas alguns dos meus leitores. Em outros, uma comédia de erros como essa e uma jornada assim tão tortuosa em busca do óbvio se traduzirão em uma ocasião perfeita para que se dê generosos risos."