1-Antecedente Histórico
Teologia Liberal
Teologia Liberal surgiu em meados do século XIX e tentou conciliar os conceitos da Igreja Protestante com as aspirações humanas positivas, buscando uma adaptação entre religião, pensamento e cultura moderna, que são influências do Iluminismo e Racionalismo. Neste período tudo era submetido a uma análise racional, incluindo a Bíblia. Com isso, a fé foi rebaixada pela razão humana, que triunfou sobre ela.
Para este movimento teológico, o amor a Deus é realizado basicamente no amor ao próximo, e o Reino de Deus é visto como uma realidade presente encontrada na sociedade transformada sob o aspecto ético. Neste mesmo período é enfatizado o método histórico-crítico de interpretação da Bíblia, que negava a inspiração divina das Escrituras e abalou a confiabilidade desta.
O antropocentrismo crescia e a importância das Escrituras era diminuída a meros relatos humanos. O liberalismo teológico clássico foi uma reação contra o poder da religião institucionalizada, e principalmente contra a aceitação da infalibilidade das Escrituras e inerrância da Palavra de Deus por parte da Igreja. Fundamentado no Iluminismo do século XVIII, ele afirmava que o conhecimento tradicional sobre Deus, pensado de forma metafísica, não compactua com o conhecimento científico. Não havendo espaço para categorias como sobrenatural na história, esta seria apenas uma mera relação de causas e efeitos. Essa compreensão deu início a uma busca da Palavra de Deus dentro das Escrituras, tornando-se mais intensa com a utilização do método histórico-crítico, que ousou fazer a separação entre as duas coisas. Os críticos então tinham o direito de emitir juízos sobre afirmações bíblicas como sendo ou não verdadeiras. Os primeiros estudiosos que aplicaram este método ao estudo das Escrituras negavam que a Bíblia fosse, de fato, a Palavra de Deus inspirada. Revista de Cultura Teológica - v. 18 - n. 70 - ABR/JUN 2010 p. 70-71José Elenito Teixeira Morais, Luiz Carlos Ferreira e Renata Ferreira Gomes
2- Citações de Karl Barth sobre a Palavra de Deus
A Bíblia não é u m livro de receitas, é u m documento único da revelação divina. É preciso que a revelação nos fale de maneira que possamos compreendê-la. Em cada época, a Igreja viu-se na obrigação de responder ao que lhe era dito n a Bíblia. Ela viu-se obrigada a fazê-lo, cada vez, com uma outra língua e com outras palavras, diferentes daquelas da Escritura. ...
Mas Jesus Cristo governa em sua Palavra pelo Espírito Santo. O governo da Igreja é, assim, idêntico com a Sagrada Escritura, através do seu teste m u n h o dele. Portanto, a Igreja deve continuamente estar o c u p a d a com a exposição e aplicação da Escritura. O n d e a Bíblia se torna um livro morto com a cruz sobre a capa e margens douradas, o governo de Jesus na Igreja é inativo. N este caso, a Igreja não é mais aquela santa Igreja universal, mas permanece a ameaça de r u p tu ra naquilo que é profano e separatista. Evidente q u e até mesmo esta “Igreja” se chamará pelo nome de Jesus Cristo. Entretanto , não são as palavras, m as a realidade que interessa; e tal Igreja não estará n u m a posição para trazer a realidade à ação. Esboço de uma dogmática
Os profetas e os apóstolos se situam no momento da revelação histórica cujo documento é a Escritura. Nós damos testemunho da Revelação....
Se o pregador se dá por tarefa expor uma idéia sob uma forma qualquer – mesmo se esta idéia resulta de uma exegese séria e adequada – então não é a Escritura que fala, mas fala-se sobre ela. Para ser positivo, a pregação deve ser uma explicação da Escritura. Eu não tenho que falar "sobre", mas "de", tirando da Escritura o que eu digo. Eu não tenho que dizer, mas que redizer...
Vejamos agora o aspecto positivo desta afirmação: a pregação deve ser conforme a Revelação. Devemos partir do fato de que o próprio Deus deseja revelar-se; é Ele que deseja testemunhar sua Revelação; é Ele que a realizou e que a deseja realizar. Assim, a pregação tem lugar na obediência, escutando a vontade de Deus.
Dissemos acima que a pregação tem um ponto de partida único, a saber, que Deus se revelou. É preciso dizer também, que ela tem, da mesma forma, um único ponto de chegada: o cumprimento da revelação, da redenção que vem a nosso encontro. De uma extremidade a outra, o Novo Testamento tende para o cumprimento da salvação. Mas isso não contradiz o "tudo foi cumprido de uma vez por todas".
Cristo que veio, é também aquele que voltará. A vida da fé é orientada para este dia da Parousia. Este ponto de partida e este ponto de chegada se resumem nesta declaração: "Cristo é o mesmo ontem, hoje e eternamente". E, dado que nós esperamos tudo de Cristo, pode-se dizer que cristologia e escatologia não são senão uma só coisa. Assim, a revelação está tanto na frente como atrás de nós....
É no meio chamado Igreja que a pregação tem lugar. Ela está ligada à existência e à missão da Igreja. É precisamente por esta razão que ela deve ser conforme a Revelação. É preciso relembrar que esta se situa no quadro do Antigo e do Novo Testamento.
O sacramento remete ao fato da Revelação, o qual Deus realizou. As Escrituras Sagradas remetem à qualidade da Revelação. É ocioso opor Sacramento à pregação.
A Revelação, ação divina, tem lugar no seio da vida humana e da história humana. Todavia a Igreja não pode transmiti-la de um modo imediato. Para que este evento seja sempre atual e verdadeiro, ela tem necessidade das Escrituras Sagradas, que são o testemunho dos intermediários desta Revelação.
A Igreja repousa sobre o fundamento de testemunhas que foram chamadas, de uma maneira particular, a serem seus apóstolos. Desde que se dá testemunho da Revelação – isto é, desde que se lê e se explica a Escritura – a Igreja deve compreender que ela não vive por si mesma, que esta vida não é sua própria vida, uma vida que ela tiraria de seu próprio interior, mas que ela está fundamentada sobre a única e exclusiva ação de Deus realizada em Israel e em Cristo (estes dois centros da Revelação: um povo e um Salvador).
O pregador deve se apoiar no movimento da Palavra de Deus. Não é suficiente dizer ou ter lido em algum lugar que a Bíblia é a Palavra de Deus para saber o que ela deseja dizer. Na realidade ela não o é no mesmo sentido em que se diz, por exemplo, que o Código Civil contém o pensamento do Estado. Para compreender o que se passa na realidade, seria melhor dizer que a Bíblia torna-se Palavra de Deus. E desde que ela se torna para nós, ela o é. O pregador é chamado a viver uma aventura com a Bíblia, há um intercâmbio contínuo entre ele e a Palavra de Deus. Quando falamos em mobilidade, queremos dizer, ser dócil a esse movimento da Palavra, deixar-se levar através das Escrituras.
Se a Igreja é constituída pelo testemunho dos apóstolos, intermediários da Revelação, qual é neste contexto, o papel da pregação? – Ela tem unicamente que explicar este testemunho.
Nós partimos deste fato: a Igreja é o lugar onde a Bíblia é aberta. Foi aí que Deus falou e fala. Aí Ele nos dá uma missão, uma ordem....
e a pregação é fiel a Bíblia, então ela não pode ser fastidiosa. A Escritura é, na realidade, tão interessante, e ela tem a nos dizer tantas coisas novas e apropriadas para nos abalar, que os ouvintes não podem em verdade, ser levados a dormir!...
...Ora, a Escritura Santa é o testemunho exclusivo da Revelação de Deus, o único meio de transmissão da Palavra de Deus....
...quatro critérios das Escrituras Sagradas que testemunham a Revelação...
Do começo ao fim, a Bíblia diz sempre uma mesma coisa, uma coisa única, ela o faz porém, constantemente, de outra maneira. Variedade da Escritura tem também esta conseqüência, que cada texto em cada época fala ao homem da maneira que é necessária para ele. É por isso que não há somente o trabalho do filólogo, mas é preciso procurar também no texto da Palavra de Deus para a comunidade....
...a Revelação é a Palavra encarnada, e por isso mesmo ela se tornou um evento histórico....
A Bíblia é o único documento da Revelação, mas um documento suficiente. É por isso que nós a chamamos Escritura Santa, a Palavra de Deus que vem até nós. Se se compreende que este livro é realmente o testemunho da Palavra de Deus, parece inútil falar do assunto e do tema do sermão, não há um assunto, senão um tema: A Revelação de Deus, Jesus Cristo. Entretanto, o que figura no texto bíblico – lembramo-nos – não é a Revelação propriamente dita, mas o testemunho da Revelação. E mais, este testemunho é expressão humana; ele nos é dado pelos profetas e apóstolos que não falam de seu próprio entendimento, mas que foram constrangidos (como disse Paulo), que não poderiam fazer de outra forma (como dizem os profetas). A proclamação do Evangelho. São Paulo: Novo Século. Centro Acadêmico "Eduardo Carlos Pereira" - 1963
Barth (1886-1968) foi um dos grandes nomes da Teologia Cristã Protestante. Educado na Teologia Liberal, tendo como principal orientador Adolf Von Harnack, ele decepcionou-se com esta teologia e inclusive com seu mentor, por apoiarem publicamente a política de guerra do Kaiser Wilhelm II, da Alemanha, em 1914.
Em 1919, a atmosfera tranqüila da teologia européia viu-se perturbada pelo aparecimento de um comentário da Carta aos Romanos, escrito por certo ministro ainda desconhecido, Karl Barth. Segundo disse um escritor, Barth pegou uma carta escrita em grego característico do primeiro século da Era Cristã e conseguiu torná-la uma exposição especial para as necessidades do homem do século vinte. Todos os teólogos recentes devem alguma coisa a Barth, mesmo nos casos nos quais os teólogos somente reagem contra ele. Atualmente se diz com certa freqüência que vivemos numa época pós-barthiana. Entretanto, mesmo que seja verdade, o fato é que a presente época ostenta as marcas da contribuição feita por Barth. Barth nasceu em 1886 em Basiléia, na Suíça, e estudou sob a influência de teólogos liberais, como Harnack e Hermann.
Em 1911, ele começou seu pastorado de dez anos na vila suíça de Safenwill, onde ele escreveu seu Comentário da Carta aos Romanos. Em 1921, tornou-se professor em Gottingen e em 1929 transferiu-se para Bonn. Barth observou com atenção ascensão política de Hitler e foi um dos fundadores da Igreja Confessional, que resistiu a todas as tentativas dos “Cristãos da Alemanha” no sentido da união do cristianismo com o nazismo.
Ele colaborou na elaboração da Declaração de Barmen, que, em verdadeiro desafio lançado ao totalitarismo de Hitler, afirmava que Deus é o único Führer (líder) da Igreja. Em 1935, por ter se recusado a jurar fidelidade ao nazismo, ele teve de deixar o território da Alemanha. Aceitou, então, uma cátedra de teologia na Universidade de Basiléia, da qual só veio a sair por aposentadoria, em 1962.
Barth começou como teólogo liberal, acreditando que o Reino de Deus pudesse estabelecer-se mediante os esforços de homens portadores de dedicação cristã. A Primeira Guerra Mundial causou um tremendo choque ao otimismo que o caracterizava. Quando vi como as nações civilizadas estavam enfurecidas na orgia da destruição, teve a impressão de estar o homem numa condição tão desesperada que seus problemas não seriam solucionados apenas com mudanças operadas nas estruturas políticas e econômicas. Por algum tempo ele esteve perplexo com as deficiências nos sermões que tinha de pregar semanalmente. Muitas pessoas vinham ouví-lo cada semana, mas, que podia ele dizer a elas? Não raro, os ouvintes saíam do culto em verdadeiro estado de desapontamento, pois não lhes parecia que seus sermões fizessem a necessária confrontação com os problemas que mais prendiam a atenção de todos.
Barth consultou os teólogos de então, mas percebeu que eles nada tinham que pudesse ajudar a um pregador de comunidade modesta. Os teólogos ignoravam os problemas relacionados com a pregação, pelo fato de que a teologia tinha se tornado acadêmica, mais do que eclesiástica. Posteriormente, já como teólogo, Barth tinha a convicção de que a única razão para que existam teólogos é que eles sejam capazes de ajudar e criticar a obra a que o pregador se destina.
Se os teólogos ignoram a tarefa do pregador, eles terminarão por entregar-se a murmúrios inaudíveis a respeito de Deus, esquecidos de que têm uma terefa mais elevada do que a de manipularem, de maneira um pouquinho diferente, as mesmas idéias já muito comuns no mundo moderno. Uma vez que não pôde encontrar nenhuma ajuda no campo da teologia, Barth se voltou para a Bíblia, em cujas páginas ele encontrou “um estranho e novo mundo”, bem mais cativante do que as lições da mais recente filosofia. Ele não tinha nenhuma intenção de tornar-se teólogo; apenas tinha a esperança de que, de uma perspectiva bíblica, seria possível adicionar “uma pitada de tempero” para melhorar o sabor da teologia que outros estavam produzindo.
Entretanto, depois do aparecimento de seu Comentário da Carta aos Romanos, ele foi empurrado para o centro mesmo das discussões teológicas. p.81
Compara-se ele com alguém caindo em lugar escuro, tudo fazendo para se firmar. Para sua grande surpresa, ele tinha tocado numa corda destinada a acionar um sino e, uma vez que as badaladas se fizeram ouvir, toda a cidade se despertou. A teologia de Barth não é fácil de ser resumida, pelo fato de que ele tem escrito mais do que qualquer outro teólogo desde Tomás de Aquino. Sua obra mais extensa, a “Dogmática da Igreja”, tem mais de oito mil páginas, mesmo incompleta. Outra dificuldade para se fazer um resumo consiste no fato de que seu pensamento passou por mudanças muito significativas.
Ele costuma ressaltar que a teologia é um esforço finito e humano de compreender a Deus e exige que se mantenha um espírito de constante reforma e revisão de conceitos. A Teologia deve levar em consideração as condições contemporâneas. Nunca bastará que simplesmente se repita o que disseram os teólogos do passado. Eles foram realmente grandes, pelo fato de que fizeram aplicação da Palavra de Deus atendendo às exigências de sua época. Em vez de ficarmos repetindo suas idéias, o que temos de fazer é realizar para nosso tempo o que eles entenderam necessário para o tempo quando viveram. Barth insiste que seus alunos leiam muito, tendo a Bíblia numa das mãos e os jornais na outra. Uma vez que se tenha em mente que o mundo passou por muitas mudanças durante a vida de Barth, não se estranhará que sua teologia tenha se alterado. Todavia, há temas básicos que permeiam toda a sua teologia, dando-lhe uma consistência fundamental. A teologia de Barth, em seu todo, parte da convicção que ele sempre expressou de que, por mais de um século, os teólogos tinham enveredado por um caminho que os conduzia a erros. A teologia obstinava-se no esforço de partir do estudo do homem para a compreensão de Deus. Schleiermacher ensinou que quando os homens olhassem para dentro de si poderiam encontrar a Deus. Ritschl, por exemplo, procurou levar seus leitores a encontrar Deus nas preocupações éticas que tinham. Outros pensadores insistiram na possibilidade de encontrar Deus nas experiências místicas do homem ou na razão humana. Barth diz que todas essas vias que pretendem partir do homem para Deus não passam de becos sem saída. Na Bíblia, verifica-se que não é o homem que procura por Deus, e, sim, Deus mesmo que procura pelo homem. Através de todas as transformações sofridas por sua teologia, essa concentração do pensamento de Barth, que consiste em mostrar como é Deus quem procura pelo homem, jamais sofreu qualquer mudança.
Barth distingue entre religião e fé. Religião é a procura de Deus por parte do homem e resulta sempre em que o homem encontre um tipo de deus correspondente aos desejos que tem. Isso não significa uma crítica levantada só contra as religiões não cristãs, pois também os cristãos criam religiões e a crítica mais severa de Barth contra a religião visa exatamente a religiões cristãs. Jesus é a revelação divina que destrói qualquer religião. Os cristãos dos primeiros séculos eram considerados ateus pelo fato de agirem de modo a destruírem os deuses feitos pelos homens naqueles tempos. Em face dessa consideração, não deixaria de ser um sinal muito salutar se pudéssemos ver os cristãos ainda sob suspeitas de ateísmo. Pelo fato de que temos um Deus vivo, Barth previne-nos contra a tendência de identificar a Palavra de Deus com qualquer forma estereotipada ou instituição humana.
Para ele, nem mesmo a Bíblia deve ser identificada como sendo a Palavra de Deus.?/
O erro do fundamentalismo, no seu entender, consiste em ver a Bíblia como se ela fosse um “Papa-de- papel”, com todas as características de auto-suficiência. Para Barth, as palavras registradas na Bíblia e as que foram proferidas por Jesus não passam de “sinais”. Pode-se ler a Bíblia sem que se tenha o privilégio de ouvir a Palavra de Deus. Entretanto, é certo que a Palavra de Deus veio até nós mediante esses sinais. Um dia qualquer, encontrando-nos a ler uma passagem das Escrituras, a Palavra de Deus poderá surpreender-nos falando conosco exatamente na situação em que nos encontramos. p.82
Os escritores bíblicos procuraram transmitir-nos a revelação que receberam de Deus e, ao lermos o que escreveram, o mesmo Deus que lhes falou poderá falar-nos também. Assim entendida, conclui Barth, a Bíblia é um relato de uma revelação passada e é uma promessa de revelação futura.
Revelação para Barth não significa que recebermos uma nova informação ou teologia que não pudéssemos obter através de esforços próprios. Deus não revela informações, mas, sim, a Si mesmo. A Palavra de Deus é sempre dirigida a uma pessoa em situação peculiar. Quando Deus chama, diz Barth, ele não chama estação por estação transmissora, ele chama pessoa por pessoa. Em sua primeira obra publicada, Barth insistiu no conceito de que Deus é “Inteiramente Outro”. Os críticos de Barth têm objetado que, se Deus é na verdade inteiramente Outro, segue-se que não podemos entender nada a respeito dele, mesmo que se revele. Entretanto, Barth nunca negou que haja lugar para uma analogia entre Deus e o homem, de modo tornar possível o entendimento de Deus por parte do homem. Ao designar Deus de Entidade inteiramente Outra, o que Barth quis dizer essencialmente é que Deus é uma realidade distinta de nós. Ele se recusava a fazer uso do termo “Deus”, para descrever o “espírito de humanidade” ou os “aspectos produtivos do conceito de valor no universo.” Além disso, ele desejava ressaltar que não podemos chegar à compreensão de Deus partindo da consideração do ser humano no que tenha de melhor, apenas adicionando-lhe alguns superlativos. Deus não é nenhuma culminação de tudo quanto seja bom no homem. Mesmo quando o homem alcança o cumprimento das mais elevadas virtudes, ainda assim não passará de servo inútil, que terá de ficar na inteira dependência do perdão divino.
Pelo fato de que Barth nega a capacidade do homem de alcançar uma compreensão de Deus mediante as faculdades da razão, com freqüência se ouve chamá-lo irracionalista. Certamente, em suas primeiras obras, Barth se sentia na obrigação de dizer coisas muito pejorativas contra a razão humana, mas a posição que passou a defender depois é consistentemente racional. Distingue ele entre o raciocínio a priori e a razão a posteriori. O raciocínio a priori alega o conhecimento da verdade independentemente da experiência. Quando nega que o homem possa conhecer a Deus pelos processos racionais, Barth deseja é negar que se tenha qualquer conhecimento a priori de Deus. Caso se admitisse que o homem dispõe de conhecimento a priori de Deus, se deveria concluir ter ele também um critério pelo qual pudesse avaliar a revelação de Deus. O raciocínio a posteriori é o que se pode efetuar depois da experiência de um acontecimento qualquer. Barth insiste na afirmação de que todo o conhecimento de Deus é a posteriori. Não podemos saber quem é Deus até o momento em que ele se revela a si mesmo.
Não podemos saber a priori que Deus seja amor, por exemplo; essa é uma noção que adquirimos depois que a vida de Cristo a torna evidente para nós. Todavia, depois que Deus se revela, Barth insiste na necessidade de que o homem use a razão para entender o que Deus disse.
A experiência vivida por Barth na vigência do nazismo muito concorreu para que ele se firmasse cada vez mais na tese de que nós podemos conhecer a Deus somente através de revelação. Bom número de teólogos levantou contra Barth a objeção de que sua posição nada tinha de relevância, pois ele tinha estabelecido um divórcio entre a revelação e a história e cultura humanas. Tais teólogos não se cansaram de afirmar que nos informamos sobre a natureza de Deus partindo da História tanto quanto das Escrituras. Quando Hitler chegou ao poder, a maioria desses teólogos tentou encontrar uma fórmula que tornasse o cristianismo compatível com o nazismo. Por todo um século, os teólogos tinham se esforçado para conseguir certa modernização da fé para reconciliarem-na com a modernidade. p.83
Naquela fase da história da Alemanha, Hitler era a própria personificação da modernidade e a todos parecia ser muito lógico que se procurasse alguma fórmula de reconciliação entre o cristianismo e a situação contemporânea. Já vimos que Barth concordava com seus críticos na questão de que a teologia devia sofrer mudanças à luz dos novos tempos. Entretanto, só nisso fica sua concessão para com os críticos. Barth estava disposto a aprender das condições de seu tempo o como expressar-se a fé crista, mas ele estava persuadido de que a época atual não pode revelar o que temos de dizer. O que temos de dizer em matéria teológica estende suas raízes na revelação de Deus e não nas condições da época moderna. Aqueles que acusavam Barth da falha de apresentar uma revelação dissociada das condições da época, por isso mesmo irrelevante para o homem moderno, tinham, por sua vez, muito pouco a dizer a propósito do nazismo. Alguns deles comprometeram-se com o “Movimento Cristão Alemão”, que se esforçava para encontrar uma fórmula de conciliação entre o nazismo e o cristianismo. Outros ficaram hesitando indefinidamente entre uma atitude de franca aceitação do nazismo e uma atitude de crítica ponderada. Barth exerceu um papel importante em face da situação de sua época precisamente por manter-se como testemunha de uma Palavra de revelação divina, que era capaz de emitir juízo em qualquer tempo.
Em seus escritos mais antigos, Barth foi profundamente influenciado pelo pensamento de Kierkegaard. Do pensamento de Kierkegaard ele aceitou a tese da distinção qualitativa existente entre tempo e eternidade. Muito do que o antigo Barth disse a respeito do Deus Inteiramente Outro estava baseado no conceito de que o tempo e a eternidade, o homem e Deus são realidades que se opõem. Isso significa que é um absoluto paradoxo afirmar que Jesus é Deus e homem. No fim da década de vinte, Barth começou a escrever sua Dogmática, chegando a completar um de seus alentados volumes. Quando os críticos disseram que a obra dependia muito da filosofia existencialista, Barth refez todo o trabalho. Tratava-se do ponto mais decisivo em seu desenvolvimento teológico. A partir de então, ele se dedicou ao objetivo de fundamentar sua teologia na Bíblia apenas, e, assim, procurando libertar-se da influência do conceito de uma distância existente entre Deus e o homem, ele foi capaz de considerar seriamente a encarnação de Cristo. Enquanto, na primeira fase da exposição de sua teologia, sua ênfase era sobre o Espírito Santo, considerado como ponto fundamental de encontro entre Deus e o homem, Barth passou depois a ressaltar a pessoa de Cristo como centro da teologia. Barth agora entende ser uma falácia afirmar que a encarnação de Deus em Cristo seja um paradoxo. A aparência de paradoxo decorre de pensarmos que, independentemente de Cristo, dispomos do conhecimento de quem Deus seja e o que venha a ser Deus e homem, e não podemos vislumbrar como nossas idéias concernentes a Deus e homem possam convergir no reconhecimento de uma só pessoa. Entretanto, diz-nos Barth, caso se não começamos com raciocínios apriorísticos, mas procuramos encontrar em Cristo a revelação tanto de Deus como do homem, o paradoxo se dissipará. Em Cristo, vemos que Deus inclui o conceito de humanidade. O homem pode compreender a revelação de Deus pelo fato de que o homem foi criado à imagem da humanidade que existe no próprio Deus. O ponto de vista de Barth pode ser ilustrado através da discussão que ele faz concernente à onipotência divina. Dizer que Deus é onipotente equivale a dizer que ele dispõe de todo o poder no universo. Enquanto o homem pensa em termos apriorísticos, ele entende que o poder de Deus é análogo ao que o próprio homem gostaria de ter, caso lhe fosse concedido um poder ilimitado. Assim, parece-nos absurdo que Deus se mostre fraco, nasça numa manjedoura, e morra cravado numa cruz. p.84
Quando, porém, decidimos raciocinar a posteriori, isto é, à luz da revelação de Deus em Cristo, então podemos adquirir uma noção totalmente diferente do que venha a ser a onipotência divina. A onipotência passará a incluir a compreensão de que Deus dispõe do poder de tornar-se fraco e de palmilhar a senda que conduz à crucificação. Deus demonstra que ele - não os deuses criados pela imaginação humana - é um Ser verdadeiramente poderoso, exatamente pelo fato de que, muito diferentemente dos deuses humanos, ele ousa tornar-se fraco e destituído. Em vez de manter-se invariavelmente entronizado em sublimes altitudes, como o homem o faria, caso lhe fosse conferida a onipotência, Deus desce até o homem em sua humilhação. Em vez de exigir subserviência do homem, Deus vem ao homem como alguém que serve. Cristo é a revelação do verdadeiro Deus e também do verdadeiro homem. Pelo fato de que Barth começou sua revolução teológica expressando real desilusão com o otimismo liberal a propósito do ser humano, é comum ouvir dizer que ele substituiu um ponto de vista otimista por outro pessimista com relação ao homem. Isso não é verdade. Ainda no início de sua influência como teólogo, sabe-se que Barth chamou a atenção de alguns de seus admiradores, por perceber que eles estavam insistindo demais na realidade do pecado e da depravação da natureza humana.
Não podemos render glórias a Deus reduzindo o conceito da liberdade humana, dizia Barth com insistência. E verdade que, atentando-se para o que o homem tem sido ao longo da história, não se pode deixar de ressaltar o fato de que ele é um indigno pecador. As páginas da história mostram quanto o homem tem sido desumano para com o próprio homem. Não obstante, ao olharmos para Cristo e reconhecermos ser ele o verdadeiro homem, entendemos que o pecado não é nenhuma parte essencial da natureza própria do ser humano.
Barth crê efetivamente que o homem não auxiliado por Deus inevitavelmente cai no pecado. Mas, em Cristo, Deus deixa claro que não é seu desejo deixar que o homem fique à mercê da pecaminosidade. Por isso Barth insiste em dizer que não devemos jamais fazer referências ao pecado, a menos que prossigamos dizendo que o pecado ficou vencido, perdoado e destituído de seu terror mediante a obra de Cristo. Jesus disse que para os homens certas coisas são impossíveis, mas elas são possíveis a Deus (Mt 19.26). Nisso se encontra o tema da doutrina antropológica de Barth. A consideração de que para Deus todas as coisas são possíveis, Barth passa a dar a maior ênfase na realidade da nova vida que, mediante o poder de Deus, o homem alcança usufruir. G. C. Berkouwer deu o seguinte título ao seu livro a respeito de Barth: O Triunfo da Graça na Teologia de Karl Barth. Esse é um título muito apropriado, pois são poucos os teólogos que têm escrito tão vividamente a respeito do triunfo de Deus sobre o pecado ou procurado ressaltar a firme promessa de uma nova vida que é dada ao homem.
O fundamento para o otimismo de Barth pode ser encontrado na doutrina da expiação que ele desenvolve. Temos chamado a atenção para o fato de que, no entender de Barth, Deus revela sua onipotência na capacidade de tornar-se fraco. Isso significa que, em Cristo, Deus chegou até um “país longínquo”, onde os homens vivem como pródigos. Deus não se satisfaz em viver a sós no céu, pelo contrário, agrada-lhe ter a companhia do homem. Quando a ética cristã nos incentiva a tomar as cargas uns dos outros, não é isso senão porque o próprio Deus toma sobre si as cargas de outro. Quando somos exortados a que amemos os inimigos, não será isso senão porque Deus também ama os que são seus inimigos. Deus revela-nos que ama “o mundo” e não apenas judeus, cristãos ou pessoas bem qualificadas. Uma vez que Deus amou o mundo e veio pessoalmente a este mundo, da mesma forma deve sua Igreja sentir-se vocacionada a servir ao mundo. p.85
Aceitando vir até o “país longínquo”, o Filho se fez carne. Isso significa que ele aceitou a condição limitada que é a natureza humana, caracterizada por tentações e problemas. Jesus submeteu-se às condições de nossa existência. Entretanto, Cristo não se encarnou indiscriminadamente, pois é certo que ele se encarnou como judeu. No entender de Barth, os judeus ocupam lugar muito peculiar na teologia cristã. Deus, no propósito de conquistar a humanidade para si, escolheu o povo judeu, visando utilizá-lo na realização de seu plano de salvação. O Velho Testamento nos relata como foi que Deus se mostrou fiel para com o povo judeu, mesmo quando o povo não correspondia a essa fidelidade. Aos judeus Deus fez as promessas pertinentes a todos os homens, e, assim, quando o Filho chegou no “país longínquo”, ele se tornou judeu, para que cumprissem as promessas feitas a Abraão, Isaque e Jacó. Enquanto Hitler estava promovendo o assassinato de seis milhões de judeus, Barth procurou estudar os capítulos 9 a 11 da Carta aos Romanos, com uma nova visão, e teve uma compreensão dos judeus que, na verdade, se opunha a muitos conceitos comuns entre cristãos a respeito desse povo. O ponto de vista mais em voga entre cristãos é o de que nos tempos do Velho Testamento, os judeus eram o povo escolhido de Deus, mas, uma vez que a nação rejeitou a Cristo, ela deixou de ser a nação eleita, pois foi substituída pela Igreja. Alguns cristãos têm ido mais longe do que isso, afirmando que os judeus se encontram sob maldição, pelo fato de terem crucificado a Cristo. Barth entende que toda essa maneira de ver os fatos difere do pensamento expresso por Paulo. Desde o começo, os judeus foram escolhidos por Deus por causa da graça divina, e não por causa de qualificações que pudessem apresentar. Da mesma forma, os cristãos também dependem da graça de Deus. Se a desobediência dos judeus resultou em que eles já não devam considerar-se como povo eleito de Deus, então os cristãos, que se vêm demonstrando sempre desobedientes contra Deus, já não têm nenhuma razão para esperar que Deus cumpra as promessas que lhes fez. Uma vez que Deus se tornou carne judia em Cristo, o povo de Deus passou a existir numa dupla forma - a Sinagoga e a Igreja. Paulo entende que essas duas instituições cabem no propósito divino.
Para Barth, tudo indicava que Hitler tinha uma compreensão demoníaca de uma importante verdade que a maioria dos cristãos deixou de levar em conta. Hitler percebeu que tinha de promover o extermínio dos judeus pelo fato de que, enquanto os judeus continuassem existindo, seriam testemunhas do Deus vivo, que jamais deixará de condenar a presunção dos ditadores de que são capazes de exercer uma autoridade insuperável (Barth ressaltou que a melhor prova que existe da existência de Deus é a existência dos judeus neste mundo). Barth viu, nas medidas de perseguição adotadas por Hitler contra os judeus, uma declaração de guerra contra o próprio Deus. Com base nisso, Barth sentiu-se em condições de predizer que as perseguições movidas por Hitler contra os judeus haveriam de conduzi-lo bem cedo à adoção de medidas de perseguição contra a Igreja. Cristo veio a este mundo como judeu e identificou com seu povo e com o pecado de seus concidadãos. Uma vez encarnado, Cristo se expôs às mesmas tentações que são comuns aos homens em geral, mas sabe-se que ele não cometeu nenhum pecado, revelando-nos, dessa maneira, que o pecado não é algo que seja essencial ao homem. A vida de Cristo, portanto, acarreta julgamento sobre nossas vidas. Quando contemplamos a humana verdadeira, que é característica de Cristo, passamos a entender que a vida egocêntrica dos homens em geral é uma distorção da natureza que temos em nós. Em Cristo fica evidente que nosso pecado consiste em pretendermos ser capazes de julgar a nós mesmos. Adão e Eva caíram no pecado por terem desejado conhecer o bem e o mal como Deus os conhece.p.86
Conhecer o bem e o mal como Deus mesmo os conhece equivaleria a tomar o lugar daquele que cria a distinção entre o bem e o mal. Cada nação, classe e indivíduo adota seus próprios padrões e costumes, pelos quais é levado a pensar de si mesmo como sendo bom. Entretanto, sabe-se que, com a vinda de Cristo a este mundo, ficou claro que o homem se encontra debaixo do juízo divino e não tem capacidade de julgar-se a si mesmo. Se toda a obra de Cristo tivesse consistido em proferir o juízo contra nós, isso teria resultado em fazer-nos mais infelizes do que antes que ele viesse ao mundo. Todavia, Cristo nos revela que Deus tem liberdade de escolher a maneira pela qual seu juízo vem sobre os homens, e a verdade é que o juízo divino recaiu sobre Deus mesmo em Cristo, e não sobre o homem. E, pelo fato de que Deus profere o juízo sobre si mesmo, ele nos livra da obrigação de nos julgarmos a nós mesmos. Essa é uma experiência de liberdade, pelo fato de que, quando o homem pretende ser juiz de si mesmo, faz-se vulnerável ao juízo do próximo. O homem é perseguido pela necessidade de que outros pensem bem dele. O homem pecador é bastante estranho. Em certos momentos o homem exibe as próprias virtudes como a justificar-se a si mesmo, mas, logo depois o mesmo homem começa a olhar a seu redor, para certificar-se da presença de outros que concordam com a opinião que ele tem de si mesmo. Que admirávelconvicção de liberdade aparece nas palavras de Paulo, quando diz: “Todavia, a mim mui pouco se
me dá de ser julgado por vós, ou por tribunal humano; nem eu, tampouco, julgo a mim mesmo. Porque, de nada me argúi a consciência; contudo, nem por isso me dou por justificado, pois quem me julga é o Senhor” (1 Co 4.3-4). O cristão pode expressar-se assim porque, quando ele se sente julgado por Cristo, percebe ao mesmo tempo de que é julgado por aquele que lhe ministra uma palavra de perdão e lhe faz promessas relacionadas com uma nova vida. Deus não teve em pequena conta a condição pecaminosa em que o mundo se encontra, mas também não entendemos que ele tenha ficado distante do mundo, como que dizendo: “Que o mundo vá para o inferno!” A verdade é que ele decidiu fazer a difícil viagem até o “país longínquo”, no propósito de tornar-se como uma de suas criaturas decaídas, para possibilitar o plano de libertar os homens do juízo, da separação de Deus e do nada, que é a morte.
Desde a vinda de Cristo a este mundo não nos destinamos mais ao futuro como pecadores. O motivo dessa destinação removeu-se já de sob nossos pés. Em um sermão que regou, Barth citou um grupo de soldados japoneses destacados em uma ilha remota do Pacífico que, catorze anos depois de terminada a Segunda Guerra Mundial, ainda a atirava contra todos os que lhes aparecessem diante dos olhos, pois não tinham ouvido nada sobre o término da guerra. Que gente estranha aquela, lutando numa guerra terminada catorze anos antes! Mas isso não é tão estranho como o fato de que continuamos a viver como pecadores dois mil anos depois que Cristo anulou o poder do pecado.
Barth não aceita nem o pensamento expresso por Anselmo, de que a morte de Cristo teria sido uma satisfação dada por causa da ira divina, nem a idéia de que Cristo foi punido por nós. Esses pontos de vista parecem não bíblicos para ele, por implicarem a ocorrência de algo que teria concorrido para mudar a mente divina a propósito do homem. Tudo quanto se tem de pensar com relação à encarnação de Cristo é que Deus não quis abandonar o homem à sua própria sorte; o amor divino não consentia na permanência do pecado, pois o homem, mediante a prática do pecado, estava destruindo a si mesmo. Deus abriu um novo caminho diante do homem, para fazê-lo encontrar a paz. Cristo, mediante o perfeito arrependimento que experimentou, realizou o que o homem tinha de fazer. Ele se pôs a si mesmo sob juízo, para fazer com que o homem ficasse livre do juízo. p.87
Como é que podemos alegar hoje que somos aqueles pelos quais Cristo agiu? Admitindo- se que o Filho chegou até o “país longínquo” e foi o juiz que se submeteu a julgamento por nós - que será que isso importa a nós no século vinte? A única resposta parece-nos ambígua, quando sugere que os atos de Cristo nos podem falar pelo fato de que ouvimos o relato de tais atos através da leitura da Bíblia e da pregação. Mas, será o caso de perguntar-se: Terá mesmo significado essa palavra que descreve os atos de Cristo quando a ouvimos como algo já de segunda mão? Barth observa que a teologia contemporânea tem se interessado pelo problema de como relacionar a fé com a História. Entretanto, será que a História, com suas dúvidas e ambigüidades, nos trará alguma ajuda?
Barth declara que nós nos capacitaremos para encontrar respostas a tais perguntas somente na medida em que atentarmos para a ressurreição de Cristo. Para os primeiros discípulos, a ressurreição de Cristo era como o veredicto de Deus concernente a Cristo. Ressuscitando a Cristo de entre os mortos, Deus deixava claro que tinha aceitado o arrependimento de Cristo em favor dos homens. Estar morto significa anular-se. A ressurreição de Cristo de entre os mortos exigiu de Deus o exercício do mesmo poder necessário para que o mundo surgisse do nada. Pela ressurreição que operou em Cristo, Deus fez uma promessa à sua criatura racional no sentido de jamais abandoná-la. Deus revelou daquela forma que Cristo havia de estar sempre com o homem; que aquele que veio até o “país longínquo”, para estar com seu povo, ainda se encontra presente.
A expiação não é como uma transação comercial entre Deus e Cristo e que pudesse acontecer, por exemplo, em Marte, tão convenientemente como aconteceu na face da terra. A expiação significa que o Senhor de tudo quanto existe veio ao encontro de seu povo no tempo e no espaço. Deus tem eternamente em sua própria constituição o Filho, que partiu para o “país longínquo”, sofreu as experiências que nos afligem, submeteu-se a julgamento pelos homens e, finalmente, morreu e ressuscitou ao terceiro dia. A ponte que liga nossa época e o primeiro século da Era Cristã não se confunde com os resultados das pesquisas dos historiadores; a ponte é a própria pessoa do Senhor Jesus, que vive para sempre. A cruz de Cristo e sua ressurreição fizeram com que a Igreja surgisse. O membro da Igreja é uma pessoa que sabe que a condição humana mudou desde a vinda de Cristo ao mundo. A Igreja não pode deixar de ser missionária; ela tem de contar a todos o que aconteceu; ela tem o dever de anunciar aos soldados que ainda se encontram em esconderijos atrás de árvores que a guerra chegou ao fim. Não é que a proclamação feita pela Igreja cause mudanças, a situação de todos os homens neste mundo veio a mudar por efeito da morte e da ressurreição de Cristo. Já foi assinado o tratado de paz. O cético, entretanto, insiste em perguntar: “O que é mesmo que foi mudado?” Não é evidente que o mundo continua com guerras e com rumores de guerra? Não se vê que os homens continuam sofrendo injustiças da parte de outros homens? O Novo Testamento, Barth nos lembrar, contém previsões de tudo isso. A resposta a tais perguntas não será, como pensam alguns, afirmar que Cristo foi para o céu, mas há de voltar logo para promover o estabelecimento de seu Reino perfeito. Os homens referidos no Novo Testamento não estavam felizes pelo fato de esperarem para logo a volta de Cristo sobre as nuvens dos céus. Pelo contrário, eles se mantinham na expectativa da segunda vinda de Cristo porque experimentavam como fato glorioso e real a presença do Senhor com eles. Depois dos vários aparecimentos durante os quarenta dias que se seguiram à ressurreição, eles continuaram vendo a presença de Cristo com eles mediante a atuação do Espírito Santo. Com freqüência se ouve esta pergunta: Qual é a novidade do cristianismo? Nem sua ética nem sua teologia podem ser consideradas como exclusivas. Segundo o entende Barth, a exclusividade do cristianismo é o próprio Cristo. Ser cristão nada mais é do que ser um novo homem por estar convencido da realidade da crucificação e ressurreição do Salvador. p.88
O fundamento sobre o qual se apóia todo o esforço missionário e da pregação do evangelho que se vem realizando no mundo encontra-se na pessoa de Jesus Cristo A ressurreição de Cristo, conhecida como realidade nos dias atuais mediante a atuação do Espírito Santo, expressa o veredicto de Deus. Se Cristo não tivesse ressuscitado, não poderíamos dizer aos homens que a situação humana diante de Deus mudou. Na melhor das hipóteses, diríamos que a situação poderia mudar, caso pudessem imitar a Jesus, mas isso lhes seria, de fato, uma má notícia, pois quem estaria em condições de aceitar o desafio? O veredicto divino nos assegura que aquilo que nós não podíamos fazer por nós mesmos Deus o fez por nós. Somos julgados e perdoados; somos renovados mediante o poder do Espírito Santo. O otimismo de Barth a propósito do que Deus pode fazer para transformar-nos em novas criaturas baseia-se na nova situação que Deus determinou que surgisse. Quando o Filho partiu para o “país longínquo”, fez isso em espírito de obediência para com o Pai. Semelhantemente, o cristão deve sentir-se chamado a uma vida de obediência, e Barth, então, mostra-se muito preocupado com esta pergunta de natureza ética - como será que o cristão deve demonstrar que mantém vida de obediência para com Deus? A convicção de Barth é que o cristão tem de procurar servir a Deus com tudo quanto faça parte da vida. Ele deve interessar-se pelos problemas de natureza política e social, tanto quanto se interessa pelos problemas individuais. Uma das razões pelas quais Barth repudiou a teologia liberal, sob cuja influência ele obteve sua formação, foi o comportamento adotado por seus professores durante a Primeira Guerra Mundial. Ele ficou aturdido em face de professores aos quais admirava e que manifestavam apoio espiritual irrestrito para com a causa que a Alemanha estava defendendo. Para Barth, o fato demonstrava que aqueles teólogos, na preocupação de conformar-se com o mundo moderno, até perderam a consciência do juízo divino sobre este mundo. Barth expressa total repugnância a qualquer ética que procure se traduzir em termos de regras e preceitos. Através da Bíblia, vê-se como Deus promulga mandamentos para a observância de homens situados em um dado tempo e espaço. Em Cristo, encontramos o modelo próprio para nosso espírito de obediência, sendo nosso dever nos mantermos como discípulos de Cristo dentro de cada situação com suas características peculiares e suas necessidades. Em certo sentido, pode-se alegar que isso deixará o cristão sem qualquer orientação, uma vez que ele não vai poder contar com normas inflexíveis que lhe assegurem uma conduta coerente. Por outro lado, porém, sabe-se que Cristo é uma pessoa real e a lealdade que se deve devotar a seu Espírito não deixará o cristão destituído de orientação precisa em sua maneira de conduzir-se. Por que é que devemos obediência a Deus? Os não-cristãos não cansam de nos acusar de obedecemos a Deus por pensarmos que ele é semelhante a um policial todo-poderoso e cósmico. Barth rejeita essa maneira de considerar o fato. Seria algo inteiramente degradante para o ser humano obedecer a Deus somente por reconhecer-se que Deus é poderoso para fulminar o homem, caso não lhe preste obediência. Não melhorará muito dizer que, mediante a obediência que presta a Deus, o homem consegue a realização de sua própria natureza. Essa é uma verdade, mas resulta em procurar estimular o espírito de obediência por motivos egoístas. Conforme o entende Barth, a razão fundamental pela qual se deve obediência a Deus é que é esse espírito que melhor corresponde ao amor com que Deus se deu a nós em Cristo. Mediante a obediência cristã autêntica, o homem se torna verdadeiramente livre. Fazer a vontade de alguém que nos ama e a quem também amamos, é um motivo perene de alegria espiritual. O cristão não presta obediência a Deus por motivos de medo nem de fraqueza; sua obediência para com Deus provém de uma exuberância de alegria e força espiritual. Aquele que presta obediência sem exuberância de alegria espiritual será, num sentido muito profundo, um desobediente. p.89
Ele é semelhante àquele indivíduo de uma das parábolas de Jesus que aceita estar presente ao banquete só porque foi convidado, mas deixa de trajar-se de acordo com o ambiente das bodas, com o objetivo de deixar transparecer a alegria de que está possuído. O cristão não deve surpreender-se por encontrar aqueles que não têm seus nomes incluídos entre os que se dizem cristãos, agindo de conformidade com o espírito de Cristo. Não é incomum que tais pessoas causem constrangimentos a certos cristãos. Quando isso acontece, o cristão não deve ficar se defendendo, alegando falsas razões pelas quais não tem conseguido que sua conduta seja melhor. Pelo contrário, aí está um exemplo do ponto de vista adotado por Barth de que, efetivamente, a situação de todos os homens mudou desde a expiação efetuada por Cristo. Como resultado dessa observação, o cristão deve sentir-se impulsionado a dar graças a Deus, vendo como o espírito de Cristo opera mesmo naqueles que não confessam o nome de
Cristo. O discipulado cristão convence-nos à adoção de um relacionamento diferente com as coisas neste mundo - com a família, o emprego da força, o dinheiro e coisas semelhantes. Cada uma dessas coisas pode tornar-se um ídolo para nós. O perigo que é a tentação de nos tornarmos demasiado apegados às coisas deste mundo não deve, entretanto, ser nenhuma razão para que os cristãos nada queiram com tais coisas. Essa conclusão seria muito falsa, porque, em primeiro lugar, ela implicaria em falta de fé no poder que Deus tem de tornar alguém imune ao pecado quando está exposto ao mundo. Em segundo lugar, seria uma conclusão errada, pelo fato de que o cristão nunca deve sentir-se chamado a salvar sua própria alma. A vocação do crente é no sentido de que ele procure servir ao mundo, coisa que não conseguirá fazer fugindo do mundo. O cristão terá de fazer uso das coisas neste mundo de modo diferente do que acontece no mundo, o que, não raro, até pode acarretar mal-estar no mundo. Entretanto, isso não é motivo para se entender que o cristão tenha de agir sempre com antagonismo para com o mundo; por exemplo, quando Daniel estava na cova dos leões, não pensou que devesse pisar na cauda deles. Além disso, é claro que o cristão não tem necessariamente de sentir-se obrigado a lutar contra o mundo, pois a verdade é que este mundo já tem motivo demais de perturbação para que os cristãos lhe queiram introduzir mais perplexidades. O cristão que deseja se conservar fiel a seu Senhor bem sabe que tem de enfrentar perseguições e incompreensões no mundo. O cristão deve ter em mente que, conforme o título de um dos livros de Barth, será inevitável que ele nade “contra a corrente”.
O discipulado cristão incentiva o crente a servir ao Estado. Seria mera hipocrisia uma oração no sentido de que o Estado se torne justo, por exemplo, sem que o indivíduo que ora assim a Deus procure fazer tudo para torná-lo justo. Além disso, como foi o caso de Barth sob a vigência do nazismo, o cristão poderá sentir-se na obrigação de opor-se ao Estado. Nesse caso, entretanto, o cristão estará agindo em favor do Estado, e não contra o Estado. O cristão estará, em situações assim, levantando objeções contra as falhas do Estado, procurando colaborar para que se torne um Estado verdadeiro. O Estado considerado como instituição existe pela graça divina e visa ser um fator de bênção para a vida humana. O Estado não existe para ser cultuado; o poder que ele tem em si é limitado pela vontade divina. Mesmo que não se deva identificar o cristianismo com nenhuma democracia e mesmo que se reconheça que os homens podem se comportar como cristãos sob qualquer forma de governo, Barth é de opinião, que os cristãos devem normalmente colaborar para o estabelecimento de alguma forma de governo democrático pois esta é sempre a maneira mais apropriada para conseguir que o Estado seja útil para o ser humano. p.90
No mundo do pós-guerra, Barth continuou expressando idéias políticas que estão em desacordo com as tendências gerais contemporâneas. Por exemplo, em 1948 Brunner escreveu uma carta, criticando-o por não se opor ao comunismo, como fizera relativamente ao nazismo.
Barth respondeu-lhe, chamando a atenção para o fato de que a Igreja, na obediência que devota a Cristo, deve falar tendo em vista situações concretas e não em termos de princípios gerais. A ação desempenhada em tempos passados não deve repetir-se como a música de um gramofone; à Igreja cabe o dever de procurar a vontade divina para o tempo presente. Barth entendia que a situação em 1948 era diferente da situação reinante em 1933. Em 1933, Hitler era uma tentação efetiva para o mundo Ocidental. Os louvores que eram ouvidos em seu favor partiam de todos os lados; até mesmo Winston Churchill lhe dedicou alguma apreciação. Certo número de alemães de influência tinha organizado o Movimento Cristão da Alemanha com o objetivo de promover uma compatibilização do cristianismo com o nazismo, e tinha conseguido, de fato, infiltrar-se na estrutura da Igreja. Já em 1948, Barth entendia que a situação nada tinha de semelhança com a anterior. Por onde quer que tivesse viajado em todo o mundo Ocidental, tinha visto que, com exceção de um número muito desprezível de comunistas, era inegável a oposição que essa ideologia vinha sofrendo em toda parte. Cada pessoa individualmente se sentia livre para opor-se ao comunismo, e, com efeito, assim se manifestava.
Então, por que haveria a Igreja de sentir-se com a responsabilidade de dizer precisamente o que todos os cidadãos podiam ler nos órgãos de imprensa? Enquanto isso, não se deveria reconhecer que, no Ocidente, o problema real consistia, então, em que as pessoas em geral se inclinavam para uma atitude destituída de crítica na consideração da maneira de vida que se tornara habitual? Não seria o caso de reconhecer-se o perigo a que a Igreja estava exposta de fazer da luta anticomunista um princípio absoluto?
Karl Barth conseguiu deixar às gerações futuras uma preciosa herança no campo da teologia. Por muitos anos ainda sua Dogmática proporcionará inspiração para novas investigações teológicas. Ele tem conquistado aplausos dos teólogos católicos romanos e sua obra tem contribuído muito para as discussões ecumênicas contemporâneas entre protestantes e católicos. Sua tentativa séria, visando construir uma teologia em torno do ato de Deus em Cristo e também sua expressão jubilosa da fé cristã, atrairão adeptos ao longo de muitos anos. Talvez os que entendem que a teologia tenha entrado em fase pós-barthiana compreendam que esse juízo é prematuro. Neste continente, o que se tem verificado é que Barth tem sido consistentemente incompreendido (essa incompreensão constava da primeira edição deste livro). A história futura poderá concluir que, pelo menos neste continente, a teologia que se professou durante a década de sessenta era ainda pré-barthiana.
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