Este documento que se segue foi publicado em 1984 com a aprovação do Papa João Paulo II e feito por Ratzinger que veio a se tornar papa posteriormente 2005-2013 (Papa Bento XVI).
SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ
INSTRUÇÃO
SOBRE ALGUNS ASPECTOS
DA « TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO » libertati nuntius
O Sumo Pontífice João Paulo II, no decorrer de uma Audiência concedida ao Cardeal Prefeito que subscreve este documento, aprovou a presente Instrução, deliberada em reunião ordinária da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, e ordenou que a mesma fosse publicada.
Roma, Sede da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, 6 de Agosto de 1984, na Festa da Transfiguração do Senhor.
Joseph Card. Ratzinger
Prefeito
SB Alberto Bovone
Arcebispo tit. de Cesárea de Numidia
Secretário
III - A LIBERTAÇÃO, TEMA CRISTÃO
1. Considerada em si mesma, a aspiração pela libertação não pode deixar de encontrar eco amplo e fraterno no coração e no espírito dos cristãos.
2. Assim, em consonância com esta aspiração, nasceu o movimento teológico e pastoral conhecido pelo nome de « teologia da libertação »: num primeiro momento nos países da América Latina, marcados pela herança religiosa e cultural do cristianismo; em seguida, nas outras regiões do Terceiro Mundo, bem como em alguns ambientes dos países industrializados.
3. A expressão « teologia da libertação » designa primeiramente uma preocupação privilegiada, geradora de compromisso pela justiça, voltada para os pobres e para as vítimas da opressão. A partir desta abordagem podem-se distinguir diversas maneiras, frequentemente inconciliáveis, de conceber a significação cristã da pobreza e o tipo de compromisso pela justiça que ela exige. Como todo movimento de ideias, as « teologias da libertação » englobam posições teológicas diversificadas; suas fronteiras doutrinais são mal definidas....
IV - FUNDAMENTOS BÍBLICOS
3 As « teologias da libertação » recorrem amplamente à narração do Livro do Êxodo. Este constitui, de fato, o acontecimento fundamental na formação do Povo eleito. É preciso não perder de vista, contudo, que a significação específica do acontecimento provém de sua finalidade, já que esta libertação está orientada para a constituição do povo de Deus e para o culto da Aliança celebrado no Monte Sinai.[4] Por isso a libertação do Êxodo não pode ser reduzida a uma libertação de natureza prevalentemente ou exclusivamente política. É significativo, de resto, que o termo libertação seja ás vezes substituído na Sagrada Escritura pelo outro, muito semelhante, de redenção...
5. As múltiplas angústias e desgraças experimentadas pelo homem fiel ao Deus da Aliança servem de tema para diversos salmos: lamentações, pedidos de socorro, ações de graças referem-se à salvação religiosa e à libertação. Neste contexto, a desgraça não se identifica pura e simplesmente com uma condição social de miséria ou com a sorte de quem sofre opressão política. Ela inclui também a hostilidade dos inimigos, a injustiça, a morte e a culpa. Os salmos nos remetem a uma experiência religiosa essencial: somente de Deus se espera a salvação e o remédio. Deus, e não o homem, tem o poder de mudar as situações de angústia. Assim, os « pobres do Senhor » vivem numa dependência total e confiante na providência amorosa de Deus.[6] Aliás, durante toda a travessia do deserto, o Senhor nunca deixou de prover à libertação e à purificação espirituais de seu povo.
6. No Antigo Testamento, os profetas, desde Amos, não cessam de recordar, com particular vigor, as exigências da justiça e da solidariedade e de formular um juizo extremamente severo sobre os ricos que oprimem o pobre. Tomam a defesa da viúva e do órfão. Proferem ameaças contra os poderosos: a acumulação de iniquidades acarretará necessariamente terríveis castigos. Isto porque não se concebe a fidelidade à Aliança sem a prática da justiça. A justiça em relação a Deus e a justiça em relação aos homens são inseparáveis. Deus é o defensor e o libertador do pobre.
7. Semelhantes exigências encontram-se também no Novo Testamento. Ali são até radicalizadas, como demonstra o discurso das Bem-aventuranças. Conversão e renovação devem operar-se no mais íntimo do coração.
8. Já anunciado no Antigo Testamento, o mandamento do amor fraterno estendido a todos os homens constitui agora a suprema norma da vida social.[7] Não há discriminações ou limites que possam opor-se ao reconhecimento de todo e qualquer homem como o próximo.[8]...
12. A Revelação do Novo Testamento nos ensina que o pecado é o mal mais profundo, que atinge o homem no cerne da sua personalidade. A primeira libertação, ponto de referência para as demais, é a do pecado.
13. Se o Novo Testamento se abstém de exigir previamente, como pressuposto para a conquista desta liberdade, uma mudança da condição política e social, é sem dúvida, para salientar o caráter radical da emancipação trazida por Cristo, oferecida a todos os homens, sejam eles livres ou escravos politicamente. Contudo a Carta a Filêmon mostra que a nova liberdade, trazida pela graça de Cristo, deve necessariamente ter repercussão também no campo social.
14. Não se pode portanto restringir o campo do pecado, cujo primeiro efeito é o de introduzir a desordem na relação entre o homem e Deus, àquilo que se denomina « pecado social ». Na verdade, só uma adequada doutrina sobre o pecado permitirá insistir sobre a gravidade de seus efeitos sociais.
15. Não se pode tampouco situar o mal unicamente ou principalmente nas « estruturas » económicas, sociais ou políticas, como se todos os outros males derivassem destas estruturas como de sua causa: neste caso a criação de um « homem novo » dependeria da instauração de estruturas económicas e socio-políticas diferentes. Há, certamente, estruturas iníquas e geradoras de iniquidades, e é preciso ter a coragem de mudá-las. Fruto da ação do homem, as estruturas boas ou más são consequências antes de serem causas. A raiz do mal se encontra pois nas pessoas livres e responsáveis, que devem ser convertidas pela graça de Jesus Cristo, para viverem e agirem como criaturas novas, no amor ao próximo, na busca eficaz da justiça, do auto-domínio e do exercício das virtudes.[13]
Ao estabelecer como primeiro imperativo a revolução radical das relações sociais e ao criticar, a partir desta posição, a busca da perfeição pessoal, envereda-se pelo caminho da negação do sentido da pessoa e de sua transcendência, e destroem-se a ética e o seu fundamento, que é o caráter absoluto da distinção entre o bem e o mal. Ademais, sendo a caridade o princípio da autêntica perfeição, esta não pode ser concebida sem abertura aos outros e sem espírito de serviço....
VI - UMA NOVA INTERPRETAÇÃO DO CRISTIANISMO...
3. O sentimento angustiante da urgência dos problemas não pode levar a perder de vista o essencial, nem fazer esquecer a resposta de Jesus ao Tentador (Mt 4, 4): « Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus » (Dt 8, 3). Assim, sucede que alguns, diante da urgência de repartir o pão, são tentados a colocar entre parênteses e a adiar para amanhã a evangelização: primeiro o pão, a Palavra mais tarde. É um erro fatal separar as duas coisas, até chegar a opô-las. O senso cristão, aliás, espontaneamente sugere a muitos que façam uma e outra.[19]
4. A alguns parece até que a luta necessária para obter justiça e liberdade humanas, entendidas no sentido económico e político, constitua o essencial e a totalidade da salvação. Para estes, o Evangelho se reduz a um evangelho puramente terrestre.
5. É em relação à opção preferencial pelos pobres, reafirmada com vigor e sem meios termos, após Medellin, na Conferência de Puebla[20] de um lado, e à tentação de reduzir o Evangelho da salvação a um evangelho terrestre, de outro lado, que se situam as diversas teologias da libertação.
6. Lembremos que a opção preferencial, definida em Puebla, é dupla: pelos pobres e pelos jovens.[21] É significativo que a opção pela juventude seja, de maneira geral, totalmente silenciada.
7. Dissemos acima (cf. IV, 1) que existe uma autêntica « teologia da libertação », aquela que lança raízes na Palavra de Deus, devidamente interpretada.
8. Mas sob um ponto de vista descritivo, convém falar das teologias da libertação, pois a expressão abrange posições teológicas, ou até mesmo ideológicas, não apenas diferentes, mas até, muitas vezes, incompatíveis entre si.
9. No presente documento tratar-se-á somente das produções daquela corrente de pensamento que, sob o nome de « teologia da libertação », propõem uma interpretação inovadora do conteúdo da fé e da existência cristã, interpretação que se afasta gravemente da fé da Igreja, mais ainda, constitui uma negação prática dessa fé.
10. Conceitos tomados por empréstimo, de maneira a-crítica, à ideologia marxista e o recurso a teses de uma hermenêutica bíblica marcada pelo racionalismo encontram-se na raiz da nova interpretação, que vem corromper o que havia de autêntico no generoso empenho inicial em favor dos pobres.
VII - A ANÁLISE MARXISTA
1. A impaciência e o desejo de ser eficazes levaram alguns cristãos, perdida a confiança em qualquer outro método, a voltarem-se para aquilo que chamam de « análise marxista ».
2. Seu raciocínio é o seguinte: uma situação intolerável e explosiva exige uma ação eficaz que não pode mais ser adiada. Uma ação eficaz supõe uma análise científica das causas estruturais da miséria. Ora, o marxismo aperfeiçoou um instrumental para semelhante análise. Bastará pois aplicá-lo à situação do Terceiro Mundo e especialmente à situação da América Latina.
3. Que o conhecimento científico da situação e dos possíveis caminhos de transformação social seja o pressuposto de uma ação capaz de levar aos objetivos prefixados, é evidente. Vai nisto um sinal de seriedade no compromisso.
4. O termo « científico », porém, exerce uma fascinação quase mítica; nem tudo o que ostenta a etiqueta de científico o é necessariamente. Por isso tomar emprestado um método de abordagem da realidade é algo que deve ser precedido de um exame crítico de natureza epistemológica. Ora, este prévio exame crítico falta a várias « teologias da libertação ».
5. Nas ciências humanas e sociais, convém estar atento antes de tudo à pluralidade de métodos e de pontos de vista, cada um dos quais põe em evidência um só aspecto da realidade; esta em virtude de sua complexidade, escapa a uma explicação unitária e unívoca.
6. No caso do marxismo, tal como se pretende utilizar na conjuntura de que falamos, tanto mais se impõe a crítica prévia, quanto o pensamento de Marx constitui uma concepção totalizante do mundo, na qual numerosos dados de observação e de análise descritiva são integrados numa estrutura filosófico-ideológica, que determina a significação e a importância relativa que se lhes atribui. Os a priori ideológicos são pressupostos para a leitura da realidade social. Assim, a dissociação dos elementos heterogéneos que compõem este amálgama epistemologicamente híbrido torna-se impossível, de modo que, acreditando aceitar somente o que se apresenta como análise, se é forçado a aceitar, ao mesmo tempo, a ideologia. Por isso não é raro que sejam os aspectos ideológicos que predominem nos empréstimos que diversos « teólogos da libertação » pedem aos autores marxistas.
7. A advertência de Paulo VI continua ainda hoje plenamente atual: através do marxismo, tal como è vivido concretamente, podem-se distinguir diversos aspectos e diversas questões propostas à reflexão e à ação dos cristãos. Entretanto, « seria ilusório e perigoso chegar ao ponto de esquecer o vínculo estreito que os liga radicalmente, aceitar os elementos da análise marxista sem reconhecer suas relações com a ideologia, entrar na prática da luta de classes e de sua interpretação marxista sem tentar perceber o tipo de sociedade totalitária à qual este processo conduz ».[22]
8. É verdade que desde as origens, mais acentuadamente porém nestes últimos anos, o pensamento marxista se diversificou, dando origem a diversas correntes que divergem consideravelmente entre si. Na medida, porém, em que se mantêm verdadeiramente marxistas, estas correntes continuam a estar vinculadas a um certo número de teses fundamentais que não são compatíveis com a concepção cristã do homem e da sociedade. Neste contexto, certas fórmulas não são neutras, mas conservam a significação que receberam na doutrina marxista original. É o que acontece com a « luta de classes ». Esta expressão continua impregnada da interpretação que Marx lhe deu e não poderia, por conseguinte, ser considerada, como um equivalente, de caráter empírico, da expressão « conflito social agudo ». Aqueles que se servem de semelhantes fórmulas, pretendendo reter apenas certos elementos da análise marxista,, que de resto seria rejeitada na sua globalidade, alimentam pelo menos um grave mal-entendido no espírito de seus leitores.
9. Lembremos que o ateísmo e a negação da pessoa humana,, de sua liberdade e de seus direitos, encontram-se no centro da concepção marxista. Esta contém de fato erros que ameaçam diretamente as verdades de fé sobre o destino eterno das pessoas. Ainda mais: querer integrar na teologia uma « análise » cujos critérios de interpretação dependam desta concepção ateia, significa embrenhar-se em desastrosas contradições. O desconhecimento da natureza espiritual da pessoa, aliás, leva a subordiná-la totalmente à coletividade e deste modo a negar os princípios de uma vida social e política em conformidade com a dignidade humana,
10. O exame crítico dos métodos de análise tomados de outras disciplinas impõe-se de maneira particular ao teólogo. É a luz da fé que fornece à teologia seus princípios. Por isso a utilização, por parte dos teólogos, de elementos filosóficos ou das ciências humanas tem um valor « instrumental » e deve ser objeto de um discernimento crítico de natureza teológica. Em outras palavras, o critério final e decisivo da verdade não pode ser, em última análise, senão um critério teológico. É à luz da fé, e daquilo que ela nos ensina sobre a verdade do homem e sobre o sentido último de seu destino, que se deve julgar da validade ou do grau de validade daquilo que as outras disciplinas propõem, de resto, muitas vezes à maneira de conjectura, como sendo verdades sobre o homem, sobre a sua história e sobre o seu destino.
11. Aplicados à realidade económica, social e política de hoje, certos esquemas de interpretação tomados de correntes do pensamento marxista podem apresentar, à primeira vista, alguma verosimilhança na medida em que a situação de alguns países oferece analogias com aquilo que Marx descreveu e interpretou, em meados do século passado. Tomando por base estas analogias, operam-se simplificações que, abstraindo de fatores essenciais específicos, impedem, de fato, uma análise verdadeiramente rigorosa das causas da miséria, mantêm as confusões.
12. Em certas regiões da América Latina, a monopolização de grande parte das riquezas por uma oligarquia de proprietários desprovidos de consciência social, a quase ausência ou as carências do estado de direito, as ditaduras militares que conculcam os direitos elementares do homem, o abuso do poder por parte de certos dirigentes, as manobras selvagens de um certo capital estrangeiro, constituem outros tantos fatores que alimentam um violento sentimento de revolta junto àqueles que, deste modo, se consideram vítimas impotentes de um novo colonialismo de cunho tecnológico, financeiro, monetário ou económico. A tomada de consciência das injustiças é acompanhada por un pathos que pede muitas vezes emprestado ao marxismo seu discurso, apresentado abusivamente como sendo um discurso « científico ».
13. A primeira condição para uma análise é a total docilidade à realidade que se pretende descrever. Por isso, uma consciência crítica deve acompanhar o uso das hipóteses de trabalho que se adotam. É necessário saber que elas correspondem a um ponto de vista particular, o que tem por consequência inevitável sublinhar unilateralmente certos aspectos do real, deixando outros na sombra. Esta limitação, que deriva da natureza das ciências sociais, é ignorada por aqueles que, à guisa de hipóteses reconhecidas como tais, recorrem a uma concepção totalizante, como é o pensamento de Marx.
VIII - SUBVERSÃO DO SENSO DA VERDADE E VIOLÊNCIA
1. Esta concepção totalizante impõe assim a sua lógica e leva as « teologias da libertação » a aceitar um conjunto de posições incompatíveis com a visão cristã do homem. Com efeito, o núcleo ideológico, tomado do marxismo e, que serve de ponto de referência, exerce a função de princípio determinante. Este papel lhe é confiado em virtude da qualificação de científico, quer dizer, de necessariamente verdadeiro, que lhe é atribuída. Neste núcleo podem-se distinguir diversos componentes.
2. Na lógica do pensamento marxista, a « análise » não é dissociável da praxis e da concepção da história à qual esta praxis está ligada, A análise é pois um instrumento de crítica e a crítica não passa de uma etapa do combate revolucionário. Este combate é o da classe do Proletariado investido de sua missão histórica.
3. Em consequência, somente quem participa deste combate pode fazer uma análise correta.
4. A consciência verdadeira é pois uma consciência « partidarista ». Pelo que se vê, é a própria concepção da verdade que aqui está em causa e que se encontra totalmente subvertida: não existe verdade – afirma-se – a não ser na e pela praxis « partidarista ».
5. A praxis e a verdade que dela deriva, são praxis e verdade partidaristas, porque a estrutura fundamental da história está marcada pela luta de classes. Existe pois uma necessidade objetiva de entrar na luta de classes (que é o reverso dialético da relação de exploração que se denuncia). A verdade é a verdade de classe – não há verdade senão no combate da classe revolucionária.
6. A lei fundamental da história, que é a lei da luta de classes, implica que a sociedade esteja fundada sobre a violência. À violência que constitui a relação de dominação dos ricos sobre os pobres deverá responder a contra-violência revolucionária, mediante a qual esta relação será invertida.
7. A luta de classes é pois apresentada como uma lei objetiva e necessária. Ao entrar no seu processo, do lado dos oprimidos, « faz-se » a verdade, age-se « cientificamente ». Em consequência, a concepção da verdade vai de par com a afirmação da violência necessária e, por isso, com a do amoralismo político. Nesta perspectiva, a referência a exigências éticas, que prescrevam reformas estruturais e institucionais radicais e corajosas perde totalmente o sentido.
8. A lei fundamental da luta de classes tem um caráter de globalidade e de universalidade. Ela se reflete em todos os domínios da existência, religiosos, éticos, culturais e institucionais. Em relação a esta lei, nenhum destes domínios é autónomo. Em cada um esta lei constitui o elemento determinante.
9. Quando se assumem estas teses de origem marxista é, em particular, a própria natureza da ética qui é radicalmente questionada. De fato, o caráter transcendente da distinção entre o bem e o mal, princípio da moralidade, encontra-se implicitamente negado na ótica da luta de classes.
IX - TRADUÇÃO « TEOLÓGICA » DESTE NÚCLEO IDEOLÓGICO
1. As posições aqui expostas encontram-se às vezes enunciadas com todos os seus termos em alguns escritos de « teólogos da libertação ». Em outros, elas se deduzem logicamente das premissas colocadas. Em outros ainda, elas são pressupostas em certas práticas litúrgicas (como por exemplo a « Eucaristia » transformada em celebração do povo em luta), embora quem participa destas práticas não esteja plenamente consciente disso. Estamos pois diante de um verdadeiro sistema, mesmo quando alguns hesitam em seguir a sua lógica até o fim. Como tal, este sistema é uma perversão da mensagem cristã, como esta foi confiada por Deus à Igreja. Esta mensagem se encontra pois posta em xeque, na sua globalidade, pelas « teologias da libertação ».
2. Não é o fato das estratificações sociais, com as conexas desigualdades e injustiças, é a teoria da luta de classes como lei estrutural fundamental da história que é recebida por estas « teologias da libertação », na qualidade de princípio. A conclusão a que se chega é que a luta de classes, entendida deste modo, divide a própria Igreja e em função dela se devem julgar as realidades eclesiais. Pretende-se ainda que afirmar que o amor, na sua universalidade, é um meio capaz de vencer aquilo que constitui a lei estrutural primária da sociedade capitalista, seria manter, de má fé, uma ilusão falaz.
3. Dentro desta concepção, a luta de classes é o motor da história. A história torna-se assim uma noção central. Afirmar-se-á que Deus se fez história. Acrescentar-se-á que não existe senão uma única história, na qual já não é preciso distinguir entre história da salvação e história profana. Manter a distinção seria cair no « dualismo ». Semelhantes afirmações refletem um imanentismo historicista. Tende-se deste modo a identificar o Reino de Deus e o seu advento com o movimento de libertação humana e a fazer da mesma história o sujeito de seu próprio desenvolvimento como processo da auto-redenção do homem por meio de luta de classes. Esta identificação está em oposição com a fé da Igreja, como foi relembrada pelo Concílio Vaticano II.[23]
4. Nesta linha, alguns chegam até ao extremo de identificar o próprio Deus com a história e a definir a fé como « fidelidade à história », o que significa fidelidade comprometida com uma prática política, afinada com a concepção do devir da humanidade concebido no sentido de um messianismo puramente temporal.
5. Por conseguinte, a fé, a esperança e a caridade recebem um novo conteúdo: são « fidelidade à história », « confiança no futuro », « opção pelos pobres ». É o mesmo que dizer que são negadas em sua realidade teologal.
6. Desta nova concepção deriva inevitavelmente uma politização radical das afirmações da fé e dos juízos teológicos. Já não se trata somente de chamar a atenção para as consequências e incidências políticas das verdades de fé que seriam respeitadas antes de tudo em seu valor transcendente. Toda e qualquer afirmação de fé ou de teologia se vê subordinada a um critério político, que, por sua vez, depende da teoria da luta de classes, como motor da história.
7. Apresenta-se por conseguinte o ingresso na luta de classes como uma exigência da própria caridade; denuncia-se como atitude desmobilizadora e contrária ao amor pelos pobres a vontade de amar, de saída, todo homem, qualquer que seja a classe a que pertença, e de ir ao seu encontro pelas vias não-violentas do diálogo e da persuasão. Mesmo afirmando que ele não pode ser objeto de ódio, afirma-se com a mesma força que, pelo fato de pertencer objetivamente ao mundo dos ricos, ele é, antes de tudo, um inimigo de classe a combater. Como consequência, a universalidade do amor ao próximo e a fraternidade transformam-se num princípio escatológico que terá valor somente para o « homem novo », que surgirá da revolução vitoriosa.
8. Quanto à Igreja, a tendência é de encará-la simplesmente como uma realidade dentro da história, sujeita ela também às leis que, segundo se pensa, governam o devir histórico na sua imanência. Esta redução esvazia a realidade específica da Igreja, dom da graça de Deus e mistério da fé. Contesta-se, igualmente, que a participação na mesma Mesa eucarística de cristãos que, por acaso, pertençam a classes opostas, tenha ainda algum sentido.
9. Na sua significação positiva, a Igreja dos pobres indica a preferência, sem exclusivismo, dada aos pobres, segundo todas as formas de miséria humana, porque eles são os prediletos de Deus. A expressão significa ainda que a Igreja, como comunhão e como instituição, assim como os membros da mesma Igreja, tomam consciência, em nosso tempo, das exigências da pobreza evangélica.
10. Mas as « teologias da libertação », que têm o mérito de haver revalorizado os grandes textos dos profetas e do Evangelho acerca da defesa dos pobres, passam a fazer um amálgama pernicioso entre o pobre da Escritura e o proletariado de Marx. Perverte-se deste modo o sentido cristão do pobre e o combate pelos direitos dos pobres transforma-se em combate de classes na perspectiva ideológica da luta de classes. A Igreja dos pobres significa então Igreja classista, que tomou consciência das necessidades da luta revolucionária como etapa para a libertação e que celebra esta libertação na sua liturgia.
11. É necessário fazer uma observação análoga a respeito da expressão Igreja do povo. Do ponto de vista pastoral, pode-se entender com essa expressão os destinatários prioritários da evangelização, aqueles para os quais, em virtude de sua condição, se volta primeiro que tudo o amor pastoral da Igreja. É possível referir-se também à Igreja como « povo de Deus », ou seja, como o povo da Nova Aliança realizada em Cristo.[24]
12. As « teologias da libertação », a que aqui nos referimos, porém, entendem por Igreja do povo a Igreja da luta libertadora organizada. O povo assim entendido chega mesmo a tornar-se, para alguns, objeto de fé.
13. A partir de semelhante concepção da Igreja do povo, elabora-se uma crítica das próprias estruturas da Igreja. Não se trata apenas de uma correção fraterna dirigida aos pastores da Igreja, cujo comportamento não reflita o espírito evangélico de serviço e se apegue a sinais anacrónicos de autoridade que escandalizam os pobres. Trata-se, sim, de pôr em xeque a estrutura sacramental e hierárquica da Igreja, tal como a quis o próprio Senhor. São denunciados na Hierarquia e no Magistério os representantes objetivos da classe dominante, que é preciso combater. Teologicamente, esta posição equivale a afirmar que o povo é a fonte dos ministérios e portanto pode dotar-se de ministros à sua escolha, de acordo com as necessidades de sua missão revolucionária histórica.
X - UMA NOVA HERMENÊUTICA
1. A concepção partidarista da verdade, que se manifesta na praxis revolucionária de classe, corrobora esta posição. Os teólogos que não compartilham as teses da « teologia da libertação », a hierarquia e sobretudo o Magistério romano são assim desacreditados a priori, como pertencentes à classe dos opressores. A teologia deles é uma teologia de classe. Os argumentos e ensinamentos não merecem pois ser examinados em si mesmos, uma vez que refletem simplesmente os interesses de uma classe. Por isso, decreta-se que o discurso deles é, em princípio, falso.
2. Aparece aqui o carácter global e totalizante da « teologia da libertação ». Por isso mesmo, deve ser criticada não nesta ou naquela afirmação que ela faz, mas a partir do ponto de vista de classes que ela adopta a priori e que nela funciona como princípio hermenêutico determinante.
3. Por causa deste pressuposto classista, torna-se extremamente difícil, para não dizer impossível, conseguir com alguns « teólogos da libertação » um verdadeiro diálogo, no qual o interlocutor seja ouvido e seus argumentos sejam discutidos objetivamente e com atenção. Com efeito estes teólogos mais ou menos conscientemente, partem do pressuposto de que o ponto de vista da classe oprimida e revolucionária, que seria o mesmo deles constitui o único ponto de vista da verdade. Os critérios teológicos da verdade, vêem-se, deste modo, relativizados e subordinados aos imperativos da luta de classes. Nesta perspectiva substitui-se a ortodoxia como regra correta da fé pela ideia da ortopráxis, como critério de verdade. A este respeito, é preciso não confundir a orientação prática, própria à teologia tradicional, do mesmo modo e pelo mesmo título que lhe é própria também a orientação especulativa, com um primado privilegiado, conferido a um determinado tipo de praxis. Na realidade esta última é a praxis revolucionária que se tornaria assim critério supremo da verdade teológica. Uma metodologia teológica sadia toma em consideração, sem dúvida, a praxis da Igreja e nela encontra um de seus fundamentos, mas isto porque essa praxis é decorrência da fé e constitui uma expressão vivenciada dessa fé.
4. A doutrina social da Igreja é rejeitada com desdém. Esta procede, afirma-se, da ilusão de um possível compromisso, próprio das classes médias, destituídas de sentido histórico.
5. A nova hermenêutica inserida nas « teologias da libertação » conduz a uma releitura essencialmente política da Escritura. É assim que se atribui a máxima importância ao acontecimento do Êxodo, enquanto libertação da escravidão política. Propõe-se igualmente uma leitura política do Magnificat. O erro aqui não está em privilegiar uma dimensão política das narrações bíblicas; mas em fazer desta dimensão a dimensão principal e exclusiva, o que leva a uma leitura redutiva da Escritura.
6. Quem assim procede, coloca-se por isso mesmo na perspectiva de um messianismo temporal, que é uma das expressões mais radicais da secularização do Reino de Deus e de sua absorção na imanência da história humana.
7. Privilegiar deste modo a dimensão política, é o mesmo que ser levado a negar a radical novidade do Novo Testamento e, antes de tudo, a desconhecer a pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, bem como o caráter específico da libertação que Ele nos traz e que é fundamentalmente libertação do pecado, fonte de todos os males.
8. Aliás, pôr de lado a interpretação autorizada do Magistério, denunciada como interpretação de classe, é afastar-se automaticamente da Tradição. É, par isso mesmo, privar-se de um critério teológico essencial para a interpretação e acolher no vazio assim criado, as teses mais radicais da exegese racionalista. Retoma-se, então, sem espírito crítico, a oposição entre o « Jesus da história » e o « Jesus da fé ».
9. Conserva-se, sem dúvida, a letra das fórmulas da fé, especialmente a de Calcedônia, mas atribui-se a essas fórmulas uma nova significação, que constitui uma negação da fé da Igreja. De um lado, rejeita-se a doutrina cristológica apresentada pela Tradição, em nome do critério de classe; e de outro lado, pretende-se chegar ao « Jesus da história » a partir da experiência revolucionária da luta dos pobres pela sua libertação.
10. Pretende-se reviver uma experiência análoga à que teria sido a de Jesus. A experiência dos pobres lutando por sua libertação, que teria sido a de Jesus, e só ela, revelaria assim o conhecimento do verdadeiro Deus e do Reino.
11. É claro que a fé no Verbo encarnado, morto e ressuscitado por todos os homens, a Quem « Deus fez Senhor e Cristo »[25] é negada. Toma o seu lugar uma « figura » de Jesus, uma espécie de símbolo que resume em si mesmo as exigências da luta dos oprimidos.
12. Propõe-se assim uma interpretação exclusivamente política da morte de Cristo. Nega-se desta maneira seu valor salvífico e toda a economia da redenção.
13. A nova interpretação atinge assim todo o conjunto do mistério cristão.
14. De um modo geral, ela opera o que se poderia chamar de inversão dos símbolos. Assim, em lugar de ver no Êxodo com São Paulo, uma figura do batismo,[26] se tenderá ao extremo de fazer deste um símbolo da libertação política do povo.
15. Pelo mesmo critério hermenêutico, aplicado à vida eclesial e à constituição hierárquica da Igreja, as relações entre a hierarquia e a « base » tornam-se relações de dominação que obedecem à lei da luta de classes. A sacramentalidade, que está na raiz dos ministérios eclesiásticos e que faz da Igreja uma realidade espiritual que não se pode reduzir a uma análise puramente sociológica, é simplesmente ignorada.
16. Verifica-se ainda a inversão dos símbolos no domínio dos sacramentos. A Eucaristia não é mais entendida na sua verdade de presença sacramental do sacrifício reconciliador e como dom do Corpo e do Sangue de Cristo. Torna-se celebração do povo na sua luta. Por conseguinte, a unidade da Igreja é radicalmente negada. A unidade, a reconciliação, a comunhão no amor não mais são concebidas como um dom que recebemos de Cristo.[27] É a classe histórica dos pobres que, mediante o combate, construirá a unidade. A luta de classes é o caminho desta unidade. A Eucaristia torna-se, deste modo, Eucaristia de classe. Nega-se também, ao mesmo tempo a força triunfante do amor de Deus que nos é dado.
XI - ORIENTAÇÕES
1. Chamar a atenção para os graves desvios que algumas « teologias da libertação » trazem consigo não deve, de modo algum, ser interpretado como uma aprovação, ainda que indireta, aos que contribuem para a manutenção da miséria dos povos, aos que dela se aproveitam, aos que se acomodam ou aos que ficam indiferentes perante esta miséria. A Igreja, guiada pelo Evangelho da Misericórdia e pelo amor ao homem, escuta o clamor pela justiça[28] e deseja responder com todas as suas forças.
2. Um imenso apelo é assim dirigido à Igreja. Com audácia e coragem, com clarividência e prudência, com zelo e força de ânimo, com um amor aos pobres que vai até ao sacrifício, os pastores, como muitos já fazem, hão de considerar como tarefa prioritária responder a este apelo.
3. Todos aqueles, sacerdotes, religiosos e leigos que, auscultando o clamor pela justiça, quiserem trabalhar na evangelização e na promoção humana, fá-lo-ão em comunhão com seu bispo e com a Igreja, cada um na linha de sua vocação eclesial específica.
4. Conscientes do carácter eclesial de sua vocação, os teólogos colaborarão lealmente e em espírito de diálogo com o Magistério da Igreja. Saberão reconhecer no Magistério um dom de Cristo à sua Igreja[29] e acolherão a sua palavra e as suas orientações com respeito filial.
5. Somente a partir da tarefa evangelizadora, tomada em sua integralidade, se compreendem as exigências de uma promoção humana e de uma libertação autênticas. Esta libertação tem como pilares indispensáveis, a verdade sobre Jesus Cristo, o Salvador, a verdade sobre a Igreja, a verdade sobre o homem e sobre a sua dignidade.[30] É à luz das bem-aventuranças, da bem-aventurança dos pobres de coração em primeiro lugar, que a Igreja, desejosa de ser no mundo inteiro a Igreja dos pobres, quer servir a nobre causa da verdade e da justiça. Ela se dirige a cada homem e, por isso mesmo, a todos os homens. Ela é a « Igreja universal. A Igreja do mistério da encarnação. Não é a Igreja de uma classe ou de uma só casta. Ela fala em nome da própria verdade. Esta verdade é realista ». Ela leva a ter em conta « cada realidade humana, cada injustiça, cada tensão, cada luta ».[31]
6. Uma defesa eficaz da justiça deve apoiar-se na verdade do homem, criado à imagem de Deus e chamado à graça da filiação divina. O reconhecimento da verdadeira relação do homem com Deus constitui o fundamento da justiça, enquanto regula as relações entre os homens. Esta é a razão pela qual o combate pelos direitos do homem, que a Igreja não cessa de promover, constitui o autêntico combate pela justiça.
7. A verdade do homem exige que este combate seja conduzido por meios que estejam de acordo com a dignidade humana. Por isso o recurso sistemático e deliberado à violência cega, venha essa de um lado ou de outro, deve ser condenado.[32] Pôr a confiança em meios violentos na esperança de instaurar uma maior justiça é ser vítima de uma ilusão fatal. Violência gera violência e degrada o homem. Rebaixa a dignidade do homem na pessoa das vítimas e avilta esta mesma dignidade naqueles que a praticam.
8. A urgência de reformas radicais que incidam sobre estruturas que segregam a miséria e constituem, por si mesma, formas de violência, não pode fazer perder de vista que a fonte da injustiça se encontra no coração dos homens. Não se obterão pois mudanças sociais que estejam realmente ao serviço do homem senão fazendo apelo às capacidades éticas da pessoa e à constante necessidade de conversão interior.[33] Pois na medida em que colaborarem livremente, por sua própria iniciativa e em solidariedade, nestas necessárias mudanças, os homens, despertados no sentido de sua responsabilidade, crescerão em humanidade. A inversão entre moralidade e estruturas é própria de uma antropologia materialista, incompatível com a verdade do homem.
9. É pois igualmente ilusão fatal crer que novas estruturas darão origem por si mesmas a um « homem novo », no sentido da verdade do homem. O cristão não pode desconhecer que o Espírito Santo que nos foi dado é a fonte de toda verdadeira novidade e que Deus é o senhor da história.
10. A derrubada, por meio da violência revolucionária, de estruturas geradoras de injustiças não é pois ipso facto o começo da instauração de um regime justo. Um fato marcante de nossa época deve ocupar a reflexão de todos aqueles que desejam sinceramente a verdadeira libertação dos seus irmãos. Milhões de nossos contemporâneos aspiram legitimamente a reencontrar as liberdades fundamentais de que estão privados por regimes totalitários e ateus, que tomaram o poder por caminhos revolucionários e violentos, exatamente em nome da libertação do povo. Não se pode desconhecer esta vergonha de nosso tempo: pretendendo proporcionar-lhes liberdade, mantêm-se nações inteiras em condições de escravidão indignas do homem. Aqueles que, talvez por inconsciência, se tornam cúmplices de semelhantes escravidões, traem os pobres que eles quereriam servir.
11. A luta de classes como caminho para uma sociedade sem classes é um mito que impede as reformas e agrava a miséria e as injustiças. Aqueles que se deixam fascinar por este mito deveriam refletir sobre as experiências históricas amargas às quais ele conduziu. Compreenderiam então que não se trata, de modo algum, de abandonar uma via eficaz de luta em prol dos pobres em troca de um ideal desprovido de efeito. Trata-se, pelo contrário, de libertar-se de uma miragem para se apoiar no Evangelho e na sua força de realização.
12. Uma das condições para uma necessária retificação teológica é a revalorização do magistério social da Igreja. Este magistério não é, de modo algum, fechado. É, ao contrário, aberto a todas as novas questões que não deixam de surgir no decorrer dos tempos. Nesta perspectiva, a contribuição dos teólogos e dos pensadores de todas as regiões do mundo para a reflexão da Igreja é hoje indispensável.
13. Do mesmo modo, a experiência daqueles que trabalham diretamente na evangelização e na promoção dos pobres e dos oprimidos é necessária à reflexão doutrinal e pastoral da Igreja. Neste sentido é preciso tomar consciência de certos aspectos da verdade a partir da praxis, se por praxis se entende a prática pastoral e uma prática social que conserva sua inspiração evangélica.
14. O ensino da Igreja em matéria social proporciona as grandes orientações éticas. Mas para que possa atingir diretamente a ação, ele precisa de pessoas competentes, do ponto de vista científico e técnico, bem como no domínio das ciências humanas e da política. Os pastores estarão atentos à formação destas pessoas competentes, profundamente impregnadas pelo Evangelho. São aqui visados, em primeiro lugar, os leigos, cuja missão específica é a de construir a sociedade.
15. As teses das « teologias da libertação » estão sendo largamente difundidas, sob uma forma ainda simplificada, nos cursos de formação ou nas comunidades de base, que carecem de preparação catequética e teológica e de capacidade de discernimento. São assim aceitas, por homens e mulheres generosos, sem que seja possível um juízo crítico.
16. É por isso que os pastores devem vigiar sobre a qualidade e o conteúdo da catequese e da formação que devem sempre apresentar a integralidade da mensagem da salvação e os imperativos da verdadeira libertação humana, no quadro desta mensagem integral.
17. Nesta apresentação integral do mistério cristão, será oportuno acentuar os aspectos essenciais que as « teologias da libertação » tendem especialmente a desconhecer ou eliminar: transcendência e gratuidade da libertação em Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem; soberania de sua graça; verdadeira natureza dos meios de salvação, e especialmente da Igreja e dos sacramentos. Tenham-se presentes a verdadeira significação da ética, para a qual a distinção entre o bem e o mal não pode ser relativizada; o sentido autêntico do pecado; a necessidade da conversão e a universalidade da lei do amor fraterno. Chame-se a atenção contra uma politização da existência, que, desconhecendo ao mesmo tempo a especificidade do Reino de Deus e a transcendência da pessoa, acaba sacralizando a política e abusando da religiosidade do povo em proveito de iniciativas revolucionárias.
18. É frequente dirigir aos defensores da « ortodoxia » a acusação de passividade, de indulgência ou de cumplicidade culpáveis frente a situações intoleráveis de injustiça e de regimes políticos que mantêm estas situações. A conversão espiritual, a intensidade do amor a Deus e ao próximo, o zelo pela justiça e pela paz, o sentido evangélico dos pobres e da pobreza, são exigidos a todos, especialmente aos pastores e aos responsáveis. A preocupação pela pureza da fé não subsiste sem a preocupação de dar a resposta de um testemunho eficaz de serviço ao próximo e, em especial, ao pobre e ao oprimido, através de uma vida teologal integral. Pelo testemunho de sua capacidade de amar, dinâmica e construtiva, os cristãos lançarão, sem dúvida, as bases desta « civilização do amor » de que falou, depois de Paulo VI, a Conferência de Puebla.[34] De resto, são numerosos os sacerdotes, religiosos ou leigos, que se consagram de um modo verdadeiramente evangélico à criação de uma sociedade justa.
CONCLUSÃO
As palavras de Paulo VI, na Profissão de fé do povo de Deus, exprimem, com meridiana clareza, a fé da Igreja, da qual ninguém pode afastar-se sem provocar, juntamente com a ruína espiritual, novas misérias e novas escravidões.
« Nós professamos que o Reino de Deus iniciado aqui na terra, na Igreja de Cristo, não é deste mundo, cuja figura passa, e que seu crescimento próprio não se pode confundir com o progresso da civilização, da ciência ou da técnica humanas, mas consiste em conhecer cada vez mais profundamente as insondáveis riquezas de Cristo, em esperar cada vez mais corajosamente os bens eternos, em responder cada vez mais ardentemente ao amor de Deus e em difundir cada vez mais amplamente a graça e a santidade entre os homens. Mas é este mesmo amor que leva a Igreja a preocupar-se constantemente com o bem temporal dos homens. Não cessando de lembrar a seus filhos que eles não têm aqui na terra uma morada permanente, anima-os também a contribuir, cada qual segundo a sua vocação e os meios de que dispõem, para o bem de sua cidade terrestre, a promover a justiça, a paz e a fraternidade entre os homens, a prodigalizar-se na ajuda aos irmãos, sobretudo aos mais pobres e mais infelizes. A intensa solicitude da Igreja, esposa de Cristo, pelas necessidades dos homens, suas alegrias e esperanças, seus sofrimentos e seus esforços, nada mais é do que seu grande desejo de lhes estar presente para os iluminar com a luz de Cristo e reuni-los todos nele, seu único Salvador. Esta solicitude não pode, em hipótese alguma, comportar que a própria Igreja se conforme às coisas deste mundo, nem que diminua o ardor da espera pelo seu Senhor e pelo Reino eterno ».[35]
O Sumo Pontífice João Paulo 11, no decorrer de uma Audiência concedida ao Cardeal Prefeito que subscreve este documento, aprovou a presente Instrução, deliberada em reunião ordinária da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, e ordenou que a mesma fosse publicada.
Roma, Sede da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, 6 de Agosto de 1984, na Festa da Transfiguração do Senhor.
Joseph Card. Ratzinger
Prefeito
SB Alberto Bovone
Arcebispo tit. de Cesárea de Numidia
Secretário
Notas
[1] Cf. Gaudium et spes, n. 4.
[2] Cf. Dei Verbum, n. 10.
[3] Cf. Gál 5, 1 ss.
[4] Cf. Êx 24.
[5] Cf. Jer 31, 31-34; Ez 36, 26 ss.
[6] Cf. Sof 3, 12 ss.
[7] Cf. Deut 10, 18-19.
[8] Cf. Lc 10, 25-27.
[9] Cf. 2 Cor 8, 9.
[10] Cf. Mt 25, 31-46; At 9, 4-5; Col 1, 24.
[11] Cf. Tg 5, 1 ss.
[12] Cf. 1 Cor 11, 17-34.
[13] Cf. Tg 2, 14-26.
[14] Cf. AAS 71, 1979, pp. 1144-1160.
[15] Cf. AAS 71, 1979, p. 196.
[16] Cf. Evangelii nuntiandi, nn. 25-33: AAS 68, 1976, pp. 23-28.
[17] Cf. Evangelii nuntiandi, n. 32: AAS 68, 1976, p. 27.
[18] Cf. AAS 71, 1979, pp. 188-196.
[19] Cf. Gaudium et spes, n. 39; Pio XI, Quadragesimo anno: AAS 23, 1931, p. 207.
[20] Cf. nn. 1134-1165 e nn. 1166-1205.
[21] Cf. Doc. de Puebla, IV, 2.
[22] Paulo PP. VI, Octogesima adveniens, n. 34: AAS 63, 1971, pp. 424-425.
[23] Cf. Lumen gentium, nn. 9-17.
[24] Cf. Gaudium et spes, n. 39.
[25] Cf. At 2, 36.
[26] Cf. 1 Cor 10, 1-2.
[27] Cf. Ef 2, 11-12.
[28] Cf. Doc. de Puebla, I, 2, n. 3. 3.
[29] Cf. Lc 10, 16.
[30] Cf. João Paulo PP. II, Discurso na abertura da Conferência de Puebla: AAS 71, 1979, pp. 188-186.
[31] Cf. João Paulo PP. II, Discurso na Favela « Vidigal», no Rio de Janeiro, 2 de Julho de 1980: AAS 72, 1980, pp. 852-858.
[32] Cf. Doc. de Puebla, II, 2, n. 5. 4.
[33] Cf. Doc. de Puebla, IV, 3, n. 3. 3.
[34] Cf. Doc. de Puebla, IV, 2, n. 2. 4.
[35] Paulo PP. VI, Profissão de Fé do Povo de Deus, 30 de Junho de 1968: AAS 60, 1968, pp. 443-444.
10- Conferência de Puebla
Este documento abaixo publicado em 1979 mostra a preferencia pelos pobres e pelos jovens. Mas estes últimos não tem recebido ênfase pela teologia da libertação:
Conferência de Puebla
IIIª CONFERÊNCIA GERAL
DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO
Puebla de los Angeles, México,
27-1 a 13-2 de 1979
Quarta Parte (IV)
IGREJA MISSIONÁRIA A SERVIÇO DA EVANGELIZAÇÃO NA
AMÉRICA LATINA
Capítulo I Opção preferencial pelos pobres
Capítulo II Opção preferencial pelos jovens
Capítulo III Ação da Igreja junto aos construtores da, sociedade pluralista na
AL
Capítulo IV Ação em prol da pessoa na sociedade nacional e internacional
1132. Os pobres e os jovens constituem, portanto, a riqueza e a esperança da
Igreja na América, Latina, e sua evangelização é, por conseguinte, prioritária.
CAPÍTULO II
OPÇAO PREFERENCIAL PELOS JOVENS
1166. Apresentar aos jovens o Cristo vivo, como único Salvador, para que, evangelizados, evangelizem e contribuam, como em resposta de amor a Cristo,
para a libertação integral do homem e da sociedade, levando uma vida de comunhão e participação.
2.1. Situação da juventude
1167. Características da juventude: a juventude não é só um grupo de pessoas
de idade cronológica. E também uma atitude frente à vida, numa etapa não definitiva, mas transitória. Possui traços muito característicos:
1168. Um inconformismo que a tudo questiona.; um espírito de aventura que a
leva a compromissos e situações radicais; uma capacidade criadora com respostas novas para o mundo em transformação, que aspira a sempre melhorar
em sinal de esperança. Sua aspiração pessoal mais espontânea e forte é a liberdade, emancipada de qualquer tutela exterior. É sinal de alegria e felicidade.
Muito sensível aos problemas sociais. Exige autenticidade e simplicidade, rejeitando com rebeldia uma sociedade invadida por hipocrisias e contravalores.
1169. Este dinamismo a torna capaz de renovar “as culturas” que, doutra forma, envelheceriam.
347 Cf. Discurso Operários Monterrey.
A juventude no corpo social
1170. O papel normal desempenhado pela juventude na sociedade é dinamizar
o corpo social. Quando os adultos não são autênticos nem abertos para o diálogo com os jovens, impedem que o dinamismo criador do jovem faça progredir o corpo social. Ao perceberem que não são tomados a sério, os jovens se
lançam por diversos caminhos: ou são perseguidos por diversas ideologias, especialmente as radicalizadas, já que, sendo sensíveis às mesmas por seu idealismo natural, nem sempre têm a suficiente preparação para um claro discernimento, ou mostram-se indiferentes para com o sistema vigente ou se acomodam a ele com dificuldade e perdem a capacidade dinamizadora.
1171. O que mais desorienta o jovem é a ameaça à sua exigência de autenticidade por parte do meio adulto, em grande parte incoerente e manipulador e por
parte do conflito de gerações, da civilização de consumo, duma certa pedagogia do instinto, da droga, do sexualismo, da tentação de ateísmo.
1172. Hoje em dia, a juventude é manipulada especialmente na área política e
no emprego do “tempo livre”. Uma parte da juventude tem legítimas inquietações políticas e consciência de poder social. Sua falta de formação nesses campos e a ausência de assessoria equilibrada a levam a radicalizações ou
frustrações. O jovem ocupa grande parte do seu “tempo livre” com o esporte e
uso dos meios de comunicação social. Estes são, para alguns, instrumentos de
educação e recreação sadia; para outros, elementos de alienação.
1173. A família é o corpo social primário no qual se origina e se educa e juventude. Da sua estabilidade, tipo de relacionamento com a juventude, vivência e abertura aos seus valores depende em grande parte o fracasso ou êxito da
realização desta juventude na sociedade ou na Igreja.348
1174. A juventude feminina está passando por uma crise de identidade, por
causa da confusão reinante acerca da missão da mulher hoje. Os elementos negativos referentes à libertação feminina e um certo machismo ainda existente
impedem uma sadia promoção feminina, como parte indispensável da construção da sociedade.
348 Cf. João Paulo II, Homilia Puebla – AAS LXXI, p. 182.
282
A juventude da América Latina
1175. A juventude da América Latina não pode ser considerada em abstrato.
Há diversidade de jovens, caracterizados por sua situação social ou pelas experiências sócio-políticas que vivem seus respectivos países.
1176. Se observarmos a situação social, verificamos que, ao lado daqueles que,
por sua condição econômica, se desenvolvem normalmente, há muitos jovens
indígenas, camponeses, mineiros, pescadores e operários que, por sua pobreza,
se vêem obrigados a trabalhar como adultos. Ao lado de jovens que vivem folgadamente, há estudantes, sobretudo de subúrbios, que já vivem na insegurança dum futuro emprego ou não encontram seu caminho por falta de orientação
vocacional.
1177. Por outro lado, é indubitável haver jovens que se sentiram frustrados pela falta de autenticidade de alguns líderes seus ou se sentiram enfastiados por
uma civilização de consumo. Outros, pelo contrário, em resposta às múltiplas
formas de egoísmo, desejam construir um mundo de paz, justiça e amor. Finalmente, comprovamos que não poucos descobriram a alegria da entrega a
Cristo, não obstante as variadas e rudes exigências de sua cruz.
Os jovens e a Igreja
1178. A Igreja vê na juventude uma enorme força renovadora, símbolo da própria Igreja. E a Igreja faz isto não por tática mas por vocação, já que é “chamada à constante renovação de si mesma, isto é, a um incessante rejuvenescimento” (João Paulo II Alocução Juventude, 2 - AAS, LXXI, p. 218) . O serviço prestado com humildade à juventude deve fazer com que mude na Igreja
qualquer atitude de desconfiança ou incoerência para com os jovens.
1179. Atualmente, contudo, os jovens consideram a Igreja de diversas maneiras: uns a amam espontaneamente como ela é, sacramento de Cristo; outros a
questionam para que seja autêntica; e não faltam os que procuram um Cristo
vivo separado do seu corpo que é a Igreja. Há uma massa indiferente, passivamente acomodada à civilização de consumo ou outros sucedâneos, desinteressada da exigência evangélica.
1180. Existem jovens socialmente muito inquietos, mas reprimidos pelos sistemas de governo; estes buscam a Igreja como espaço de liberdade para
poderem expressar-se sem manipulações e protestar social e politicamente.
Alguns, pelo contrário, pretendem utilizá-1a como instrumento de contestação.
Finalmente, uma minoria muito ativa, influenciada por seu ambiente ou por
ideologias materialistas e atéias, nega e combate o Evangelho.
1181. Os jovens desejosos de se realizar na Igreja podem ' ficar frustrados por
não encontrarem uma boa planificação e programação pastoral que corresponda à realidade histórica em que vivem. Igualmente sentem a falta de assessores preparados, embora em não poucos grupos e movimentos juvenis existam assessores competentes e abnegados.
2 - 2 . Critérios pastorais
1182. Queremos dar uma resposta à situação da juventude, graças aos três critérios de verdade propostos por S. S. João Paulo II: verdade sobre Jesus Cristo,
verdade sobre a missão da Igreja e verdade sobre o homem.349
1183. Embora não se dê conta disso, a juventude vai ao encontro de um Messias, Cristo, o qual caminha em direção dos jovens.350 Somente ele torna o jovem verdadeiramente livre. Este é o Cristo que deve ser apresentado aos jovens como libertador integral351 que, pelo espírito doa bem-aventuranças, oferece a todo jovem a inserção num processo de constante conversão; compreende suas fraquezas e oferece-lhe um encontro muito pessoal com
Ele e com a comunidade, nos sacramentos da reconciliação e da Eucaristia. O
jovem deve experimentar Cristo como amigo pessoal que nunca falha, caminho de total realização. Com ele e pela lei do amor, o jovem caminha em direção do Pai comum e dos irmãos. Cem isto, sente-se verdadeiramente feliz.
O jovem na Igreja
1184. Os jovens devem sentir que são Igreja, experimentando-a como lugar de
comunhão e participação. Por isso, a Igreja aceita suas críticas, por reconhecer-se limitada em seus membros, e os quer gradualmente responsáveis na sua
construção até que os envie como testemunhas e missionários, especialmente à grande massa juvenil. Nela, os jovens sentem-se povo novo, o povo das bem-aventuranças, sem outra segurança que a de Cristo; um povo dotado de coração de pobre, contemplativo, em atitude de escutar e discernir evangelicamente, construtor de paz, portador de alegria e de um projeto libertador integral em favor, sobretudo, de seus irmãos jovens. A Virgem Mãe bondosa, indefectível na fé, educa o jovem para ser Igreja.
349 Cf. Discurso Inaugural – AAS LXXI, p. 178.
350 Cf. Paulo VI.
351 Cf. 5,1.13 ; 4,26.31 ; 1Cor 7,22 ; 2Cor 3,17.
1185. Assumindo as atitudes de Cristo, o jovem promove e defende a dignidade da pessoa humana. Em virtude do batismo, é filho do único Pai, irmão de
todos os homens e contribui para a edificação da Igreja. Sente-se cada vez
mais “cidadão universal” instrumento na construção da comunidade latinoamericana e universal.
2.3. Opções pastorais
Opção preferencial
1186. A Igreja confia nos jovens.352 Eles são a sua esperança. A Igreja vê na
juventude da América Latina um verdadeiro potencial e o futuro de sua evangelização. Por ser verdadeira dinamizadora do corpo social e especialmente do
corpo eclesial, com vistas à sua missão evangelizadora no Continente.353
1187. Por isso queremos oferecer uma linha pastoral global: desenvolver, de
acordo com a pastoral diferencial e orgânica, uma pastoral de juventude que
leve em conta a realidade social dos jovens de nosso continente; atenda ao aprofundamento e crescimento da fé para a comunhão com Deus e os homens;
oriente a opção vocacional dos jovens; lhes ofereça elementos para se converterem em fatores de transformação e lhes proporcione cais eficazes para a participação ativa na Igreja e na transformação da sociedade.354
352 Cf. EN 72.
353 Cf. Med. Juventude 13.
354 Cf. DT 770.
Aplicações concretas
Comunhão e compromisso
1188. A Igreja evangelizadora faz um veemente apelo para que os jovens nela busquem o lugar de sua comunhão com Deus e os homens a fim de
construir “a civilização do amor” e edificar a paz na justiça. Convida-os a que
se comprometam eficazmente numa ação evangelizadora que não exclua ninguém, de acordo com a situação em que vivem, e tendo predileção pelos mais
pobres.
1189. A integração na Igreja será canalizada através de movimentos juvenis ou
comunidades que devem estar integradas na pastoral de conjunto diocesana ou
nacional, com projeções para uma integração latino-americana. Esta integração
far-se-á especialmente por meio da:
* pastoral familiar;
* pastoral da Igreja diocesana e paroquial em seus diversos aspectos de catequese, educação, vocações, etc.;
* inter-relacionamento dos diversos movimentos de juventude ou comunidades, considerando-lhes a situação concreta: estudantes secundários, universitários, operários, camponeses, que tem condicionamentos próprios e
exigências diferentes em face do processo evangelizador e que, por isso,
pedem uma pastoral específica.
1190. Esta pastoral de movimentos e comunidades deve levar em conta os jovens numa inter-relação fecunda, já que os grupos devem ser fermento no conjunto e propiciar uma evangelização total.
1191. Providencie-se um acolhimento e atenção aos jovens que, por diversos
motivos, devem emigrar, temporária ou definitivamente, e que são vítimas da
solidão, da falta de ambientação, da marginalização, etc.
Formação e participação
1192. A inserção na Igreja e a tarefa de compromisso efetivo na edificação de
nova civilização do amor e da paz é muito exigente e requer profunda formação e participação responsável. Por este motivo:
1193. A pastoral de juventude na linha da evangelização deve ser um verdadeiro processo de educação na fé, que leva à própria conversão e a um compromisso evangelizador.
1194. O fundamento desta educação deve ser a apresentação ao jovem de Cristo vivo, Deus e homem, modelo de autenticidade, simplicidade e
fraternidade; único que salva, libertando de todo pecado e de suas conseqüências e que compromete para a libertação ativa dos irmãos por meios não violentos.
1195. A pastoral da juventude empenhar-se-á em que o jovem cresça numa espiritualidade autêntica e apostólica, fundada no espírito de oração e no conhecimento da Palavra de Deus e no amor filial a Maria Santíssima que, unindo-o a Cristo, o torne solidário com seus irmãos.
1196. A pastoral da juventude deve ajudar também a formar os jovens de maneira gradual para a ação sócio-política e para as mudanças de estruturas, de
menos humanas em mais humanas, segundo a Dou trina Social da Igreja.
1197. Formar-se-á no jovem um sentido crítico frente aos meios de comunicação social e aos contravalores culturais que as diversas ideologias tentam
transmitir-lhe, especialmente a liberal capitalista e a marxista, para que não seja por elas manipulado.
1198. Usar-se-á uma linguagem simples e adaptada a uma pedagogia que tenha presente as diferenças psicológicas do homem e da mulher e se caracterize
pela mútua confiança e respeito recíproco; numa conversão ao meio em que
vive e atua, para centrar assim sua missão dinâmica evangelizadora.
1199. Estimule-se a capacidade criadora dos jovens, para que eles mesmos imaginem e descubram os meios mais diversos e aptos para tornar presente, de
forma construtiva, a missão que exercem na sociedade e na Igreja. Para isso,
lhes sejam facilitados os meios e áreas onde ponham em prática o seu compromisso. Recomenda-se a presença missionária dos jovens em lugares especialmente necessitados.
1200. Procure-se dar aos jovens uma boa orientação espiritual a fim de que
possam amadurecer a sua opção vocacional, quer leiga, quer religiosa ou sacerdotal.
1201. Recomenda-se dar a maior importância a todos os meios que favoreçam
a evangelização e o crescimento na fé: retiros, jornadas, encontros, cursilhos,
convivências, etc.
1202. Como tempo forte para o amadurecimento na fé que leva
necessariamente a um compromisso apostólico - deve-se destacar a celebração
consciente e ativa do sacramento da confirmação, precedida duma esmerada
catequese e sempre de acordo com as diretrizes da Santa Sé e das Conferências
Episcopais.
1203. Deve-se procurar formar com prioridade animadores juvenis qualificados (sacerdotes, religiosos ou leigos) que sejam guias e amigos da juventude,
conservando sua própria identidade e prestando este serviço com madureza
humana e cristã.
1204. A juventude não se pode considerar em abstrato, nem é um grupo isolado no corpo social. Por isso, ela requer uma pastoral articulada que permita
uma comunicação efetiva entre os diversos períodos da juventude e uma continuidade de formação e compromisso depois, na idade adulta.
1205. Seja a pastoral juvenil uma pastoral da alegria e da esperança, que
transmita a mensagem alegre da salvação a um mundo muitas vezes triste, oprimido e desesperançado, em busca da sua libertação.355
355 Cf. João Paulo II, Alocução Juventude – AAS LXXI, p. 217.
11- CARTA DO PAPA JOÃO PAULO II
AOS BISPOS DA CONFERÊNCIA EPISCOPAL
DOS BISPOS DO BRASIL -1986 http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/letters/1986/documents/hf_jp-ii_let_19860409_conf-episcopale-brasile.html consultado em 14/03/2021
5. Tendo diante dos olhos essas indeclináveis exigências do seu serviço episcopal, os Senhores tem-se esforçado, sobretudo nos últimos anos, por encontrar respostas justas aos desafios acima referidos, sempre presentes, eles também, ao seu espírito. A Santa Sé não tem deixado de acompanhá-los nestes esforços, como faz com todas as Igrejas. Manifestação e prova da atenção com que compartilha esses esforços, são os numerosos documentos publicados ultimamente, entre os quais as duas recentes Instruções emanadas pela Congregação para a Doutrina da Fé, com a minha explícita aprovação: uma, sobre alguns aspectos da teologia da libertação ; outra, sobre a liberdade crista e a libertação . Estas últimas, endereçadas à Igreja Universal, tem, para o Brasil, uma inegável relevância pastoral.
Na medida em que se empenha por encontrar aquelas respostas justas – penetradas de compreensão para com a rica experiência da Igreja neste País, tão eficazes e construtivas quanto possível e ao mesmo tempo consonantes e coerentes com os ensinamentos do Evangelho, da Tradição viva e do perene Magistério da Igreja – estamos convencidos, nós e os Senhores, de que a teologia da libertação é não só oportuna mas útil e necessária. Ela deve constituir uma nova etapa – em estreita conexão com as anteriores – daquela reflexão teológica iniciada com a Tradição apostólica e continuada com os grandes Padres e Doutores, com o Magistério ordinário e extraordinário e, na época mais recente, com o rico património da Doutrina Social da Igreja, expressa em documentos que vão da Rerum Novarum à Laborem Exercens.
Penso que, neste campo, a Igreja no Brasil possa desempenhar um papel importante e delicado ao mesmo tempo: o de criar espaço e condições para que se desenvolva, em perfeita sintonia com a fecunda doutrina contida nas duas citadas Instruções, uma reflexão teológica plenamente aderente ao constante ensinamento da Igreja em matéria social e, ao mesmo tempo, apta a inspirar uma práxis eficaz em favor da justiça social e da equidade, da salvaguarda dos direitos humanos, da construção de uma sociedade humana baseada na fraternidade e na concórdia, na verdade e na caridade. Deste modo se poderia romper a pretensa fatalidade dos sistemas – incapazes, um e outro de assegurar a libertação trazida por Jesus Cristo – o capitalismo desenfreado e o coletivismo ou capitalismo de Estado . Tal papel, se cumprido, será certamente um serviço que a Igreja pode prestar ao País e ao quase Continente latino-americano, como também a muitas outras regiões do mundo onde os mesmos desafios se apresentam com análoga gravidade.
Para cumprir esse papel é insubstituível a ação sábia e corajosa dos pastores, isto é, dos Senhores. Deus os ajude a velar incessantemente para que aquela correta e necessária teologia da libertação se desenvolva no Brasil e na América Latina, de modo homogéneo e não heterogéneo com relação à teologia de todos os tempos, em plena fidelidade à doutrina da Igreja, atenta a um amor preferencial não excludente nem exclusivo para com os pobres.
6. Neste ponto é indispensável ter presente a importante reflexão da Instrução Libertatis Conscientia sobre as duas dimensões constitutivas da libertação na sua concepção cristã: quer no nível da reflexão quer na sua práxis, a libertação é, antes de tudo, soteriológica (um aspecto da Salvação realizada por Jesus Cristo, Filho de Deus) e depois ético-social (ou ético-política). Reduzir uma dimensão à outra – suprimindo-as praticamente a ambas – ou antepor a segunda à primeira é subverter e desnaturar a verdadeira libertação crista
É dever dos Pastores, portanto, anunciar a todos os homens, sem ambiguidades, o mistério da libertação que se encerra na Cruz e na Ressurreição de Cristo. A Igreja de Jesus, nos nossos dias como em todos os tempos, no Brasil como em qualquer parte do mundo, conhece uma só sabedoria e uma só potência: a da Cruz que leva à Ressurreição . Os pobres deste País, que tem nos Senhores os seus Pastores, os pobres deste Continente são os primeiros a sentir urgente necessidade deste evangelho da libertação radical e integral. Sonegá-lo seria defraudá-los e desiludi-los.
Pôr outro lado, os Senhores – e com os Senhores toda a Igreja no Brasil – mostram-se prontos a empreender em seu setor próprio e na linha do próprio carisma, tudo aquilo que deriva, como consequência, da libertação soteriológica. É, aliás, o que a Igreja, desde os seus albores, sempre procurou fazer por meio de seus santos, seus mestres e seus pastores e por meio de seus fiéis engajados nas realidades temporais.
Permitam-me Irmãos no episcopado, que, com plena confiança, os convide a uma tarefa menos visível mas de alta relevância, além de profundamente conexa com nossa função episcopal: a de educar para a libertação, educando para a liberdade . Educar para a liberdade é infundir os critérios sem os quais essa liberdade se tornaria uma quimera, se não uma perigosa contrafaço. 12 ajudar a reconquistar a liberdade perdida ou a curar a liberdade, quando adulterada ou corrompida. Educadores na fé, como nos chama o Concílio Vaticano II, nossa tarefa consistirá também em educar para a liberdade.
12- Texto de Ratzinger antes da publciação de Libertatis Nuntius